Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 14
Meu lugar no mundo?




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Saí desesperado atrás de Daniel. Pensei em calcular o tempo que levava da delegacia até em casa para ter uma pequena noção de quanto tempo tínhamos até que os policiais chegassem, mas então eu me dei conta de que eu não sabia onde ficava a delegacia da cidade.

Enquanto eu vasculhava com os olhos os cômodos cheios de gente, Nando me seguia, perguntando a todo instante para onde eu estava indo. Eu não tinha muito tempo para ficar explicando as coisas. Na verdade, eu nem sabia quanto tempo eu tinha, então preferi agir como se não tivesse muito. E, também, não havia muito o quê explicar para Nando: meu plano se resumia em encontrar o Daniel e esperar que ele soubesse o que fazer.

Encontrei Daniel do lado de fora, conversando com algumas pessoas perto da piscina. Antes de ir até lá, me virei para Nando e agarrei seus ombros, olhando sério para ele.

— Nando, eu preciso que você descubra quanto tempo leva pra vir da delegacia até aqui.

— E como é que eu vou fazer isso? — ele me devolveu um olhar assustado.

— Google Maps!

— Tá bom! — Nando começou a sacudir afirmativamente a cabeça enquanto tateava o próprio corpo em busca do celular.

— E não saia da minha vista!

— Senhor, sim, senhor! Eu tô atrás de você.

— Tá. Obrigado.

Voltei a andar na direção de Daniel e, quando eu cheguei mais perto, ele acabou me notando ali. No mesmo instante em que eu acenei para ele se aproximar, Daniel murmurou algo para os seus amigos e logo se levantou, caminhando em minha direção.

— O que foi? — Daniel perguntou assim que estagnou em minha frente. — Que cara é essa, Luca? Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu! — assenti afobado e Daniel me encarou em expectativa. — A nossa vizinha ligou pra polícia por causa do som alto. E agora eles tão vindo pra cá, os policiais. E tem uma galera bêbada e gente na sala fumando uns negócios que eu nem sei o que é... Daniel, o que nós vamos fazer?

Daniel piscou algumas vezes depressa, um pouco aturdido.

— Como... Como você sabe disso?

— A filha da vizinha ligou pra cá avisando. Ela estuda no Apus e deve te conhecer, sei lá.

Daniel ficou parado por alguns segundos.

— Tá... Calma — ele passou a mãos pelos fios escuros do cabelo, os olhos flutuando sobre as pessoas ao redor. — Eu já passei por isso uma vez, então eu...

— Sério? — interrompi, ansioso;  se Daniel já tinha dado um jeito naquilo uma vez, poderia fazer de novo. — E o que você fez?

Ele coçou a nuca com um sorriso nervoso. — Eu meio que acabei na delegacia...

Eu olhei para ele estático. Provavelmente fiquei pálido porque ele me segurou pelos ombros com uma expressão preocupada. — Luca, não vai passar mal. Isso não vai acontecer de novo, nós não vamos pra delegacia, tá bom?

— Daniel, eles vão ligar pros nossos pais e nós vamos estragar a lua de mel e nós vamos ficar de castigo pelo resto da vida. Eu não vou ganhar presente de aniversário. Na verdade eu acho que eu vou ganhar, sim. E vai ser um soco do meu pai.

— Ninguém vai bater em você, Luca — Daniel apertou meus ombros com força. — Se acalme, tá legal?

— Vinte e três minutos de carro — Nando disse ao nosso lado, fazendo com Daniel e eu virássemos o rosto na direção dele.

— Quê? — Daniel perguntou confuso.

— O tempo da delegacia até aqui — expliquei, tomando a atenção dele enquanto tirava suas mãos dos meus ombros. — Pedi pro Nando procurar.

— Mas ela já ligou tem uns dez minutos — lembrou Nando. — Então nós temos só mais treze até eles chegarem.

— Já que você foi parar na delegacia da última vez — falei para Daniel como se estivesse dando bronca —, pelo menos você pode nos dizer o que não fazer.

— Ah, sim, eu... — Daniel levou a ponta da língua no canto dos lábios e franziu o cenho, tentando se lembrar. — Acho que eu neguei quando os policiais pediram pra entrar na festa. É, foi isso. Eu disse que eles precisavam de um mandado. Porque precisam mesmo. Mas sabem como são esses policiais de merda — Daniel bufou, revirando os olhos. — Eles entraram mesmo assim e acharam as bebidas e umas drogas que um pessoal tinha levado. Aí ninguém agiu como se eles tivessem feito algo de errado, porque o nosso “algo de errado” era a única coisa que estavam prestando atenção. Foi uma droga.

— Eu acho que eles estavam menos errados que você — comentei, aborrecido. — Enfim — sacudi a cabeça; não era hora de arranjar uma possível discussão com Daniel. — Como nós vamos deixar os policiais entrarem? Vai dar na mesma. Tá tudo errado aqui dentro também.

Daniel ficou quieto. Estava com os olhos fixos na água ondulante da piscina, como se estivesse maquinando um plano. Quer dizer, eu estava torcendo para que fosse isso mesmo. Seria péssimo se tudo o que estivesse passando pela mente dele naquele momento fosse algo como “merda, e agora?”. Porque eu estava tipo “merda, e agora?”.

— Eu já sei o que fazer — Daniel olhou para mim, decidido, depois se virou para o pessoal que estava reunido ali fora e gritou: — Galera! Preciso de vocês lá dentro agora! É rápido! E Rico? — Daniel chamou e um dos garotos ali perto gritou um “fala!” em resposta. — Traz a câmera!

— O que você vai fazer? — perguntei enquanto acompanhava seus passos ligeiros para dentro de casa, sendo seguido por Nando, que também olhava atento para Daniel.

— Eu vou explicar pra todo mundo de uma vez, nós não temos muito tempo.

Assenti, analisando o perfil de Daniel enquanto andávamos lado a lado. Ele parecia decido, e aquilo me deixava um pouquinho mais seguro. Era bem fácil confiar em Daniel quando ele parecia determinado daquele jeito, na verdade.

Daniel foi até a sala de estar, onde o DJ – um garoto ruivo que eu com certeza já tinha visto no colégio – controlava o som. Daniel se aproximou do garoto e falou algo perto da sua orelha. O ruivo assentiu e depois interrompeu a música, arrancando reclamações instantâneas das pessoas. Daniel subiu em uma das caixas de som para chamar atenção.

— Ei! Pessoal! — Daniel sacudiu os braços acima da cabeça para que todos o notassem ali, mesmo que ele já estivesse bem notável em cima da caixa de som enorme. — Surgiu um probleminha aí e vou precisar da ajuda de vocês pra resolver isso.

Algumas pessoas começaram a cochichar e então Daniel logo voltou a falar para não perder o silêncio nem a atenção que tinha conseguido.

— A nossa vizinha ligou pra polícia por causa do... — Daniel não conseguiu terminar a frase, sua voz foi imediatamente abafada pela falação quase desesperada que se formou logo depois da palavra “polícia”.

— Ou! Pessoal! — Daniel gritou alto e nem assim pararam de falar.

Senti alguém cutucando minhas costas e me virei, encontrando Vitor.

— O que tá acontecendo? — ele dividiu o olhar confuso entre mim e Nando.

— É o que o Daniel tá tentando explicar — respondi e, antes que Vitor pudesse perguntar qualquer outra coisa, ouvimos um barulho alto de assovio.

Olhei para Daniel outra vez e vi que ele usava os mindinhos para assoviar, como fez com as criancinhas que havíamos tomado conta naquela semana. E, como as crianças, todos ficaram em silêncio.

— Esperem eu terminar de falar, fazendo o favor ­— Daniel pediu sério, um pouco impaciente; as pessoas pareceram um pouco incomodadas com o tom dele e se calaram. — A polícia só vem por causa da música alta, e eles não podem entrar aqui sem um mandado — Daniel esclareceu e eu pude ouvir alguns murmúrios aliviados.

— Mas se os policiais desconfiarem que têm gente bêbada ou se eles sentirem cheiro de cigarro, de maconha ou seja lá o que vocês estiverem fumando, eles com certeza vão entrar aqui sem nem pedir licença — Daniel continuou a explicar. — Então, o pessoal das drogas aí: escondam isso muito bem e também escondam os seus amigos chapados. E o resto do pessoal: encontrem todas as garrafas de bebida perdidas por aí e levem pra cozinha que a gente vai dar um jeito de sumir com elas. E esvaziem todos os copos no banheiro e na cozinha e encham com refrigerante. — Daniel pausou por um segundo, parecendo procurar algo no meio da sua plateia. — Luca e amigos do Luca, Nathan e amigos do Nathan, vocês me ajudam na cozinha. O resto de vocês, se mexam! Vocês têm dez minutos!

Uma pequena comoção se formou ali na sala. Muita gente decidiu ir embora, mas a maioria das pessoas pareceu começar a trabalhar a favor do plano de Daniel, correndo para os lados e coletando garrafas.

Sinceramente, eu iria adorar se aquela festa acabasse ali mesmo, porque ela já tinha me arranjado problemas demais. No entanto, eu pensei em Daniel e em como ele se sentiria um fiasco se a festa dele terminasse daquele jeito.

Olhei para Nando e Vitor e fiz sinal para que eles me seguissem. Caminhei na direção da cozinha imaginando qual seria o plano de Daniel para nós. Eu esperava que tudo desse certo porque, querendo ou não, aquela era minha casa e eu não poderia simplesmente ir embora como o pessoal fujão. E também eu já estava muito emocionalmente preso a Daniel para abandoná-lo numa hora dessas.

Enfim reunidos na cozinha, nós éramos um pequeno grupo amedrontado, todos olhando para Daniel em expectativa. Ele não era o tipo de herói da pátria que eu gostaria de ter no momento, mas era o melhor e único disponível. Ao menos ele já tinha passado pela mesma situação e, mesmo que ele tivesse acabado na delegacia, já era um ponto a mais de experiência para ele.

— Você tá gravando tudo, Rico? — foi a primeira coisa que Daniel disse, olhando para o garoto de olhos grandes que segurava sua câmera nas mãos. Eu realmente quis socar a cara do Daniel.

— Tô, sim — Rico assentiu um pouco afobado. — Mas só tem mais meia hora de bateria.

— Você tá mesmo preocupado em gravar? — uma garota olhou feio para Daniel. — A gente tem um problema maior pra resolver agora.

— Dando certo ou não, essa festa vai me dar muitos views — Daniel justificou-se, e eu quis socar a cara dele outra vez.

— Foda-se os views, Daniel — outro garoto, de cabelos enrolados, falou irritado. — Quero que você me diga o que a gente vai fazer agora, antes que eu decida ir embora também.

— Nós precisamos esconder as garrafas — Daniel falou.

— Tá, mas onde? — perguntei.

— Na verdade eu chamei vocês aqui pra me ajudarem a pensar nisso.

Suspirei. Era só o que me faltava, Daniel não tinha um plano.

— E se nós jogássemos no quintal da vizinha? Por cima do muro. — um garoto loiro de cabelos curtos sugeriu.

— Você ficou maluco, Davi? — o menino dos cabelos enrolados fez uma careta para o loiro. — A gente não sabe se os vizinhos têm alarme. E o muro é muito grande pra escalar depois.

— Como assim escalar depois? — Davi perguntou.

— Pra pegar as garrafas de volta. Você não tava pensando em simplesmente deixar as garrafas jogadas na vizinha, tava?

— Talvez — Davi olhou para os próprios pés, constrangido.

— Idiota. Ela ia falar tudo pros pais deles depois — algum outro garoto aleatório falou.

— Gente, por favor. Nós temos sete minutos! — a garota de antes se pronunciou.

— E a área de serviço? — Vitor apontou para os fundos. — Nós podemos esconder as garrafas na máquina de lavar e nos armários, junto com os produtos de limpeza. Acho que nenhum policial ia se dar ao trabalho de ficar vasculhando esse tipo de lugar.

Todos concordaram em silêncio, admirados com a ideia de Vitor.

— Caramba, Vico — Nando olhou todo animado para ele, passando um dos braços ao redor do seu pescoço. — Você tem a mente de um criminoso!

Vitor revirou os olhos, soprando uma risada fraca.

E então, com uma ordem apressada de Daniel, todos nós começamos a trabalhar juntos. Na bancada da cozinha já havia um amontoado de garrafas de cerveja e algumas maiores de vodca. Enquanto as únicas duas garotas do nosso pequeno grupo de salvamento-de-festas ficavam com o papel de esconder as garrafas da melhor forma, nós, garotos, ficamos encarregados de transportar as garrafas até a área de serviço. Depois de dois minutos, Cadu e Madu surgiram, perguntando se precisávamos de ajuda. Pedi a eles que tirassem todos os refrigerantes da geladeira e começassem a servir àqueles que já tinham esvaziado a bebida alcoólica de seus copos.

— Cadê o Nando? — perguntei para ninguém em específico quando dei conta de que ele não estava ali.

— Eu pedi pra ele esperar lá fora e mandar uma mensagem pra você quando os policiais estiverem chegando — Daniel respondeu atrás de mim, com duas garrafas de vodca ainda cheias nas mãos. — Presta atenção no seu celular.

— Tá bom — assenti enquanto entrávamos pela provável quinta vez na área de serviço.

— Meninos, nós temos um problema — uma das garotas falou enquanto se aproximava segurando duas garrafas vazias de cerveja. — Não tem mais espaço aqui.

— Quê? — olhei nervoso para ela.

— Nós usamos tudo que dava, é sério, tinham muitas garrafas.

— E ainda tem bastante! — ouvi alguém falar atrás de mim e, quando me virei, reconheci Davi, Vitor e os outros garotos que tinham chegado e estavam parados atrás de nós.

— Não dá pra colocar no quarto de vocês? — a segunda garota se aproximou.

— Os quartos tão trancados e até a gente subir e destrancar... Nós só temos uns três minutos, não dá tempo — Daniel falou, aflito, olhando ao redor do jardim, provavelmente procurando um lugar para esconder as garrafas que restavam.

— Não dá pra jogar na piscina? — algum dos garotos deu a ideia.

Daniel negou com a cabeça. — Dá pra enxergar o que tem no fundo por causa das luzes.

 Respirei fundo e encarei meus tênis, nervoso, a adrenalina aumentando.

— Tá, eu tenho uma ideia — Daniel falou e eu levantei minha cabeça depressa na direção dele. — Vocês — ele olhou para os meninos atrás de nós. — Escondam tudo o que vocês puderem nos arbustos perto do muro e... — ele olhou ao redor, como se procurasse algo. — Cadê o Nathan? Eu preciso de alguém alto.

— Ali — Davi apontou com o queixo, uma vez que suas mãos estavam ocupadas com as garrafas. — Ele tá vindo.

Todos olharam na direção das portas da cozinha e, assim que vi Nathan se aproximando, me lembrei dele. Era o garoto que vivia na cola de Daniel e sempre olhava torto para mim.

— Nathan! Corre aqui — Daniel chamou e o garoto andou mais depressa. — Me ajuda a pegar aquela escada. Nós vamos esconder o resto das garrafas na calha.

Daniel indicou com o olhar a escada que tínhamos usado mais cedo para trocar as lâmpadas normais pelas de luz negra. Ela estava encostada na parede ao lado da máquina de lavar.

— Ok — Nathan falou tranquilo, e eu me perguntei como ele podia estar tão calmo em uma situação desesperadora como aquela e com um plano que tinha tudo para dar errado. — Onde eu deixo isso? — ele perguntou, olhando para as garrafas que carregava.

Daniel, que tinha já entregado as suas garrafas para uma das garotas e estava com as mãos na escada, olhou para Nathan e depois para mim.

— Dá pro Luca.

— Mas eu tô meio impossibilitado... — comecei a falar enquanto Nathan se aproximava, mas Daniel me interrompeu.

— Vai logo que nós não temos tempo!

Nathan largou duas garrafas grandes e cheias em cima de mim e foi ajudar Daniel. Abracei as duas como eu podia, tentando não deixar nenhuma das minhas cair. Encarei Nathan com raiva. E daí que ele era alto? Daniel não precisava de alguém alto se já iria usar a escada.

Vitor chegou perto e me ajudou, pegando para ele uma das garrafas que eu estava tentando não deixar cair. Agradeci e logo depois seguimos os outros garotos, que já tinham ido em direção aos arbustos.

Enquanto trabalhávamos todos juntos para esconder as garrafas, senti meu celular vibrar no bolso. Por mais que já estivéssemos no final do serviço, senti meu corpo congelar de medo e torci para que fosse apenas uma mensagem qualquer da operadora, falando que o plano da internet tinha esgotado.

Quando tirei o celular do bolso traseiro, vi o nome de Nando e desbloqueei a tela com o coração na garganta. A mensagem dizia que a viatura da policia tinha acabado de dobrar a esquina da rua de casa.

Procurei Daniel com os olhos, para avisá-lo. Ele tinha acabado de largar no chão o que parecia ser a última garrafa restante, e encarava Nathan que, usando sua grandessíssima altura, entregava garrafa por garrafa nas mãos do garoto de cabelos enrolados, que estava usando a escada para enfileirá-las na calha.

Corri até Daniel e mostrei a ele a mensagem de Nando. Ele avisou para todos ali que os policiais já tinham chegado e pediu para que se apressassem com as garrafas. Depois me pegou pela mão e me arrastou para dentro de casa, onde a música já estava tocando alta como antes.

Deve ter sido a caminhada mais difícil da minha vida, do jardim até a porta da frente. Mas a mão de Daniel na minha me dava segurança. Involuntariamente apertei nossas mãos juntas, tentando segurar aquela sensação, aquele instante. Provavelmente por causa da adrenalina, parecia que tudo estava acontecendo em câmera lenta. Os segundos antes de nos ferrarmos, a minha mão na dele, a visão de Daniel caminhando na minha frente, o vislumbre dos policiais chegando lá na porta. Ali na porta. As luzes vermelhas e azuis piscando lá fora.

O homem que cuidava da entrada fez sinal para que Daniel se aproximasse, os policiais esperavam ao lado dele. Antes de chegarmos lá, Daniel se virou para mim e disse para eu deixar tudo com ele e ficar quieto.

Assim que nos deparamos com os dois policiais na porta, Daniel soltou minha mão.

— Vocês são os responsáveis pela festa? — sem cumprimentos, um dos policiais foi direto ao assunto; ele me olhou por um segundo e depois encarou Daniel com os olhos desconfiados, como se ele fosse um criminoso. Eu precisava concordar que Daniel realmente tinha cara de delinquente.

— Sim, algum problema? — Daniel respondeu sem demonstrar estar amedrontado com o olhar do policial.

— Nós recebemos uma reclamação sobre o volume da música — o mesmo policial respondeu enquanto o policial-número-dois tentava espiar a festa por trás dos nossos ombros. — Som alto é proibido depois das vinte e duas horas, garoto.

— Eu vou pedir pro DJ abaixar o volume, pode deixar.

 — Hm — o homem assentiu e olhou para dentro de casa com os mesmos olhos desconfiados.

— Vocês são irmãos? — o policial-número-dois perguntou.

Daniel e eu respondemos ao mesmo tempo, respectivamente:

— Sim.

— Não.

Depois nos corrigimos em uníssono também:

— Não.

— Sim.

Daniel me encarou impaciente como quem diria “eu não te disse pra ficar quieto?”.

— Na verdade — Daniel voltou os olhos para os dois policiais, que nos olhavam com as sobrancelhas juntas. — Nossos pais se casaram nesse mês, então nós não somos exatamente irmãos. A gente ainda não se acostumou com isso, sabe.

— E por falar nisso, onde estão os pais de vocês?

— Eles não quiseram ficar aqui por causa da festa, do barulho e tal, e decidiriam sair pra jantar e dormir fora hoje.

— Então eles sabem sobre a festa?

— Ah, sim — Daniel afirmou como se nunca tivesse nem passado pela cabeça dele que nossos pais não estavam sabendo daquilo. — Eles sabem.

— Vocês se importam se entramos pra dar uma olhada? — o policial-número-um perguntou enquanto eu tentava controlar os músculos do meu rosto para não fazer uma careta de pânico.

Daniel deu de ombros, abrindo passagem para os policiais.

— Ah! — Daniel exclamou antes que eles continuassem. — Os quartos lá em cima tão trancados, mas se vocês quiserem dar uma olhada lá, as chaves são essas... — ele pegou a chave dos nossos quartos do bolso da calça e entregou nas mãos do policial-número-dois, que assentiu e, depois de lançar um olhar para seu parceiro, seguiu para as escadas.

Seguimos o policial-número-um enquanto ele fazia sua ronda pelos cômodos. Ele pegou alguns copos aleatoriamente para experimentar o que tinha dentro, e cada vez eu me sentia nervoso, imaginando se a pessoa teve tempo de trocar a bebida alcoólica por refrigerante.

Foi no instante em que o policial pisou do lado de fora da cozinha que eu me senti realmente nervoso. Torci para que ele não quisesse chegar perto dos arbustos ou olhar para cima, porque a calha estava repleta de garrafas. O homem fardado foi até o final do jardim, analisou brevemente a churrasqueira do lado direito, depois percebeu as portas fechadas do banheiro e da área de serviço do lado esquerdo.

Por mais que todo mundo ali fora estivesse tentando parecer naturalmente descontraído – como se um policial dando uma volta por ali não fosse nada demais –, foi óbvia a tensão que se fez quando o homem tocou na maçaneta de uma das portas.

 Para o alívio geral, o policial deu apenas uma olhada rápida em cada um dos pequenos cômodos antes de fechar as portas e começar a andar de volta para a cozinha. Durante o caminho, notei que as garotas na piscina tentavam chamar atenção do policial, rindo alto e ajustando os biquínis nos seios. Aquilo deu muito certo e eu agradeci pelo policial ser um tarado, porque se ele experimentasse olhar para o telhado e visse todas as garrafas na calha nós estaríamos perdidos.

Assim que chegamos exatamente abaixo da calha, o policial parou de andar de repente e se virou para mim e Daniel. Meu estômago revirou e eu jurei que ele tinha descoberto nosso plano.

— Bom — ele pigarreou, olhando para a piscina, e eu suspirei aliviado; aparentemente ele só queria dar mais uma espiada nas garotas. — Acho que está tudo certo por aqui, só não se esqueçam de diminuir o volume da música.

Daniel concordou e logo em seguida o homem tirou o walkie-talkie (quem ainda usava aquilo?) que estava preso no cinto e chamou pelo seu colega, que respondeu dizendo que já estava descendo.

Eu não vi problema nenhum em esperar ali, porque se o policial era um tarado que queria ficar olhando as garotas, nós tínhamos uma garantia de que para calha ele não olharia.

Só que, como se o universo não estivesse satisfeito com a quantidade de merda que já tinha acontecido, notei que a garrafa que estava exatamente acima do policial balançou como se fosse cair, e naquele instante eu achei que estava tudo perdido. Me senti um inútil por não ter feito o trabalho de colocar as garrafas na calha eu mesmo, porque eu não queria sentir raiva do coitado que ficou com o serviço. Não era culpa dele, calhas não são feitas sob medida para garrafas de vodca.

Daniel também percebeu a garrafa tombando lentamente para frente, provavelmente por causa da minha reação ao olhar para aquela tragédia predestinada. Não tinha mais o que fazer, nós não tínhamos mais tempo para qualquer reação. Em um segundo aquilo cairia na cabeça do policial e então, depois de trazerem uma ambulância para levar o policial desmaiado para o hospital, todos nós acabaríamos na delegacia por porte ilegal de bebidas alcóolicas, drogas ilícitas e por tentativa de homicídio. 

Eu já estava assimilando a queda quando a garrafa pendeu até quase o limite que permitia a gravidade e parou quietinha. Eu quase me permiti ficar feliz, não fosse a constatação que fiz logo em seguida: ela estava sem a tampa. E estava quase cheia. E o líquido estava prestes a escorrer. Prendi a respiração e desviei os olhos na direção de Daniel para não precisar ver aquilo. Mas Daniel não estava mais ali.

Quando olhei para frente outra vez, Daniel tinha acabado cobrir o policial com o guarda-sol que há cinco segundos estava largado perto da piscina. O único pensamento lógico que eu poderia ter sobre a agilidade de Daniel era que, muito antes de mim, ele já tinha percebido que 1) a garrafa não cairia e que, além disso 2) ela estava destampada.

Só que aquilo ainda não fazia nenhum sentido para o policial ou para qualquer um ali que não tivesse sacado o que estava acontecendo. A desconfiança surgiu estampada no rosto do mais velho.

— Você não tá sentindo? — Daniel estendeu uma das mãos espalmadas na direção do céu noturno. — Acho que vai começar a chover.

Até Daniel falar aquilo, enquanto eu via a expressão do policial, eu estava pronto para concordar com qualquer absurdo que Daniel resolvesse inventar como motivo para ele ter levantado o guarda-sol em cima da cabeça do policial. Eu faria qualquer coisa para ajudá-lo a parecer convincente. Mas de onde eu ia tirar chuva?

E então, por algum milagre, no mesmo instante em que o policial concentrou seu olhar em Daniel – que engolia em seco e parecia muito, muito nervoso – eu me lembrei de uma coisa. Aproveitei que ninguém estava prestando atenção em mim e sim no maluco com o guarda-sol e corri para dentro de casa.

No primeiro dia de mudança, ainda enquanto meu pai e eu esperávamos por Amora e Daniel, eu encontrei um painel perto das escadas. Meu pai disse algo sobre aspersores de água que o antigo dono havia instalado para molhar a grama e as plantas do jardim. Nós não tínhamos nem tocado naquilo e eu não sabia se estava funcionando, mas era a única coisa que podia salvar a pele de Daniel e de brinde também a minha.

Cheguei ao painel depois de cinco segundos de corrida desesperada e liguei todos os botões no máximo, rezando para que ainda existisse água para o encanamento reservado para aquele troço.

Eu mal tinha desencostado meus dedos dos botões no painel quando escutei um tumulto de gritinhos e exclamações na direção do jardim. Olhei para fora e vi as pessoas correndo afobadas para dentro, cobrindo os cabelos que já estavam meio molhados. Aparentemente, os aspersores de água estavam fazendo o seu trabalho mais do que bem.

Daniel tratou de empurrar o policial para dentro também e depois jogou o guarda-sol na calçada. Olhei atrás dos dois e consegui ver o exato momento em que a garrafa de vodca finamente caiu, e um dos amigos de Daniel estava preparado para pegá-la no ar e depois a lançou direto para piscina.

Exalei o ar, aliviado, como se estivesse prendendo a respiração esse tempo todo. Vi quando a última pessoa atravessou as portas de vidro da cozinha e depois as fechou, já que a água estava chegando até ali. Logo em seguida Daniel passou em minha frente, andando lado a lado ao policial, que enxugava o rosto molhado com a manga da própria farda.

Daniel estava molhado também, mas parecia tão aliviado que mal parecia sentir as gotas de água escorrendo pelo seu rosto e pescoço. Quando notou que eu estava o encarando, mudou sua expressão e semicerrou os olhos com um sorriso travesso, como se soubesse que eu tinha feito aquilo, mas estivesse curioso mesmo assim sobre como eu tinha conseguido. Eu sorri para ele de volta, mas nós não tivemos muito tempo para dividir um sorriso porque ele olhou para as escadas e ficou sério novamente, já que o policial-número-dois tinha acabado de descer e estendia as chaves dos quartos de volta para Daniel.

Fiquei parado ao lado do painel, respirando fundo, tentando acalmar os ânimos enquanto observava Daniel levando os policiais até a porta da frente. Aquela tinha sido por muito, muito pouco. Alguns instantes depois, Nando e Vitor me encontraram. Estavam obviamente anestesiados com toda a situação, cada um do seu jeito: Vitor piscava devagar olhando para todos os lados, como que para conferir que aquilo tudo era real; Nando estava bem mais agitado que o normal, quase pulava ao invés de andar.

— Não sabia que vocês tinham sprinklers! Cara, aquilo foi louco! Eu vi quando a garrafa ia cair e quando o Daniel correu pra pegar o guarda-sol e tudo! Cara, aquilo foi louco!

— Foi você que ligou os sprinklers? — Vitor perguntou.

— Sim. Nem sei como eu fui me lembrar disso. Eu só corri pra cá e liguei. Não sabia se ia dar certo ou não.

— Você fez tudo muito rápido! — Nando me encarava com admiração. — Você e o Daniel! Pareceu até que vocês já tinham combinado tudo, tipo um plano B!

Nesse instante a música aumentou e Daniel chegou. Tinha desamarrado a camisa de flanela da cintura e estava usando-a para se enxugar.

— Não sabia que a gente tinha sprinklers — ele falou alto, por cima do volume da música.

— Foi o que eu disse! — Nando gritou empolgado. — Cara, vocês salvaram a festa. Sério, vocês salvaram minha vida hoje! Agora vou poder buscar a Mei! Valeu, cara!

Nando deu um pulo sobre mim e me deu um abraço meio molhado.

— Nando, você tá me molhando!

— Buscar quem? — Daniel franziu o cenho, olhando para Vitor.

— Sua vizinha da frente, mais conhecida como o amor da vida do Nando.

— Foi ela que ligou avisando de tudo?

— Foi — respondi no lugar de Vitor, desgrudando Nando de mim. — Não se esquece de agradecer a Mei, Nando. Na verdade foi graças a ela que não fomos parar na delegacia.

— Beleza, eu agradeço. Você vem comigo, Vico?

— Você não quer aproveitar a oportunidade pra ir sozinho? — Vitor parecia estar com preguiça de ir.

— Você espera no portão, que tal? Eu preciso de apoio moral. Se eu começar a falar um monte de merda você precisa estar lá pra me mandar calar a boca.

— Tá, vamos. Mas você vai ter que ficar sozinho com ela em algum momento, você sabe.

— Sei! Com todo o prazer!

Vitor revirou os olhos enquanto eu e Daniel dávamos risada.

— Vocês querem se secar antes? — perguntei. — Eu posso buscar umas toalhas no banheiro lá em cima.

— Não precisa! Tá calor. E eu tô com pressa! Vambora, Vico.

Vitor deu de ombros, resignado. — Bom, acho que eu não tenho opção nesse caso. Nós voltamos logo.

— Eu vou buscar as toalhas mesmo assim, pra quando vocês chegarem. Cuidado pra não serem pegos! — falei mais alto enquanto eles caminhavam para sair dali. Nando olhou para mim e fez um OK com uma das mãos antes de sumir de vista com Vitor no meio das pessoas.

Dei risada e depois encarei Daniel, que olhava para mim com um sorriso.

— Eu sei. De nada.

Daniel riu. — Como você pensou tão rápido?

— Eu ia te perguntar a mesma coisa — me virei para o painel e comecei a colocar os botões em off, um por um. — Em um segundo você tava do meu lado e no outro tava segurando o guarda-sol em cima do policial.

— O mesmo vale pra você. De repente você tinha sumido e ainda fez o policial acreditar em mim, por causa desses sprinklers que eu nem sabia que existiam.

— Eu não sei como fui me lembrar disso. Meu pai me falou sobre eles no dia que nos mudamos pra cá, e quando você disse “chuva” isso me veio na cabeça. Eu tava com medo de que não fosse funcionar. Devo ter estragado alguma coisa, liguei tudo no máximo de uma vez.

— Não é como se nós fossemos usar isso, mesmo.

— Sua mãe não gosta de flores? Ela poderia plantar algumas se soubesse que nós temos sprinklers.

Daniel estalou a língua e negou, balançando a cabeça. — Ela é muito prática. E ocupada demais com o trabalho. Todas as plantas que nós tivemos morreram porque ela não soube cuidar.

— Minha tia tem uma floricultura. Acho que é o meu lugar preferido no mundo. Ela disse que me daria uma muda de árvore pra plantar no jardim, se eu quisesse.

— Vai demorar séculos pra crescer.

— Eu não me importo, acho que eu já ficaria feliz em plantar uma árvore. E eu também posso pegar uma árvore bebê, já crescida. Demoraria menos.

Fechei o painel e olhei em volta. Havia muita gente tentando se secar com guardanapos e nossas toalhas de louça.

— Acho que é melhor nós buscarmos umas toalhas no banheiro.

— Nós? — Daniel fez um careta de cansaço.

— Claro, a festa é sua, os convidados são seus e eles estão usando as toalhas de louça que a sua mãe comprou pra se secarem. Eu deveria mandar você sozinho.

— Tá certo, vamos lá.

Comecei a caminhar até as escadas e Daniel seguiu atrás de mim. Enquanto eu subia os degraus, Daniel gritou para todos que podiam voltar lá pra fora porque os sprinklers já tinham sido desligados.

No andar de cima a música não era tão alta, e não havia quase ninguém por ali já que eu e Daniel fizemos questão de trancar todos os quartos (não queríamos ninguém usando nossas camas para fazer coisas indecentes).

Entramos no banheiro e pegamos todas as cinco toalhas que estavam no armário.

— Acho que isso é pouco.

— Tem mais no meu quarto — Daniel informou enquanto segurava todas as toalhas ao mesmo tempo em que estendia para mim as chaves do quarto que tinha pegado de volta do policial. — Quer ir lá pegar?

Peguei a chave e disse para Daniel que já voltava. Entrei no quarto dele e fui até seu closet, mas não encontrei nenhuma toalha.

— Achou? — ouvi Daniel dizendo e depois o barulho da porta do quarto se fechando.

— Não — falei ainda dentro do closet, tentando forçar meus olhos em todos os cantos; eu era o tipo de pessoa que não enxergava coisas mesmo que estivessem debaixo do meu nariz. — Tem certeza que você tem toalha aqui, Daniel?

— Talvez eu tenha usado a última hoje — ele disse enquanto surgia na porta e olhava em volta. — É, não tem.

— Eu também não tenho no meu quarto.

— Achei que fôssemos sobreviver sem precisar lavar roupa antes de a minha mãe voltar — ele disse enquanto nós saíamos do closet, eu atrás dele. — Mas se dermos essas toalhas agora, vamos ficar sem nenhuma.

— Bom, a gente pode fazer isso amanhã. Lavar roupa, eu digo. Se bem que eu queria tomar um banho antes de dormir e ia precisar de uma toalha.

Daniel tinha deixado as toalhas em cima da cama dele, e eu fui pegá-las, mas ele caminhou até sua bancada e começou a revirar as gavetas.

— O que você tá procurando? Toalhas na gaveta?

— Minha bateria reserva. O Rico disse que tá acabando. — Daniel respondeu e depois olhou brevemente para mim. — Você quer ir na frente com as toalhas?

— Não — falei enquanto sentava na cama. — Eu tô cansado dessa festa já. Aqui não tem tanto barulho.

Me joguei de costas na cama de Daniel e no mesmo instante o cheiro dele se desprendeu das cobertas e dançou pelo ar. Suspirei, ouvindo o barulho dele revirando as gavetas e as batidas abafadas da música no andar de baixo.

Comecei a pensar nas coisas malucas que tinham acontecido até aquele momento. Ri sozinho quando repeti na mente a cena do Daniel com o guarda-sol, cobrindo o policial. Tinha dado tudo certo, então agora era engraçado. Pensei em Nando, que deveria estar ajudando a amada a pular a janela de casa para fugir para a festa. E então pensei em Matheus.  Não fazia ideia de onde ele poderia estar. Eu estava me sentindo culpado. Talvez, se Daniel não tivesse feito uma cena na cozinha aquela hora...

— Daniel? — chamei, franzindo o cenho ao me lembrar de como ele tinha agido com Matheus, quando estávamos nós três na cozinha.

— Hm? — ele murmurou distraído.

— Você não tava bêbado?

— Só bebi duas latas de cerveja, não dá pra ficar bêbado com isso.

— Mas... E aquela hora na cozinha? Você parecia bem bêbado pra mim.

Daniel deu risada.

— O que foi? — perguntei. — Qual é a graça?

— Eu não tava bêbado. Só tava fingindo.

Imediatamente descolei minhas costas da cama e, sentado, encarei as costas de Daniel enquanto ele ainda remexia as gavetas.

— Como assim fingindo? Por que você fez isso?

— Eu só tava dando uma provocadinha naquele seu amigo possessivo idiota. Você já notou, não notou? Que ele gosta de você.

— Eu não acredito que você fez de propósito! — me pus de pé, olhando para Daniel com raiva. — Meu Deus, Daniel. Quando eu acho que você tá um pouco mais maduro você faz um negócio desses. Você sabe o que você causou fazendo isso? Nós discutimos e ele tava com tanta raiva de mim. Por sua culpa!

— Minha culpa é o cacete! Ele nem tava com raiva de você, imbecil. Ele tava com raiva dele mesmo por ser tão covarde, aposto.

— Ele não tava sendo covarde, ele tava tentando salvar nossa amizade! E você foi lá provocar e estragou tudo! Talvez ele nem fosse falar nada de gostar de mim se não fosse por você. Que droga, Daniel. Agora eu nem sei onde ele tá, não consegui encontrar ele em lugar nenhum...

— Você foi atrás dele? — Daniel finalmente deixou o que estava fazendo de lado e se virou para mim.

— É claro que eu fui! Ele é meu melhor amigo!

— Que amigo, o quê, Luca? Ele só quer pegar você.

— Cala a boca, Daniel! O Matheus não é como você, que fica pegando e largando as pessoas quando bem entende. Se ele disse que gosta de mim então ele realmente gosta. Ele não ficaria comigo pra depois me jogar fora.

— Você agora tá pensando em dar uma chance pra ele, é?

— Não é isso!

— Mas é o que parece! Você ficou todo sensível depois de ouvir que ele gosta de você e ainda foi correr atrás dele. Qualquer um entenderia isso como amor correspondido.

— Eu não gosto dele desse jeito, droga. Eu faço isso porque eu me preocupo com ele!

— E por que você se preocupa tanto com ele?

— E por que você se importa tanto com isso? Você nem deve saber o que é se preocupar com alguém de verdade! Você nunca deve ter nem pensado em alguém além de você mesmo, egoísta do jeito que você é!

— Agora você vai ficar se achando só porque todo mundo se apaixona por você? Você me chama de egoísta, mas é o único que não tá enxergando as coisas aqui.

— Eu não tô me achando coisa nenhuma. Não tem essa de “todo mundo se apaixonando por mim”, só foi o Matheus. Ele foi o primeiro garoto que disse que gosta de mim!

— Isso porque eu não consegui te dizer isso antes! — Daniel desabafou frustrado e eu senti meu coração falhar uma batida. — Eu gosto de você, Luca.

Esqueci como se respirava, esqueci como se falava, esqueci onde eu estava. Apenas fiquei olhando para Daniel enquanto ele olhava para mim, dentro de um tipo de transe surpreso e novo. Até tentei falar qualquer coisa, mas eu só consegui abrir e fechar a boca algumas vezes, como um idiota.

Levei um susto quando senti Daniel tocando o meu braço suavemente. Eu estava tão em choque com o que ele havia dito que mal notei quando ele se aproximou. Olhei para a mão dele no meu braço e depois para seu rosto, que de repente estava tão perto do meu.

— Me desculpa, Luca — Daniel levou as mãos até minhas bochechas e depois ajeitou meus cabelos atrás das minhas orelhas, e eu comecei a entrar em pânico porque Daniel sempre fazia aquilo quando o objetivo dele era me beijar; como aquele dia depois do casamento e no outro dia dentro do carro.

— Pelo que exatamente? — perguntei; meu coração estava acelerado, as pernas tremendo, moles feito gelatina.

— Por ter sido um babaca com você — ele estava segurando meu rosto com as duas mãos, fazendo com que eu não tivesse outra alternativa senão olhar em seus olhos. — Eu tava com medo.

Franzi o cenho. — Medo?

— Do que eu tava sentindo por você — Daniel explicou, olhando aflito para mim, como se eu não fosse entendê-lo. — Era estranho e novo e forte e... Eu sou um idiota e tava tentando fugir disso.

— Pra mim também foi novo e estranho e... forte — admiti, tímido. —, mas nem por isso eu agi feito um idiota!

— E por que você acha que eu tô me desculpando, droga?

Abri a boca para dizer alguma grosseria para rebater a grosseria de Daniel, mas acabei por dar risada. Era incrível a facilidade com que Daniel e eu começávamos uma briga sem sentido. Daniel riu também, como se soubesse o que eu estava pensando. E muito de repente e rapidamente ele me puxou para perto e juntou seus lábios com os meus.

Quando sua língua esbarrou na minha, minhas pernas perderam toda a força, e me agarrei do jeito que podia em Daniel, passando meus braços por cima dos ombros dele. Enquanto me beijava com uma vontade que eu não sabia se era capaz de suportar, Daniel me segurou pela cintura e colou nossos corpos. Eu poderia derreter nos braços dele naquele instante, eu tinha me esquecido o quão incrivelmente bom era beijar Daniel. Aos poucos, à medida que nosso beijo se tornava mais lento, Daniel dava pequenos passos, me empurrando devagar até a parede atrás de nós.

Quando nos separamos, Daniel me encarou intensamente; seus cinzazuis estavam num tom mais escuro, e seus lábios estavam corados.

Eu sentia as batidas da música vibrando nas minhas costas através da parede, chegando em ondas no meu peito, mais reguladas que meu ritmo cardíaco ou o ritmo da minha respiração, que estavam descompassados, desregulados, des-qualquer-coisa; indo rápido e chegando barulhento aos ouvidos, como quando se pode escutar as batidas do coração no travesseiro. A etiqueta da blusa que eu usava começou a irritar a pele da minha nuca. Eu estava cem por cento consciente do meu corpo, do corpo dele, das minhas costas na parede, as outras paredes ao nosso redor, dos meus pés no chão. Daniel fazia interferência na minha perspectiva gravitacional, e tudo ficava pesado e flutuante ao mesmo tempo.

Agarrei os cabelos de sua nuca, o trazendo para perto novamente para que eu pudesse beijá-lo mais. O cheiro dele, a textura dos cabelos dele nos meus dedos, a boca dele. Ele. Era perfeito, era o meu lugar no mundo.

Então, de repente, ouvi o barulho da porta se fechando. Empurrei Daniel assustado. Como a porta poderia ter fechado se ela já estava fechada?

— Daniel, e se alguém...? — olhei para ele em pânico.

— Merda — Daniel praguejou e depois saiu em disparada para fora do quarto, atrás de um possível espião de beijos.

Fiquei parado encarando o nada, as pernas bambas ainda, pensando se eu deveria mesmo ter beijado Daniel. Seria o meu fim se alguém tivesse mesmo nos visto e depois resolvesse contar para todo mundo. Não pude pensar tanto sobre aquilo porque Vitor entrou no quarto pouco tempo depois, perguntando se eu sabia o motivo pelo qual Daniel tinha saído correndo atrás de uma garota.

Tentei não demonstrar meu desespero, e simplesmente disse que não sabia, me virando para pegar as toalhas em cima da cama.

— Aconteceu alguma coisa? — Vitor se aproximou para me ajudar com as toalhas, tentando me olhar nos olhos. — Vocês brigaram?

— Não — respondi, evitando os olhos analistas de Vitor, mas logo raciocinei melhor e percebi que era melhor dar  algum motivo à Vitor para eu estar daquele jeito. — Quer dizer, mais ou menos. Você sabe como eu e o Daniel somos.

— Sei... — Vitor ficou me encarando enquanto eu me esforçava para parecer ocupado com as toalhas; parecia óbvio para ele que eu estava mentindo, mas eu não podia simplesmente contar a verdade para ele. Vitor suspirou. — Nando tá com a Mei lá em baixo. Quer conhecer ela?

Finalmente consegui encará-lo, sorrindo grato por ele ter mudado de assunto. Assenti e então nós saímos do quarto.

Mei era uma garota realmente linda, tinha olhos puxados e cabelos escuros compridos e muito lisos. Ela estava usando pijamas e parecia extremamente constrangida por isso. Logo que me cumprimentou, Mei pediu desculpas por estar vestida daquele jeito, justificando-se com o pouco tempo que teve para fugir de casa.

— Não se preocupe, o seu pijama é tão legal que nem parece um pijama — falei enquanto tentava não rir de um Nando superanimado ao lado dela. — Eu tenho pijama de criança e uma vez o Daniel tirou uma foto minha usando ele e mostrou pra um monte de gente.

Mei deu risada. — Obrigada, eu tô me sentindo um pouco melhor.

Sorri para ela de volta e logo Nando começou algum assunto, algo sobre comida, fazendo Mei rir e Vitor revirar os olhos. Não consegui prestar muita atenção na conversa porque estava preocupado com Daniel. Meus olhos iam e vinham pela sala, tentando encontrá-lo em algum canto.

Entre uma olhada e outra, acabei descobrindo onde Daniel estava. Arregalei os olhos com o que vi, totalmente descreditado e dolorosamente magoado. Senti meu nariz pinicando por causa das lágrimas que começavam a se acumular nos cantos internos dos meus olhos.

— Aquela é a garota que Daniel tava perseguindo mais cedo — Vitor apontou para a garota que estava com Daniel enquanto Nando estava ocupado em uma conversa empolgada com Mei. — Acho que a gente descobriu o porquê de ele estar correndo atrás dela, então.

— É — concordei com a voz trêmula, tentando não me sentir um inútil descartável enquanto encarava Daniel aos beijos com a garota. — Provavelmente.


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Notas finais do capítulo

Nota1: Eu terminei esse capítulo e pensei “nossa, que viagem”, mas aí pensei mais uma vez e isso é ficção (mesmo que ficção do dia-a-dia), e ficção serve pra gente se divertir e por que não esconder as bebidas na calha????
Nota2: Antes de virem com as pedras pra cima do Daniel: ele tem motivos pra ser babaca!! Vamos esperar até que seja o momento de conhecer os motivos dele, eu peço compaixão em nome desse menino, obg.

E, falando nisso, alguns dos meus rascunhos antigos de Além de Irmandade estão escritos pelo ponto de vista do Daniel. Tipo, com ele narrando ao invés do Luca. A princípio eu iria deixar isso de fora da história e fazer do Luca o narrador único até o fim (como é de minha preferência). Mas às vezes eu penso que seria até legal vocês saberem como funciona a mente do Daniel ou os motivos pra ele fazer as coisas que faz. Só que eu também fico imaginando que seria muito mais legal que vocês descobrissem quem realmente o Daniel é junto com o Luca, por mais que ele seja meio lento e exagerado.
Eu realmente fico em dúvida pensando sobre isso, porque lendo meus rascunhos antigos, eu sinto que o ponto de vista do Daniel é muito precioso e engraçado, mas poderia quebrar um pouco da surpresa ou do ritmo que eu construí e venho construindo pra essa história, que é intensa e lenta, assim como a personalidade do nosso Luca. Quem sabe eu possa fazer um único capítulo especial com o ponto de vista do Daniel. Ou algo extra fora da fanfic, tipo alguns momentos que eu acabei não incluindo na versão final do capítulo por serem muito independentes da história. Eu não sei. Falei tudo isso só pra chegar aqui e pedir ajuda pra vocês. Deem suas opiniões sobre isso, se possível :)
Obrigada por lerem e até a próxima!