Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 13
Longe de casa


Notas iniciais do capítulo

Gente, eu devo ser a única pessoa que odeia férias, porque sem a rotina do dia-a-dia eu não consigo ter também uma rotina pra escrever e nem pra nenhuma outra coisa. Eu fiz e refiz esse capítulo muitas vezes pra atingir a qualidade que eu esperava de mim mesma, e por isso demorei.

Obrigada à juliana banana pela recomendação! Fiquei super feliz ♥
Boa leitura :3



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606178/chapter/13

— O que você tá fazendo aqui? — encarei Matheus, perplexo.

Eu não queria ser grosseiro nem nada, mas “o que você tá fazendo aqui?” foi uma daquelas frases espontâneas que mal se pensa e já se fala. O tipo de coisa que se diz em voz alta exatamente ao mesmo tempo em que o cérebro ainda está tentando converter sentimentos em palavras.

E para alguém que tinha sido pego de surpresa, não era tão ruim assim soar um pouco rude. Quer dizer, era o Matheus parado em frente à porta da minha casa, a centenas de quilômetros da cidade dele. Do nada! E ele ainda estava impressionantemente bem arrumado, usando mocassins e uma camisa de botões azul-marinho. Eu nunca tinha visto Matheus usando nada mais formal que uma camiseta com estampa de gravata debaixo de um terno mais-ou-menos em nossa formatura da oitava série.

— Você deveria ser mais educado com as visitas, sabe — Matheus me encarou de cima com seus olhos verdes e um arzinho de quem está se divertindo muito às custas do embaraço alheio (no caso o meu). — Ainda mais porque resolveu dar uma festa e não chamou os amigos.

— É o Daniel quem tá dando a festa, não eu — falei na defensiva; minha voz estava um pouco insegura e travada porque eu ainda estava tentando assimilar a imagem do Matheus bem ali na minha frente. — E, também, eu não imaginei que você viria até aqui só por causa de uma festa.

— Não é por causa da festa, Luca — Matheus revirou os olhos e logo em seguida seguiu com o assunto: — E eu já sei quem é o anfitrião. Quem você acha que me convidou?

Olhei descreditado para ele. — O Daniel te convidou?

Matheus apenas assentiu, com seus ombros um pouco encolhidos. Sua expressão corporal estava meio “eu não quero falar sobre isso”, mas não era como se algo assim fosse me impedir de especular:

— E como é que vocês dois se falaram?

— Eu te conto a história toda se você me deixar entrar — Matheus se espreguiçou como se estivesse realmente cansado.

— Foi mal, pode vir comigo — me virei para o cara que cuidava dos convites e disse a ele que Matheus era mesmo o meu amigo e não um penetra; ele simplesmente assentiu e nos deixou passar.

Atravessamos o hall e depois a sala, que estava lotada de pessoas brilhando na luz negra com seus rostos e braços pintados de tinta fluorescente. Tomando cuidado para não levar nenhuma cotovelada de quem estava dançando, levei Matheus até a cozinha, onde as coisas estavam menos tumultuosas.

Assim que colocamos os pés para dentro do cômodo, sequer tive tempo de perguntar se Matheus queria beber ou comer alguma coisa: ele simplesmente me puxou pelo braço e me abraçou.

Franzi o cenho, com os braços ainda soltos, tentando entender o porquê de Matheus estar fazendo aquilo. Tudo bem que nós não nos víamos há alguns meses, mas Matheus fazia o tipo frio-congelante, que não abraçava nunca. A última vez que tínhamos dividido um abraço foi no funeral da avó dele. Quer dizer, Matheus não abraçava nem no dia do próprio aniversário. Mas se Matheus já era um desastre para demonstrar afeto, eu era um desastre e meio. Então a pessoa estranha entre nós dois naquele momento era eu, por reagir com exagero a um abraço, e não ele por estar abraçando.

— Eu sei que eu não sou muito disso — disse Matheus enquanto me apertava forte —, e sei que você também não é, mas será que dá pra fazer com que esse abraço seja menos platônico? 

Dei risada e correspondi ao abraço, apoiando meu queixo no ombro dele, dando tapinhas em suas costas. Sentir o perfume do Matheus era estranhamente nostálgico. Provavelmente porque eu já tinha me acostumado com a nova cidade e as novas pessoas como se tivesse vivido ali desde sempre, e ele, por si próprio, tinha se transformado em algo nostálgico para mim. Era bem esquisito que ele estivesse ali, na verdade. Como uma peça antiga em um ambiente novo. Mas era um esquisito confortável, como se ele trouxesse com ele um pouquinho da sensação de estar de volta em casa.

— Ok — afastei Matheus, desfazendo o abraço que já tinha durado os vinte segundos que os especialistas recomendam para produzir aquelas substâncias da felicidade, e, logo em seguida, arrastei uma das banquetas para que ele pudesse se sentar. — O que você quer beber?

Enquanto se ajeitava no assento, Matheus deu uma olhada na bancada cheia de garrafas de bebida alcoólica. Ele ergueu as sobrancelhas e me encarou como se tivesse mentalmente concluído que eu havia comprado tudo aquilo sozinho.

— Eu já disse que a festa é do Daniel, não me olha assim.

Matheus riu anasalado e depois torceu os lábios, como fazia quando estava pensando. — Bom, eu tô dirigindo hoje... — ele falou casualmente, o que era estranho porque ele tinha a mesma idade que eu e, portanto, não podia “estar dirigindo”. — Então qualquer coisa não alcoólica pra mim tá valendo.

— Como assim dirigindo? — questionei enquanto buscava o refrigerante intocado na geladeira. — Você ainda não tem carteira de motorista.

— Na verdade, eu tenho, sim — ele se esticou sobre a bancada para pegar um copo da pilha de copos plásticos e depois olhou para mim. — Eu comprei uma.

— Comprou uma...? — fechei a geladeira com uma garrafa de Coca nas mãos, encarando Matheus com as sobrancelhas levantadas. — Não sei se você sabe, mas isso é ilegal.

— Pois é. Imagina que desgraça seria se eu estivesse dirigindo ilegalmente e ainda por cima estivesse bêbado! Por isso hoje eu só vou ficar com o refrigerante.

— Meu Deus do céu, Matheus. Isso é perigoso. Já pensou se, sei lá, você morre num acidente vindo pra cá?

— Qual é? Você sabe que eu dirijo desde os doze anos. Eu te levava pra loja de quadrinhos, lembra? Você não ficava dizendo que era perigoso.

— A distância entre a sua casa e a loja de quadrinhos era bem diferente da distância de lá até aqui, Matheus — coloquei a garrafa sobre a bancada. — Sem falar que nós morávamos num bairro longe do centro. Por aqui o trânsito é pior. E tem policiais.

— Eu vim aqui pra te ver e você fica agindo igual uma tia velha — Matheus revirou os olhos.

— Eu só tô preocupado, inferno.

— Tiazona!

— Por que nós somos amigos, mesmo? — falei com falso cinismo enquanto rosqueava a tampa da garrafa, tentando não rir.

— Porque nos damos bem...? — Matheus sugeriu incerto enquanto estendia o copo plástico na minha direção.

— Mas nós nem nos damos tão bem assim, se você parar pra pensar — derramei o refrigerante no copo vermelho.

— É, eu sei — ele esperou que eu enchesse até a quase a borda para terminar de falar. — No fim das contas é porque você é um fóbico social, e como eu sou um meio-fóbico social, eu te entendo. Então você precisa de mim.

— Eu não preciso de você — semicerrei os olhos para ele, rosqueando a tampa da Coca-Cola outra vez, para fechá-la. — Vivi muito bem sem você desde que saí do São Francisco — falei sobre meu antigo colégio. — É você quem precisa de mim.

— Cala a boca.

Deixei a garrafa ao lado das outras bebidas e então encarei Matheus.

— “Cala a boca” significa “não tenho mais argumentos, você está certo”.

Matheus estava prestes a tomar o refrigerante, mas antes disso me encarou desconfiado. — Quem te disso isso?

— Você — cruzei os braços, apoiando as costas na bancada.

— Tá vendo, você precisa de mim — Matheus apontou o copo em minha direção como se fosse fazer um brinde. — Pelo menos pra ensinar umas frases de efeito. 

Revirei os olhos com um sorriso enquanto Matheus levava o copo aos lábios.

— Tá, agora é sério — eu disse, observando o pomo de adão de Matheus enquanto ele dava goles no refrigerante. — Foi mesmo o Daniel que te convidou?

— Foi — ele respondeu um pouco mais sério, colocando o copo na bancada. — Mas não foi nada bonitinho e simpático, como você deve estar imaginando.

— Eu não tô imaginando nada.

— Enfim — Matheus continuou, me encarando como se eu fosse malcriado por contrariá-lo. — Vim porque fiquei com raiva.

— Raiva?

— Um dia desses, eu te enviei uma mensagem... — Matheus apoiou os braços sobre bancada ao meu lado. — E o Daniel respondeu.

— O quê? — franzi o cenho. — Quando foi isso?

— Sei lá, eu não lembro — Matheus esfregou a testa, como se estivesse estressado. — Só sei que quando eu perguntei o que ele tava fazendo com o seu celular, ele simplesmente disse que você não “podia responder no momento” — Matheus revirou os olhos enquanto fazia aspas com os dedos. —, como se isso fosse uma justificativa válida.

— Eu devo ter esquecido no sofá da sala, ou algo assim — murmurei comigo mesmo sobre o celular, tentando me lembrar.

— De qualquer forma, eu disse pro Daniel que ele não deveria mexer nas suas coisas — Matheus continuou enquanto eu, internamente, me segurava para não dizer que ele estava sendo um estúpido, se preocupando com algo tão não preocupante. — E ele disse que tava usando seu celular pra ver uma lista de sei-lá-o-que pra festa que vocês iriam fazer, e falou que se eu quisesse, podia vir — Matheus franziu o nariz, mal humorado.

— Acho que nenhum de nós se deu bem com Daniel logo de cara.

Eu não sabia mais o que poderia dizer além daquilo, porque, afinal, eu não tinha certeza do que significava a provocação de Daniel para Matheus. Por mais que eu quisesse pensar em algo relacionado a ciúmes, aquilo podia ser simplesmente o Daniel sendo Daniel, chato e invasivo.

— Não sei como você fica tão tranquilo sabendo que ele pegou seu celular — Matheus franziu o cenho, olhando sério para o seu copo sobre a bancada.

— Não tem nada de mais no meu celular.

— Não é essa a questão... — Matheus começou a falar, mas, nesse instante, Daniel entrou na cozinha. Ele estava todo agitado, conversando com sua pequena e inseparável câmera.

Daniel veio até mim, passando reto por Matheus – que ergueu uma das sobrancelhas como faz quando se sente afrontado –, e começou a nos gravar, apoiando-se na bancada ao meu lado enquanto encaixava um dos braços ao redor da minha cintura.

Engoli em seco, tentando esconder o fato que estava nervoso apenas por causa daquele toque.

— Esse aqui é o Luca, pessoal — Daniel disse enquanto encarava a câmera; sua voz estava mais lenta e enrolada, e, ao sentir o cheiro de bebida alcóolica misturado ao seu perfume de flor e noz-moscada, logo saquei que ele estava bêbado. — Luca, diga oi.

— Oi — falei sorrindo, acenando para câmera; era estranho dizer oi para um objeto, sem falar que era assustador pensar na quantidade de pessoas que assistiriam aquilo depois, no YouTube.

— Pronto, fiz o que vocês pediram — Daniel disse para a câmera, depois me encarou brevemente. — Você apareceu por cinco minutos na live de hoje e você já tem fãs, dá pra acreditar? Deve ser esse seu cabelo irritantemente bonito... Se bem que tinha bastante gente elogiando a sua bunda.

— Acho que você bebeu um pouco mais do que devia — comentei com um tom de voz mais fino que o normal, sentindo meus batimentos cardíacos acelerarem absurdamente rápido. Que vergonha, que vergonha!

— Só bebi o suficiente — ele continuou a me encarar sem desvios com seus cinzazuis, e eu comecei a sentir meus lábios ficarem secos.

— Suficiente pra quê?

Daniel sorriu travesso depois se inclinou para muito perto.

— Não posso te contar agora — ele sussurrou perto da minha orelha. — Mas, se quiser, eu te mostro depois.

Eu provavelmente fiquei vermelho, muito vermelho. Daniel não parava de me encarar e eu não sabia como lidar com aquele efeito pesado que seus olhos de tempestade causavam em mim, quase como se fossem olhos de medusa e conseguissem me petrificar e ao mesmo tempo transformar tudo ao redor em pedra por alguns instantes. Desviei os meus olhos para qualquer lugar e acabei encontrando um Matheus nos encarando boquiaberto.

Engoli em seco e quase me engasguei com o ar. — Daniel, você nem deu oi pro Matheus.

Daniel olhou para Matheus surpreso, como se não tivesse notado que ele estivera ali o tempo todo.

— Ah, Matheus! — ele disse com um sorriso petulante. — Você veio. 

Matheus lançou um sorriso amarelo de meio segundo para Daniel, depois recolocou sua máscara de seriedade e tomou um gole de Coca, virando o rosto e esnobando Daniel. 

— Muito legal te conhecer, Matheus — foi a primeira vez que vi Daniel soar falso. — Mas agora eu preciso gravar mais. Vou voltar pra... — Daniel franziu o cenho, como se não conseguisse se lembrar de onde tinha vindo. — Lá. 

Matheus assentiu um tanto impaciente enquanto fitava, carrancudo, as costas de Daniel conforme ele caminhava para a porta pela qual tinha entrado. — Isso, volte pra lá. 

— O que foi isso entre vocês? — Matheus perguntou bravo e quieto logo que Daniel saiu da cozinha, sequer me olhou nos olhos.

— Isso, o quê? — me fiz de desentendido e tentei mudar o foco do assunto: — Eu quem deveria estar te perguntando o porquê dessa sua reação. Pra quê tratar o Daniel daquele jeito?

— Ele não vai nem se lembrar, ele tá bêbado — ele me olhou com o canto dos olhos enquanto mordia a beirada do seu copo de plástico.

— Não importa se ele vai lembrar ou não, Matheus. Eu quero saber por que você fez isso. 

Matheus exalou forte o ar e ficou quieto.

— Você não vai me responder?

— O que foi aquilo do cabelo? — ele finalmente me olhou nos olhos para falar e foi para ignorar minha pergunta; seu tom de voz mostrava o quanto ele estava zangado. — E, pior: o que foi ele falando da sua bunda, Luca?

Comprimi os lábios, nervoso.

— Ele só tá bêbado, é irrelevante. 

— A cara que você fez não foi de “é irrelevante” — Matheus parecia irritado e magoado ao mesmo tempo.

— Olha só, eu sei que você não gosta do Daniel e eu mesmo te falei um monte de merda sobre ele, mas isso não é motivo pra você agir desse jeito, Matheus.

— Eu não tô agindo assim só porque eu não gosto dele, será que você não entende? — Matheus passou a mãos pelos fios castanhos, nervoso, depois me encarou com tamanha intensidade que minha mente ficou em branco, eu nem sabia o que pensar sobre o que estava acontecendo com ele. — Será que você nunca, nem por um segundo, percebeu como eu me sinto sobre você?

Prendi a respiração. Ficamos alguns segundos em silêncio, olhando um para o outro.

— O que... — eu disse com a voz baixa, com medo; aquela droga de musica feliz tocando ao fundo não combinava em nada com aquele peso em torno de nós. — O que você tá querendo dizer? 

No mesmo instante em que aquela pergunta escapuliu, me arrependi por isso. Foi como um reflexo atrasado para tentar pegar o copo de vidro quando ele já estava em mil pedaços no chão.

No milésimo de segundo que se seguiu antes da resposta de Matheus, eu senti que aquela conversa estava prestes a invadir um território muito perigoso e dolorido dentro de mim. E outro território ainda mais intocável entre mim e Matheus, que era a nossa amizade.

 Eu estava com medo. Eu queria fingir que aquele olhar verde-escuro de Matheus não significava o que parecia que significava. Queria não ter feito aquela pergunta estúpida, porque eu estava com medo de ouvir a resposta. Eu estava com medo do que Matheus poderia estar querendo dizer. Ou querendo sentir.

Nós éramos melhores amigos há anos, nós não deveríamos e nem poderíamos estar tendo aquele tipo de conversa, com aquele tipo de tom.

Não que eu já não tivesse compreendido tudo aquilo. Estava estampado nos olhos dele, na expressão dele. Eu só queria evitar ao máximo aceitar e admitir que era aquilo mesmo. Repeti um mantra de mil-vezes-não no pensamento. Não, não, não, não...! Eu não queria encarar a verdade.

— Luca, eu sempre estive...

— Não! — interrompi nervoso, meu mantra escapando para fora da mente; abaixei a cabeça para não precisar encará-lo. — Eu não quero saber. Nós não precisamos falar sobre isso.

— Luca, olha pra mim — Matheus se inclinou para perto, tocando meu ombro. — Eu vim aqui pra isso, pra te dizer...

— Matheus, não! — interrompi novamente, me afastando do toque dele.

— Você precisa me escutar, Luca!

— Não! Eu já disse que eu não quero ouvir! — eu sentia todo o meu nervosismo se concentrando e se embolando na garganta.

— Você sabe que não adianta agir assim, não sabe? Porque você já entendeu que eu...

— Que, droga, Matheus! Você não pode falar porque você vai estragar tudo se fizer isso, entendeu? Você é o meu melhor amigo... — olhei para Matheus por um segundo e me arrependi; pela sua expressão, aquela conversa deveria estar sendo tão dura para ele quanto estava sendo para mim.

— Luca — Matheus ficou em pé e tentou segurar meu pulso; sua voz estava cheia de mágoa.

Desvencilhei-me do seu toque mais uma vez e então comecei a andar depressa para longe dele. Se eu não estivesse ali, não precisaria escutar.

— Luca! — Matheus me chamou enquanto vinha atrás de mim. — Você não pode fugir disso!

Eu tinha acabado de atravessar a porta da cozinha quando ele me agarrou forte pelo braço e passou à minha frente.

— Luca, por favor, você precisa me escutar — Matheus me segurou pelas bochechas, as mãos frias me forçando a encarar seus olhos tristes; ele estava quase chorando e isso fez com que eu me sentisse horrível, eu sabia que a culpa era minha.

Tudo estava cintilando em neon ao nosso redor, num contraste absurdo com o peso triste que nós dois carregávamos naquela troca de olhares dolorida. Ao mesmo tempo em que as pessoas estavam bebendo e gargalhando e dançando numa nuvem de felicidade em torno de nós, Matheus me carregava para muito longe daquilo através do seu encarar tão intenso e magoado e ressentido e corajoso.

Peguei seus antebraços e afastei suas mãos do meu rosto. — Que droga, Matheus! Para de agir assim, para de olhar pra mim como se...

— Como se eu estivesse apaixonado por você?

 Arfei como se fosse soluçar e prendi a respiração. Ele disse. Eu só sabia olhar para ele e me sentir esquisito e errado. Era o meu melhor amigo de infância, e o primeiro garoto que tinha dito que gostava de mim.

Era um pouco esquisita aquela sensação de estática em mim mesmo, justo quando eu estava cercado por tantos corpos agitados. Me fez sentir como se eu não estivesse em casa. Tentei encontrar o sofá, para ter algo familiar para o que olhar, mas havia uma parede de pessoas atrás de mais pessoas que tomavam conta do espaço todo. E a sensação de que aquela não era a minha casa ficou mais forte. No final das contas, talvez aquela vontade de “querer voltar para casa” era o tipo de coisa que se sente toda vez que algo não sai como o esperado, e então um tipo de instinto de fuga toma conta do corpo. Talvez o querer voltar para casa era algo como querer fugir para o lugar onde se pode ficar sozinho, longe das coisas que dão errado.

Queria o colo do meu pai. Mas ele estava tão longe. Meus amigos estavam longe, minha casa de verdade estava longe, todas as minhas convicções sobre mim mesmo e sobre os outros estavam longe. E até o Matheus estava longe de ser aquele garoto que eu conheci na quarta série. Agora ele era outro Matheus e eu, outro Luca.

Eu não disse nada a ele porque não sabia o que dizer e nem como dizer. Nós precisávamos conversar sobre isso, com certeza. Eu precisava parar de agir feito uma criança. Mas naquele momento eu me sentia cheio. Como quando se come demais e é difícil abrir a boca até para concordar com alguém. Eu estava cheio de perguntas, de vontade de sair correndo, de raiva, de confusão. Tudo se misturava e virava uma massa de concreto que colava os meus lábios juntos e afundava os meus pés no chão.

Acho que meu silencio agitou Matheus ainda mais. Eu não sabia como era ser o melhor amigo se declarando, mas eu quase consegui me colocar no lugar dele. Aquelas mãos fechadas em punho e a respiração toda errada e rápida eram um pista para eu deduzir que não estava sendo fácil para ele. Era desconcertante sentir necessidade de confortá-lo de mim mesmo. Eu não podia abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem, porque esse “estar bem” dependia muito de mim naquele momento. E eu sabia que não ficaria tudo bem, porque eu estava apaixonado por Daniel e não por ele.

Assim que me dei conta disso, Matheus pareceu ler e entender minha expressão. Deu um sorriso nervoso e triste, como se estivesse com pena dele mesmo. Então virou as costas para mim e começou a pisar firme na direção da saída. Ele sempre andava daquele jeito quando saía da quadra depois de perder uma partida importante de futebol. A cada passo era como se ele estivesse tentando convencer a si mesmo de que tinha acabado de perder, e que o tempo não voltava mais.

À medida que Matheus caminhava para longe, meus olhos foram marejando. As luzes coloridas se transformaram em borrões e misturam-se uma nas outras. Ouvi alguém chamando o meu nome e pisquei depressa, antes que eu começasse a chorar.

Vitor surgiu de repente no meu campo de visão, e eu foquei nos olhos castanhos dele, um pouco em choque ainda.

— Luca? — ele franziu o cenho. — Tá tudo bem? Tá meio escuro pra ter certeza, mas... Você parece meio pálido.

Olhei por cima dos ombros de Vitor, procurando Matheus, mas aqueles segundos de distração já tinham sido o suficiente para perdê-lo de vista.

— Ei! Luca! — Vitor me segurou pelos ombros. — Tá me ouvindo?

Pisquei e foquei outra vez em Vitor, em sua expressão preocupada.

— Desculpa — minha voz saiu tão baixa que duvidei que ele tivesse ouvido, principalmente por conta de toda aquela música alta. — Acho que foi minha pressão que baixou — dei a primeira desculpa que me veio à mente, com a voz mais alta dessa vez; não queria, por nada no mundo, ter que falar para Vitor que meu melhor amigo de infância tinha acabado de se declarar para mim.

Vitor franziu o cenho, com um olhar desconfiado. — Quem era aquele que tava conversando com você agora há pouco?

Exalei forte o ar, desviando o olhar. Ou Vitor era alguém muito observador ou eu era um péssimo mentiroso. Provavelmente as duas coisas.

— Ninguém. Você já falou com o Nando? — tentei mudar de assunto, desvencilhando-me do aperto de Vitor nos meus ombros.

— O Nando? — Vitor franziu as sobrancelhas, confuso.

— Ele tinha ido te procurar — contei. — Eu vou tomar um ar pra ver se minha pressão normaliza. Você devia procurar o Nando, antes que ele se aborreça e faça algo idiota. Eu já volto.

Dei um sorriso não muito convincente para Vitor e passei por ele, caminhando depressa na direção em que eu tinha perdido Matheus de vista. Escutei Vitor me chamando, mas fingi que não.

Iniciei uma série de respirações profundas à medida que caminhava para fora. Toda aquela coisa com o Matheus tinha sido desconfortável, triste e estranha, mas eu não podia deixá-lo ir. Eu precisava encontrá-lo nem que fosse para pedir desculpas por não poder gostar dele da mesma forma que ele gostava de mim.

Talvez, se eu fosse menos tapado, tivesse notado isso antes. Mas mesmo que eu fizesse um esforço para tentar resgatar algum resquício de estranheza ao longo da nossa relação, minhas tantas memórias com Matheus eram todas muito inocentes. Eram memórias de gargalhadas, videogames, histórias em quadrinhos e acampamentos no jardim. Era até estranho pensar na possibilidade de ele gostar de mim desde sempre ou há muito tempo, afinal eu não queria imaginar que nossa amizade tinha sido só uma meia-amizade porque na verdade ele sempre estivera apaixonado.

Respirei fundo de novo. Minha mente estava uma bagunça.

Com a imagem mental de Matheus indo em direção à saída, caminhei diretamente para a rua em frente de casa. Os carros do pessoal da festa estavam estacionados em fila; eram tantos que quase cobriam a quadra toda. Daniel realmente tinha ficado popular em apenas um mês.

Estava mais fresco do lado de fora, mas mesmo assim muito abafado. Aquele tinha sido um bonito dia quente de março, e mesmo depois de anoitecer, a brisa continuava morna.

Olhei para todos os lados, torcendo para que, se Matheus tivesse mesmo decidido voltar para casa, eu ainda pudesse alcançá-lo antes disso. Mas a rua estava vazia com exceção de um homem que passeava com seu cachorro e mais duas outras garotas que usavam vestidos e caminhavam em direção à festa.

Corri seguindo a fila de carros estacionados, escutando meus próprios passos secos no asfalto enquanto tentava me lembrar do modelo do carro dos pais de Matheus. Eu sabia que mesmo se eu conseguisse me lembrar, aquilo poderia ser totalmente inútil, já que Matheus poderia ter emprestado o carro de qualquer um dos amigos.

Depois de gastar alguns minutos chamando por Matheus e espiando aleatoriamente o interior de alguns carros ao longo da quadra, voltei para frente de casa. Sentei na calçada enquanto tirava o celular do bolso e buscava pela letra M na agenda de contatos. Liguei três vezes para o Matheus, e, em cada ligação, fui ignorado prontamente. Ele não fazia nem questão de disfarçar, recusava as ligações na minha cara, logo no primeiro toque.

Com um suspiro, abracei meus próprios joelhos e fiquei encarando a tela do meu celular até que as 23h29 se tornassem 23h30 e a tela se boqueasse sozinha. Depois passei a fitar o portão impecavelmente limpo e branco dos vizinhos da frente, escutando o som abafado – mas mesmo assim alto – da música tocando dentro de casa. O burburinho das conversas e das risadas me deixava irritado e provavelmente com inveja; eu estava tão triste com a possibilidade de perder meu melhor amigo naquela noite e isso não faria diferença nenhuma para ninguém. Era só mais um dia acrescentado nos 4,5 bilhões de vida do planeta, e ninguém se importava com ninguém. Eles continuariam rindo e beijando e dançando. Meu problema não tinha importância nenhuma. Eu estava me sentindo horrível e pequeno. E Matheus deveria estar se sentindo pior ainda, tão longe da casa dele.

Exalei o ar com força. Eu precisava resolver as coisas com ele de uma vez, ou aquela culpa iria me sufocar.

Se Matheus não tinha ido embora, isso se eu não tivesse ido atrás dele tarde demais, talvez ele ainda pudesse estar na festa, segurando um copo de refrigerante e sentindo raiva de mim num canto qualquer. Eu não o vi propriamente saindo de casa, afinal de contas.

Levantei-me depressa e corri para dentro; uma faísca de esperança aquecendo meu corpo.

Assim que passei pela porta de entrada, antes sequer de começar a procurar por um Matheus perdido no meio daquele monte de gente, senti alguém me agarrando pelo pulso. Ansioso, virei o rosto para trás.

— Ah, é você — falei sem pensar enquanto encarava Nando.

— Quem você achou que fosse? — antes de esperar por uma resposta, Nando continuou: — Preciso que você veja um negócio. Agora.

— Que negócio? — questionei enquanto Nando me arrastava na direção da sala de estar.

— Você vai ver, anda — Nando me puxou com mais força.

Apenas quando chegamos frente à mesinha onde ficava o telefone fixo foi que Nando finalmente me soltou. Olhei mal humorado para ele enquanto massageava meu pulso, que, apesar de estar escuro demais para eu checar, provavelmente tinha ficado com as marcas dos dedos dele.

— O que é que foi, Nando? — perguntei impaciente; eu deveria estar procurando o Matheus, não contemplando a mesinha do telefone.

Nando simplesmente direcionou as duas mãos para o aparelho, como se fosse o garoto propaganda do objeto. Precisei de alguns segundos, em meio aquele barulho todo, para notar que o telefone estava tocando. Um número desconhecido piscava no pequeno visor do identificador de chamadas.

— Nando — voltei os olhos para ele —, agora não é o melhor momento pra atender ao telefone, ok? Depois eu escuto os recados na secretária.

— Não, Luca! — ele olhou nervoso para mim. — Eu conheço esse número! É a Mei.

— Quem?

— Mei! A garota que eu que gosto — Nando contou afobado. — Já é a terceira ligação seguida.

Olhei outra vez para o telefone, estranhando que alguém como ela estivesse ligando para o nosso telefone fixo a essa hora da noite. Talvez ela fosse uma das fãs malucas de Daniel que, de alguma forma sobrenatural, acabavam descobrindo o número de casa para telefonar para ele. Eu esperava, pela saúde psicológica e sentimental de Nando, que não fosse esse o caso.

— E você sabe o número da casa dela? — volvi os olhos para Nando outra vez.

— Eu roubei da lista de alunos lá na escola, não é muito difícil — ele explicou como se não fosse nada demais. — A secretária da manhã adora dar umas voltas, então o computador fica dando sopa.

— Ah, sei — falei enquanto concluía internamente que não tinha nada de sobrenatural na forma como as meninas conseguiam nosso telefone; talvez eu devesse acessar a lista e fazer algumas alterações falsas, tipo trocar o nosso número do telefone por um qualquer.

— Aí eu acabei decorando, sabe, de tanto digitar no celular e ficar só encarando a tela, sem coragem pra ligar — Nando deu de ombros, um pouco frustrado, mas com um suspiro de quem já tinha se conformado com a própria covardia.

— Entendi — balancei a cabeça afirmativamente; não sabia nem o que falar diante da falta de coragem dele.

— Você não vai atender? — Nando perguntou ansioso.

 Olhei para o telefone. Aquela deveria ser a quarta ligação. Eu não tinha ideia do porquê de Mei estar ligando, mas ela estava sendo persistente.

— Atende você — encarei Nando.

— Quê? — ele arregalou os olhos para mim.

— Rápido, antes que ela desligue — num impulso de compaixão por toda a história de Nando, pesquei o telefone do gancho e levei até a orelha do garoto de topete, causando nele uma expressão de espanto misturado com desespero que, se eu estivesse melhor humorado, teria achado hilária.

— Atende! — sacudi a cabeça em um sinal de incentivo.

— Alô? — a voz de Nando saiu baixa e trêmula, e ele logo limpou a garganta e respirou fundo. — Alô! — ele gritou estufando o peito e eu não consegui segurar o riso.

Depois de ouvir o outro lado da linha, ele continuou:

— Não, é um amigo dele — Nando respondeu provavelmente depois de a garota perguntar se era Daniel. — Recado? Posso, sim. O que é pra falar? — ele tapou a orelha livre com o dedo indicador para tentar ouvir melhor. — Hã, sei — ele balançou a cabeça afirmativamente, depois arregalou os olhos enquanto olhava para mim. — Ela fez o quê?!

Eu não tive certeza de como interpretar aquela expressão vinda de um garoto que estava falando com a paixão da vida dele, porque talvez todo aquele espanto poderia ser um grande nada.

— Não, quer dizer, sim! Eu entendo, sim... — Nando soltou o ar dos pulmões todo estremecido. — Na verdade você foi muito legal de ter avisado — ele pigarreou alto; parecia que ele estava tentando expulsar o nervosismo à força. — Por que você... Você não quer... Passar aqui? Depois que os policiais forem embora, quer dizer.

Arregalei os olhos.

— Policiais?! Nando!

— Eu sei — Nando continuava compenetrado na conversa pelo telefone enquanto eu tinha um pequeno ataque de nervosismo. — Mas talvez isso não aconteça e aí a festa vai continuar, e você poderia vir.

— Nando, pelo amor de Deus! — falei em pura aflição, entrando na frente dele. — Que policiais?!

— Por que não? — Nando não deu a mínima para mim, virando o rosto para outra direção com cara de quem estava sendo perturbado. — Seus pais? Ah, que droga... Bom, se você quiser... Eu posso te ajudar... Sei lá, talvez pulando da janela?... Claro, eu posso te ajudar com isso, sim, não tem problema!

Eu queria arrancar o telefone das mãos de Nando para saber que história era aquela de policiais, mas eu não podia fazer aquilo. Não quando ele finalmente tinha conseguido falar com a garota que ele tanto gostava e aparentemente estava arranjando um encontro no melhor estilo Rapunzel, com aquilo de pular a janela e trazê-la para festa e tudo o mais.

— Ok — Nando assentia sem parar, como um daqueles cachorrinhos de painel de carro. — Se der tudo certo eu passo aí depois... Portão branco? Tá legal, até mais... Valeu.

Nando finalmente devolveu o telefone para o gancho. Ele paralisado, olhando para o aparelho como se ele fosse criar vida.

— Nando!

— Ela desejou boa sorte pra gente — ele me encarou, um pouco aturdido ainda.

— E pra quê nós iríamos precisar de sorte, Nando? — perguntei num quase choramingo; eu já estava sentindo meu estômago virar uma pedra de gelo.

— Porque a mãe da Mei se irritou com a música alta e... Ligou pra delegacia. — Nando umedeceu os lábios secos. — A polícia tá vindo pra cá.

Passei as mãos pelos cabelos e tentei controlar o nervosismo, olhando ao redor, para todos aqueles adolescentes menores de idade bêbados, que riam e dançavam despreocupados, que se reuniam ao redor da mesinha de centro para fumar algo que eu não sabia nem identificar.

— Merda, Nando — praguejei. — A gente se fodeu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Segura essa, peão!

O próximo capítulo tá quase pronto! Eu só não estou postando um depois do outro porque quero ganhar algum tempo para escrever o capítulo quinze sem que vocês fiquem sem atualização por um período muito enorme, como sempre (vergonha de mim e do meu senso de compromisso de merda). Estou dando o meu máximo aqui! Qualidade em primeiro lugar sempre (é uma indireta pra justificar uma possível demora).

Obrigada pela paciência, irmandade! Até mais!