Enquanto o Sol Brilhar escrita por Gabriel Campos


Capítulo 5
Bob: Por conta da casa


Notas iniciais do capítulo

Música: Every Breaking Wave
Intérprete: U2

Link: https://www.youtube.com/watch?v=4Bj3qrMbNig



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Ponho algum mísero pedaço de pão de forma na boca e mastigo vagarosamente. Vou me contentar com estas calorias, por hora. Penso que preciso ser mais radical hoje quanto a dieta, já que ontem eu extravasei (liberei, joguei tudo para o ar, mandei um foda-se) e enfiei goela abaixo dois pacotes de macarrão instantâneo sabor queijo. Eu mal senti o gosto deles, não pareciam tão saborosos quanto imaginei que fossem antes de eu surrupiá-los de uma das prateleiras do mercadinho da dona Tânia.

Como eu disse superficialmente a vocês, moro de favor num quartinho cedido pela dona Tânia no condomínio cujo ela é síndica. Ele é arrumado, tem a rede onde durmo, uma geladeira com poucos suprimentos, uma velha TV doada pela própria síndica, e um vídeo—game que comprei, zerado, quando recebi os salários dos meus dois empregos.

Então me lembro que preciso comer mais um pouco, ter um café da manhã mais reforçado caso queira me manter de pé até o final do dia.

Olho para cima da minha velha geladeira, ao lado do pinguim, e o pote de biscoitos recheados está ali, reluzente, como um chamado dos anjos. Eu bem que posso ouvir sua voz, soando na minha mente: venha até a mim. Mas volto à realidade e enfio na minha cabeça de uma vez por todas que potes de vidro não têm voz e que preciso emagrecer. É agora ou nunca. Agora vai. Você vai ser magro, Bob. Quem sabe até ter um corpo tão atlético quanto o dos caras que frequentam o parque aquático do condomínio. Abro a lixeira da minha mini cozinha e vejo as embalagens dos miojos que comi na noite passada. Sinto repulsa por mim mesmo durante alguns segundos, mas em seguida, como num impulso, jogo todo o conteúdo do pote de vidro no lixo. Posso até sentir o cheiro de morango do recheio das bolachas, mas resisto. Os moços que ostentam seus corpos sarados no parque aquático não comem bolachas recheadas, tampouco miojo, reflito e saio para mais um dia de cão. Levo na barriga apenas um pedaço de pão e um copo d'água. Tem gente que sobrevive com bem menos que isso. Você vai ficar bem, Bob. Você vai ser magro!

🐾

Abro o cadeado e retiro a corrente que prende a bicicleta. Olho no relógio: sete e meia. Tenho meia hora para realizar o meu "treino matinal” antes de ir para o emprego de entregador. Sei que não vou aguentar mais de dez minutos e...

Ok. Vamos começar. Você já fez isso antes Bob, então concentre-se.
Ponho o pé no pedalo, as duas mãos firmes no guidão. Impulsiono o meu robusto corpo para frente e começo a pedalar. Eu faço isso todos os dias, ora, só que não oficialmente é um treino e nunca faço um percurso tão grande. Mas minha intenção é quinze minutos de ida, mais quinze para a volta. Muitos neste momento pegam seus celulares, batem suas selfies e postam com suas hashtags fitness, muitas vezes falsas. Mas não quero gastar meu tempo com isso.

Chego ao mercado de dona Tânia empapado em suor, exatamente às oito. Meu estômago dói um pouco, e me lembro que eu não o forrei muito bem no café da manhã. Estou tonto, mas me seguro no caixa. A anciã me olha um pouco surpresa.

— Já tem alguma entrega? — indago, arquejando. Vou até o freezer e pego uma água com gás.

— Não — ela responde, toma em mãos um caderninho e anota o preço da água que acabo de pegar. No final do mês ela vai descontar do meu salário, inclusive com os pacotes de macarrão instantâneo que eu peguei, as bolachas recheadas, etc, etc — Bob, você está bem, garoto? Não vai inventar de morrer aqui não hein? — Tânia põe a caneta bic azul atrás da orelha.

— Por quê? Ah, sim, é que acabo de fazer um treino básico. Ainda estou mantendo a dieta firme e forte. Quero emagrecer.

— Bom saber, Bob. — ela acende um cigarro. — Às vezes você me dá muito prejuízo com as coisas que pega nas prateleiras. Não me leve a mal. — ela balança o caderninho dos infernos na minha frente e o guarda.

— A senhora tinha me prometido que iria parar de fumar.

— Bob, eu já tô mais pra lá do que pra cá. Se eu vou morrer logo, vou fazer tudo o que eu bem entender.

Assusto-me, tiro o cigarro das mãos dela.

— Fui ao médico esses dias. Estou com câncer. — ela confessa, assim na lata.

— Que brincadeira é essa? — a droga lícita fumega em minha mão direita.

— Todo mundo morre um dia, Bob. — suspira — Eu já vivi o bastante, e acredite, baby, não desperdicei minha vida. Não mesmo. — Tânia sai do caixa e caminha por um dos corredores do mercado. Ela volta trazendo um sanduíche natural, um iogurte de garrafinha e uma maçã. — Agora, uma dica : passar fome e se exercitar não vai te fazer mais magro. Vai te fazer ir para debaixo da terra, junto comigo. — eu pego o lanche — É por conta da casa.

Ela me dá um beijo no rosto e começa a passar as compras do primeiro cliente do dia no leitor óptico. Eu como com culpa, digerindo com a comida as palavras daquela senhora.

🐾

Concluo com êxito o expediente no meu emprego do dia exatamente às quatro da tarde, mas ainda preciso ir para o emprego da noite. Despeço—me de Tânia com um abraço mais apertado do que nunca e digo a ela que a vejo amanhã. Não quero que ela desista da vida e se entregue para o câncer, como muita gente faz.

O trabalho na lan house é bem menos árduo. Normalmente, fico das seis até as dez da noite sentado numa cadeira operando a máquina de xerox, navegando no Facebook e comendo porcarias, o que não é mais o caso. Só me levanto quando acaba o tempo de algum cliente e eu vou lá avisar, ou quando pego algum taradinho vendo pornografia por um sistema de monitoramento maluco que Luciano, o proprietário, inventou. É bem constrangedor, mas, apesar de o salário ser meio baixo, é um emprego dos sonhos.

Dez da noite. Um moleque magricela de quinze anos, com o rosto cheio de espinhas, é o último a sair. Eu bem que vi o nojento mexendo na calça e a janela do meu computador piscando avisando que alguém estava vendo pornô. Mas eu deixei. Ainda estava perdido em meus pensamentos, em choque com o que Tânia havia me revelado hoje cedo, com a sua conformação com a morte. Eu bem queria ser tão corajoso quanto ela é.
Queria não ter medo da morte. Eu tenho medo de não haver alguém por quem chorar por mim quando eu for embora deste mundo.

Fecho a lan house e entrego a chave a Luciano que ,mesmo casado, conversa com uma moça de modo cortejador na calçada do estabelecimento. Estou exausto. Pego minha bike e ligo meu automático. Só quero chegar em casa e dormir, concluo. Eu estou com os olhos voltados para frente, mas minha cabeça nas nuvens. Até que ouço um barulho de um carro cantando pneu e de o que parece ser um cão, chorando. O motorista buzina duas vezes e o pobre animal não sai do meio da alameda, com certeza ferido devido à primeira tentativa do homem de passar por cima do cão.

— Sai da frente, satanás! Vamos , saco de pulgas! — o moço grita, furioso. O cão, assustado, encolhido e dolorido, continua no mesmo local. Quando percebo que o homem decidiu continuar sua viagem como se não houvesse nenhum obstáculo à sua frente, jogo a bicicleta no chão e corro para frente do veículo. Por pouco não sou eu o atropelado.

O motorista me observa com repulsa. Estou parado, de braços abertos na frente do cão. O vento corre, passando por cada centímetro do meu corpo. O homem põe a cabeça para fora da janela e reclama:

— Qual é, bola de banha?! Sai da frente ou eu passo por cima dos dois.

— Vá se foder, seu doente mental!

Ele abre a porta com força e se aproxima para socar meu rosto. Sinto seu bafo de álcool antes de sentir a dor no meu nariz. Caio no chão e observo mais de perto o animal gemendo, lambendo com relutância a patinha traseira, ferida. A raiva desperta em meu coração e me levanto do chão, o sangue pinga do meu nariz. Revido o soco. O agressor, que agora é a vítima, cai sobre a terra e ganha um belo chute entre as costelas.

Afasto-me e permito que o homem vá embora. O álcool vai anestesiar sua dor, até certo ponto. Ele dá ré com seu corolla prateado e segue por outro caminho. Olho para o meu novo amiguinho indefeso e o coloco dentro da cesta da bicicleta , a qual uso para levar as compras dos clientes do mercado.

— Parece que nós dois vamos precisar de um médico, amigo. — suspiro e começo a pedalar, agora em boa companhia.


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Notas finais do capítulo

Muita gente vem me perguntando sobre o cãozinho da capa da fic. Pois bem :D