Enquanto o Sol Brilhar escrita por Gabriel Campos


Capítulo 3
Bob: Procure o médico e o farmacêutico. Leia a bula.


Notas iniciais do capítulo

Música: Telescope
Interprete: Cage The Elephant

https://www.youtube.com/watch?v=9OCEh6g6whc



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Eu sou do tipo que, quando faz uma dieta, retira o miolo do pão, para deixá-lo mais light. No entanto, sempre acabo comendo o miolo do pão depois, separadamente.

Nunca coloquei banca na hora de comer, sempre comi de tudo. Na verdade, se eu vejo uma mosca na minha sopa, eu tiro ela com a colher e volto a tomar a sopa normalmente. Enfim, eu nunca reclamei de barriga cheia ) por eu ser mais fisicamente avantajado do que os outros garotos, mas então eles começaram a crescer, ficaram com o corpo definido, engrossaram a voz, espicharam de tamanho. E eu? Bem, eu continuei como o bom e velho número oito de sempre: uma bola menor (minha cabeça) em cima de uma bola maior (meu corpo), combinados com uma voz de criança jamais desenvolvida  de tão aguda e um montão de pelos espalhados pelo corpo.

Eu fiquei para trás. Se na época da escola eu aproveitava meu tamanho avantajado para me defender ou até mesmo intimidar os "nerds", hoje em dia eu sou um cara solteirão, deficiente de autoestima e de um monte de nutrientes e vitaminas por só comer porcarias.

Hoje eu vivo a síndrome de quem passou dos vinte: as crianças que eu vi nascer estão namorando e isso me dói. Já coloquei a culpa (pelo fato de as crianças estarem sendo muito precoces) no fim da TV Globinho, mas estou começando a achar que sou eu que estou ficando retrógrado ou preso na década de noventa. Mas falar disso esta ficando tão polêmico quanto falar de política ou religião.

— A filha da dona Mara está com namoradinho, você viu, Bob? - Dona Tânia me pergunta, enquanto conta o dinheiro do caixa do mercadinho com a mão direita e segura o cigarro com a mão esquerda. Naquele dia o movimento estava ameno, mas sempre poderia aparecer a possibilidade de ter alguma entrega a domicilio.

— Aquela pirralha, dona Tânia?! - exclamo - eu vi aquela menina nascer! Quantos anos ela tem? Treze? Com essa idade eu assistia desenho na TV.

— Quatorze. - a idosa me corrige - Ah, deixa a menina viver, Bob.

— Mas foi a senhora que começou a conversa, ué.

Tânia me analisa com seu olhar penetrante. Ela tem fundos olhos azuis e já tentou disfarçar o fato de o tempo passar para ela com algumas plásticas (as quais ela paga até hoje) e com tinta de cabelo, loiro. Ela é uma senhora viúva, o marido, americano, serviu no exército há muitas décadas e morreu numa guerra. Eu sei que ela ainda sofre por isso, sei que foi por causa disso que ela começou a fumar e a beber conhaque (principalmente conhaque, ela bebe de tudo). Mas Tânia disfarça, disfarça muito bem suas tristezas, seus sentimentos. Eu a admiro. Trocamos algumas farpas ao longo do dia, mas ela sabe que eu a amo como uma segunda mãe. E é isso o que importa.

— Bob, sabe qual é o seu problema? Falta de sexo. Você está precisando de uma boa fo-

— Eu não preciso disso, dona Tânia! - interrompo-a antes que eu a escute falar uma palavra feia. Ela vive falando palavrões, mas eu acho estranho gente idosa falar nomes feios. Ela me mataria se me visse dizendo que é ela é idosa. - Sexo não é comida, que a gente precisa a todo instante pra se manter de pé e sobreviver.

Eu, para disfarçar, pego um espanador e me enfio em um dos corredores do mercadinho. Fico espanando algumas latas de molho de tomate e começo a achar estranho o silêncio de dona Tânia. Estico meu pescoço para fora do corredor e percebo que Tânia estava o tempo todo me fitando por entre as latas de molho de tomate. Eu não gosto quando ela toca no assunto sexo.

Tânia sempre teve a curiosidade de saber se eu já fiz isso . As pessoas tem curiosidade em saber se pessoas gordas fazem sexo, ou se passam a vida na companhia da própria... mão.

Eu já fiz.
Uma vez.
E preferia não ter feito.

     Foi como algo que a gente compra por estar passando na vitrine e querer gastar um dinheiro que nem ao menos está sobrando na sua carteira. Cabelos cor de chocolate, encaracolados, parecia uma personagem da mitologia grega. Esther Oliveira Viveiros. A Medusa.

     Ninguém gostava da Medusa. Afrontosa, o que a família dela tinha de dinheiro, ela tinha de ego. O pai de Esther Viveiros era dono de muitas cabeças de gado, senador, sempre mandava seu jatinho particular para a filha ir visitá-lo em Brasília, pois quando aparecia na cidade, já que tão pequena, era uma festa. As pessoas tinham Adamastor Viveiros, o grande Senador, como alguém que poderia fazer mais pela nossa cidade. No entanto, não vi melhorias na nossa vida, mas na vida da família Viveiros sim. 
     Esther passou de uma criatura que sentava no final da sala, tímida, para uma verdadeira naja quando seu pai foi eleito. Jogava na cara dos professores que Adamastor era poderoso e que ela poderia transformar a vida de qualquer um no inferno, quando seu trabalho deveria ser o contrário. 
      Pouco sei da índole daquele homem, mas se Esther for um pouco parecida com ele, nosso país está perdido. 
      Eu, Bob, era o único que conseguia bater de frente com aquela garota na escola. Eu não tinha nada a perder e achava um crime ela usar o poder para passar por cima das pessoas, um poder que nem dela era, tampouco de seu pai, para bem dizer, já que fomos nós quem o colocamos no poder. Vi a Medusa deixar o professor de química do terceiro ano no chão, certa vez, quando ela o humilhou devido a uma nota baixa num seminário: Esther realmente não apresentou um bom trabalho e aquela nota quatro dada pelo professor foi até muito comparado ao show de petulância que a garota deu na sala de aula na frente de todo mundo, tanto antes, como depois de receber tal nota.

— NOTA QUATRO?! - Suspirou - Como você, um idiota que vive de salário mínimo, ousa fazer uma coisa dessas comigo? Você por acaso sabe quem eu sou? - A filha do senador apontava o dedo na cara do professor, um homem de meia idade, baixinho e grisalho, que não estava fazendo mais do que o seu trabalho. Ele, porém, mantinha a calma, de braços cruzados, olhando para ela e sorrindo, o que a deixou mais histérica a ponto de pegar as coisas e sair da sala de aula.

Tanto os professores, quanto os funcionários e até mesmo os alunos sabiam que não podiam nem sequer tocar no nome de Esther Viveiros, quanto mais dirigir-lhe a palavra, a não ser se fosse para algum tipo de bajulação; o professor de química, porém, foi despedido no final daquela semana, a poder de um simples telefonema do senador, lá de Brasília, que apesar de ter coisas mais importantes para tratar, estava mais preocupado em resolver os grandes conflitos da sua bebêzona de quase dezoito anos numa escola de bairro.

Esther só passou de ano e conseguiu o diploma de ensino médio porque o dono da escola foi comprado. A história se repetiu para ela conseguir uma vaga numa faculdade de Direito numa "uniesquina" qualquer e talvez assim se repetiria se ela quisesse vestir uma beca. Para a família Viveiros era assim: se houvesse voto na urna, o dinheiro era garantido no bolso e poderia abrir qualquer caminho.

A demissão do professor de química causou um alvoroço terrível na escola. Todos sabiam que ele era um bom professor, que ensinava bem e era a salvação de muitos alunos que tinham dificuldade numa matéria que era terrível nos vestibulares. A ausência dele significava a perda de muitas esperanças em muitos pré-vestibulandos naquele ano. Medusa começou a ser atacada, indiretamente, pelos alunos, como uma forma de vingança; uma montagem de uma foto dela, por exemplo, ao lado de seu pai, onde no lugar de seus cabelos havia um ninho de cobras, foi impressa e distribuída pela escola por um grupo de alunos dos quais as identidades foram mantidas em segredo. Dos planos mais arquitetados como esse, aos mais baixos, como o chiclete na cadeira, a vida de Esther Viveiros havia virado um verdadeiro inferno, e ela sabia que nem os aviõezinhos de cem reais que seu pai mandava jogar em época de eleição poderia calar um grupo de jovens sedentos por vingança.

Havia muito mais do que uma (não tão) simples demissão como motivo. Esther já havia entrado em briga com várias alunas, desmanchado namoros, exposto conversas íntimas com meninos da escola. Havia chegado o momento em que ela deveria parar.

— Rolha de poço! Não olha por onde anda? - Eu estava atrasado para uma aula naquela quarta-feira, mas juro que a garota estava correndo pelo pátio que dava acesso às salas de aula do colégio. Se eu pudesse eu nunca teria nem ao menos respirado o ar que ela.

— Me respeita. - respondi, ríspido, ajeitando a mochila nas costas. Eu gostava de andar com uma só alça pendurada no ombro, o que facilitou Esther de puxar minha mochila das costas e jogá-la no chão. Era um jeito dela de me punir por ter sido grosso com ela.

Eu, por outro lado, fiz o mesmo, jogando sua pasta e seus cadernos no chão, os quais ela levava para a escola só para mostrar o quanto era caro, pois quase nada ela havia anotado neles e já era fim de ano. A garota abriu a boca, berrando e quase me deixando surdo. Parecia uma moleca de seis anos de idade num corpo de uma quase adulta.

Muitos ao dirigiam a palavra àquela menina, dirigiam de cabeça baixa, acuados. Eu nunca tive medo dela, apesar de nunca ter sido alvo de suas birras. Mas era o começo. Eu tomei meu caminho, mas pude sentir o cheiro da minha batata assando.

Eu não tenho medo dela. Ela é só um monte de notas de cem reais passeando por aí. Nada que um balde de água fria não resolvesse.

Aconteceu no dia da festa de formatura, em meados de outubro. Foi algo simples, num buffet. O tema era Dia das Bruxas, devido a proximidade das datas.Eu nunca gostei de festas, muito menos de festas temáticas, mas Dona Tânia me fez passar um batom preto e me vestir de vampiro com a ajuda de suas roupas de viúva.

Não queria me olhar no espelho desde essa época. Eu já havia alcançado os três dígitos na balança, mas sempre gostei da minha aparência porque minhas tias sempre apertavam e me diziam que eu era fofo. As garotas da minha idade, porém, nunca quiseram o gordinho porque me tinham mais do que um amigo confidente ou algum tipo de assexuado. 

"Mãe, posso tomar sorvete com um amigo?" "A essa hora, filha?" "Mãe, é o Bob.""Ah, sim, então pode ir".

Quem nunca teve seu gordo de estimação? Ou melhor, qual gordinho nunca foi o pet de alguém?! Não que eu ligasse muito para essas coisas, até já havia me conformado que eu era bonito a ponto de alguém apertar minhas bochechas, mas não a ponto de alguém aceitar meu convite para dançar. Eram dezoito anos esperando por uma coisa que para mim, hoje, é algo sem importância: o primeiro beijo.

Tomei algumas garrafinhas de vodca com limão e de umas cervejas com a garrafas de várias cores, daquela marca que "desce redondo", sabe? Eu nem percebi que a garota com quem eu estava dançando era nada mais, nada menos que Esther Viveiros. 

E também não percebi que os garotos com quem ela costumava andar estavam no canto do salão de festas, aos risos.

A música lenta estava tocando, embalando o baile. Toquei a cintura da filha do senador com a mão direita e pousei a esquerda em suas costas. Eu estava tonto, e tão bêbado que passei a nutrir algum tipo de sentimento por aquela garota. Ela é bonita, Bob. Ela está dançando com você. Ela te quer.

Dei meu primeiro beijo ao som daquela música sem importância. Tão sem importância quanto o meu primeiro beijo. 

Esther Viveiros cochichou alguma coisa ao meu ouvido e me puxou pelo braço para fora do salão. Lembro-me apenas dos seus amigos nos observando, às gargalhadas. Eu não conseguia olhar para o seu rosto, era como se eu me sentisse mal por ser tão gordo e estar ao lado da garota mais bonita da escola.

Chegamos ao estacionamento e lá estava um carro vermelho. Ela desligou o alarme e abriu a porta. Puxou o banco do motorista para trás e insistiu que eu deitasse. Eu o fiz. Retirou parte da minha fantasia, me deixando com a braguilha aberta. Sentou-se por cima do meu corpo e se mexia em cima do meu colo, fazendo-me ficar excitado.

Continuou me beijando, bailando ainda de roupa por cima das minhas partes íntimas. Eu estava tonto, com um bafo de álcool dos grandes. Não nego, contudo, que estava gostando da situação. Seria a minha tão cobrada primeira vez, e aconteceria no mesmo dia do primeiro beijo. E com a garota dos sonhos de qualquer rapaz.

Eu estava enganado quanto à parte dos sonhos.

Eu não lembro bem se o sexo realmente aconteceu. Mas lembro que Esther me deixou totalmente pelado dentro daquele carro. Jogou minhas roupas para a parte de trás do carro. Eu estava apenas de cueca.

— Você beija bem. - Disse ela. - Abre a boca.

Eu o fiz. E ela colocou algum comprimido na minha boca , que mastiguei e engoli de forma instantânea.

Apaguei.

Acordei no outro dia jogado no chão do estacionamento da escola. Sem roupas. As pessoas que por ali passavam riam. Era um gordo, mais uma vez, servindo de palhaço.

E eu aprendi a lição. Ninguém jamais deveria cruzar o caminho de Esther Viveiros.


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