Crônicas de Kyveth escrita por Eduardo Ariedo


Capítulo 4
IV - Crânios Rachados




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/605443/chapter/4

Quando entraram na taverna, não puderam notar que uma coruja vermelha acabara de morrer no outro lado da cidade. Um mau presságio que poderia ser evitado se eles tivessem cuspido no chão, mas não o fizeram. O dia já alcançava o seu meio dia e, até aquela hora, Arthur havia conseguido comprar alguns equipamentos básicos que lhe seriam mais úteis do que a espada velha e suas roupas que, apesar de confortáveis, não lhe forneciam nenhuma proteção. Agora, embainhada em sua cintura, estava uma espada bastarda. Media não mais que um metro e seu peso era adequado para ele empunhá-la tanto com uma mão ou duas, as vestes brancas agora estavam sobrepostas por uma armadura de couro batido que protegia boa parte de seu tronco e, por fim, em suas costas, um escudo de madeira estava preso. Não havia ali nenhum brasão desenhado como havia no da outra mulher, pois ele não tinha direito para desenhar e, se o fizesse, desrespeitaria as leis de Kyveth. Por isso, o mesmo estava apenas tingido de preto.

Fizeram as compras antes de irem para a taverna e durante todo o percurso, Joy reclamou das armas escolhidas por Arthur, usando como argumento que Skadyr, sua espada de gelo, perfuraria facilmente aqueles itens de segunda. Filgarim, por sua vez, disse que o homem tinha bom gosto, contudo, todo esse diálogo era passado, pois agora os três andavam trôpegos pela rua.

Não se lembravam muito do que haviam conversado enquanto estavam sentados nas cadeiras de madeira, Arthur não se lembrava de absolutamente nada do seu passado — e possivelmente depois de uma noite de sono, também não se lembraria de muitas coisas do que aconteceu naquele fim de tarde. A mulher e o anão também não se sentiam confortáveis quando tocavam nesse assunto, por isso o diálogo entre os três na taverna foi quase igual aos dos outros três que estavam sentados um pouco atrás: coisas aleatórias sobre o céu, a terra e o mar.

Caminhavam sem muito rumo e não notaram que, conforme mais esquinas viravam, mais vazias as ruas onde estavam ficavam e também aumentavam o número das esguias sombras que os acompanhavam. Eles estavam completamente bêbados e o metal reluzente em suas armas e armaduras havia atraído a atenção de alguns bandoleiros da cidade.

Joy foi a primeira a notar, porém quando percebeu já era tarde demais. Tentou recuar com velocidade para trás, mas viu que estavam cercados. Eram doze ao todo, e nenhum parecia prestar. Em volta deles estava toda a escória juvenil de Kyveth: garotos de não mais que dezessete verões, todos desgarrados, alguns – principalmente os loiros de olhos azulados — deviam ser alguns antigos escravos capturados pelos nobres do reino em suas lutas contra os bárbaros do norte enquanto outros não queriam ter a pobre vida de camponês e resolveram roubar para ter uma riqueza que jamais sonharam poder ter. Não havia naqueles sorrisos maliciosos uma gota que fosse de arrependimento. Todos carregavam em suas mãos adagas e trajavam roupas surradas, com a exceção de seu líder. Este parecia ser um pouco mais vaidoso consigo mesmo. A sua roupa, apesar de apresentar alguns rasgos nas costas, estava completamente limpa,e os cabelos loiros estavam bem penteados num topete não muito longo. Em sua mão, carregava uma lâmina maior do que a do resto de seu bando, um sabre que media não mais que um metro de comprimento. Foi ele quem se aproximou alguns passos do trio, sorriso irônico em seus lábios rachados e os seus olhos azulados parecendo brilhar com a expectativa do ouro que obteria.

— Alto! Entreguem o homem e nenhum sangue será derramado! Não queremos você, donzela, e muito menos o anão! — disse. Sua voz soava áspera e rígida, muito diferente do se imaginava quando olhava para aquele jovem franzino.

Demorou um pouco para que eles raciocinassem o que haviam ouvido. Joy, ao ser chamada de donzela, bufou de raiva, mas não conseguiu focar-se com precisão no rosto daquele que havia falado. Filgarim, talvez o mais sóbrio dos três, pegou o seu arco branco com velocidade e, ainda sem pensar, puxou uma flecha da aljava que estava em suas costas.

— Nem todos! — gritou em protesto o anão e, ao entenderem a piada, alguns dos membros da gangue deixaram uma pequena gargalhada escapar, mas logo voltaram a seriedade.

— Podem pegá-lo, seus inúteis, mas é bom que saibam correr, pois eu contarei até cinco e todos aqueles que ainda estiverem aqui não terão mais filhos! — Joy realmente estava em fúria e ,apesar de estar bêbada, ainda sim era capaz de enfrentar um punhado de adolescentes que mal sabiam segurar as armas que usavam.

— Não ter filhos? — Um sorriso irônico se formou nos lábios do rapaz enquanto ele arqueava a sua sobrancelha de forma sugestiva. — O que uma puta que pega uma espada e finge ser um homem pode falar sobre isso? Com certeza vem de uma terra onde os homens são fracos e se escondem, enquanto vadias lutam por eles, estou certo? — Para um bandoleiro, aquele homem sabia provocar muito bem. Suas palavras deixaram Joy em completo estado de fúria.

Rapidamente a loba do norte sacou sua arma, soltando em seguida um grito de guerra enquanto puxava a espada da bainha em sua cintura. Skadyr novamente cortou o ar sem muita velocidade e uma pequena camada de gelo começou a se formar nela. Arthur, que estava quieto pois se perguntava o que aqueles queriam com ele, fitou rapidamente novamente a espada da mulher e engoliu em seco, pois tinha quase certeza de que a veria em ação em poucos segundos. Notou também que por toda a lâmina da espada havia palavras escritas: suas letras não estavam no idioma comum, mas sim em runas mágicas, letras entrecortadas por linhas que, apesar de não parecerem ter algum significado, armazenavam sua magia. O homem, por fim, também sacou sua espada bastarda enquanto por sua cabeça um dilema se passava: deveria matar os assaltantes ou deixar ao menos um viver para que fosse interrogado? Afinal, estavam em busca dele; talvez soubessem algo sobre seu passado.

— Crânios rachados! — ordenou o líder enquanto com a ponta de seu sabre apontava para o trio. — Ataquem!

O ataque dos doze ladrões foi efetuado ao mesmo tempo. Todos avançaram com velocidade, alguns na frente enquanto outros davam cobertura; não se intimidavam com a lâmina gelada de Joy, pois ainda eram maioria e, caso conseguissem derrotar os três juntos, o dinheiro do saque seria um acréscimo ao pagamento que receberiam por pegar Arthur.

Dois foram mais ambiciosos, tomaram a frente na corrida e avançaram contra Joy — e foi por isso que morreram.

O primeiro caiu no chão com sua garganta cortada, o sangue que jorrou no primeiro golpe congelou, mas o restante tingiu a estrada ladrilhada com o rubro.

O segundo até tentou preparar o seu golpe, aproveitando que a mulher estava distraída com o seu amigo, mas este foi lento demais. Quando sua adaga começou a avançar a loba do norte estocou um golpe perfeito em direção a seu coração.

Duas flechas de madeira voaram rapidamente do arco de Filgarim, cortando o ar com uma velocidade que poucas flechas nesse mundo seriam capazes de atingir. A primeira, e talvez a mais mortífera de todas, cravou-se com tamanha precisão entre os olhos de um dos garotos que corriam em fúria que ele caiu sem vida no solo rapidamente, fazendo com que aquele que o seguia tropeçasse no corpo do morto e caísse ao chão enquanto sentia a segunda flecha do anão golpeando o seu ombro. Não havia perdido sua vida, contudo a dor certamente o atrapalharia em seus próximos golpes.

Arthur, que também estava sob o efeito do álcool, parecia ser dos três o que tinha o pior desempenho. Quando um dos jovens bandidos aproximou-se com adaga em punhos, não conseguiu desviar do golpe que vinha em sua direção. Talvez estivesse bêbado demais para notar que realmente estava sendo atacado ou sua confiança estava alta, fazendo-o imaginar que aquela pequena lâmina não causaria nenhum ferimento em seu corpo, mas causou. O aço enferrujado penetrou não mais que sete centímetros em sua perna, fazendo-o gemer de dor ao mesmo tempo em que o sangue começava a jorrar farto. Tentou contra-atacar, desferindo um golpe em diagonal com sua espada bastarda, contudo o seu movimento foi lento e antecipado com facilidade pelo seu inimigo, que esquivou-se com um movimento de seu corpo. Quando o Filho da Tormenta notou outros dois bandoleiros, dentre eles o líder da matilha, já haviam chegado para dar reforços ao amigo.

Agora eram três jovens contra um bêbado que tinha de forçar a visão para conseguir manter o foco; uma luta bem injusta, mas em um mundo como Kyveth aquilo era normal. Ouviu atrás de si a espada de Joy acertar novamente o seu alvo e outro corpo cair sem vida no chão, vítima das flechadas de Filgarim, e então notou que dois de seus adversários avançaram.

O primeiro teve a mão cortada por Arthur que, num movimento rápido de sua espada, conseguiu passar a lâmina afiada quando viu seu oponente levantando o braço para desferir o seu golpe. O sangue jorrou forte, banhando a face de Arthur com o rubro gosmento, mas apesar da sensação de triunfo por ter conseguido desferir o seu primeiro golpe com sucesso ele não conseguiu desviar com maestria do outro. Enquanto a adaga do adversário caía no chão, outra avançou feroz em direção à seu braço, que não era protegido pela armadura de couro. Tentou desviar do golpe, contudo a cerveja tirava muito de seus reflexos. Quando tentou jogar seu corpo para o lado oposto ao da arma que vinha em sua direção, seus lábios separaram-se soltando um resmungo de dor.

O ladrão que teve a mão cortada foi o primeiro a fugir, como também foi a primeira pessoa que Arthur se lembra de ter matado em seus dias de vida.

Ele recuou com medo enquanto gritava de dor e pavor por causa do membro que havia acabado de perder, mas não imaginou que naquele exato momento toda a dor sentida pelo seu oponente começava a se transformar em uma adrenalina que apenas o combate podia oferecer. Então, quando virou de costas e movimentou o seu pé para iniciar sua fuga, sentiu uma lâmina cortar suas costas, primeiro partindo sua espinha em duas e em seguida perfurando o seu coração.

Arthur, num ato de plena loucura, riu do som gorgolejante que o seu golpe provocou e sorriu de prazer quando notou o quão bom era matar seus inimigos. Sabia que eles tinham informações preciosas sobre o seu passado, mas isso não parecia importar mais, porque sua sede por sangue falava mais alto. Retirou sua arma com velocidade do peito de seu inimigo e não se importou com todo o sangue que escorria pela lâmina da arma; fez um perímetro enorme com sua espada e atingiu com maestria o pescoço do atacante que havia acabado de cortar o seu ombro, separando sua cabeça de seu corpo. Dois já haviam perecido por sua culpa, contudo em Arthur não existia um pingo de arrependimento. Viu que o líder havia recuado alguns passos, mas não havia aproveitado a brecha para fugir. Parecia temer, e a morte em combate seria a melhor opção.

— Quem te contratou e o que ele quer de mim? — questionou Arthur, que naquele momento teve a impressão de ser observado por um corpo esguio.

— Fui pago para te matar, não para conversar! — respondeu, e então estocou com o seu sabre.

Antes da arma do ladrão alcançar o seu corpo, Arthur sentiu uma nova energia tomando conta de si enquanto sua espada bastarda subia e despencava, partindo o crânio de seu adversário em dois.

O combate havia acabado e com ele se dissipava o êxtase que tomou conta de si enquanto tirava a vida de seus oponentes. Agora não restava nada mais do que corpos sem vida largados ao chão e uma enorme poça de sangue que começava a se formar no solo. Arthur tentou olhar novamente para onde segundos atrás jurava ter notado um vulto, mas nada achou. Seu corpo começava a doer por causa dos dois ferimentos recebidos e a poucos passos, recebia os olhares assustados de seus dois companheiros de viagem.

— Não sabia que era capaz de empunhar uma espada tão bem. Será um prazer lhe derrotar um dia, Filho da Tempestade. — Foi a voz desafiadora de Joy que fez Arthur parar de buscar pela silhueta que o observava. Notou que havia um pouco de sangue em sua bochecha, mas não parecia ser um incômodo para a garota. — O quê? Ficará me olhando com essa cara assustada? Temos que sair dessa merda de lugar o quanto antes, ou Skadyr ainda terá que cortar algumas cabeças de guardas.

— A mulher tem razão. Se continuarmos aqui quando a milícia chegar, estaremos em problemas, mas se desaparecermos, eles irão nos agradecer silenciosamente por ter livrado a cidade de escória como essa.

Arthur apenas concordou com a cabeça e os três saíram dali o quanto antes. A noite já começava a cair e, quando voltaram para a parte movimentada da cidade, viram diferentes cabanas montadas pelas enormes ruas e pessoas dançando enquanto bardos tocavam suas agitadas melodias. Contudo, a verdadeira festa naquele momento acontecia no Palácio Imperial, onde Thiago deveria animar uma multidão de nobres com suas músicas. Apesar disso, o Filho da Tormenta estava com o corpo dolorido demais para pensar em festejar, e apenas queria deitar-se em uma cama confortável e levantar-se apenas no dia seguinte, quando os torneios em comemoração ao filho de Richard Lionhart teriam inicio.

E ele realmente fez isso. Buscou a estalagem do Canto da Sereia e usou um pouco das moedas que ainda lhe restavam para alugar um quarto de classe média. A cama não era muito diferente daquela na qual havia dormido nos dias que estava na caravana de Thiago, porém pelo menos a mesma melhor e não dava coceira em seu corpo. Por isso, teve uma tranquila noite de sono, sem se incomodar com a gritaria que tomava conta da cidade de Coshamïr.

Dormiu também sem notar que uma coruja havia pousado sobre a janela de seu quarto e que seus olhos dourados estavam lhe observando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!