Crônicas de Kyveth escrita por Eduardo Ariedo


Capítulo 3
III - A loba do norte




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Arthur jamais esteve em Ghardïa, mas sua mente não era ambiciosa o suficiente para compreender o tamanho daquela cidade. Sempre que Thiago lhe contava algo sobre ela, durante aqueles poucos dias de viagem, conseguia imaginar apenas um agrupamento de construções em volta de uma praça central, onde ruas de terra batida ligariam os diversos pontos dali, mas sempre que falava isso em voz alta, o homem era repreendido pelo bardo.

—Arthur, meu caro Arthur. Já lhe disse, você pode ser bom em combate, mas do que adianta saber segurar uma espada se não tem ambição suficiente para conseguir riquezas com ela? Ghardïa é o coração de Kyveth, é a capital de nosso mundo e também a cidade central de Nearis, tudo o que acontecesse nesse reino terá influência nos outros. Sejam estas boas ou ruins… Sua mente consegue entender o meu raciocínio ou não? — Thiago constantemente criticava a falta de ambição existente em Arthur, queria transformá-lo em um herói que ficaria eternizado por todo o sempre, contudo ele apenas queria entender o seu passado. Não almejava ouro e muito menos glória. — Olhe em volta, ontem passamos pelas Planícies de Grainwood, ali anos atrás houve uma das mais épicas batalhas de todas e há muitos outros pontos como esses somente em Nearis, então imagine Arthur, o quanto Ghardïa não é grande? Para uma pessoa ser admirada pelos outros, deve ser forte. Richard Lionhart, nosso grande rei, é um dos mais valorosos guerreiros atualmente. Ele é poderoso e você vê alguém querendo destroná-lo? Não. Então, o mesmo acontece com as cidades…

— Ahn… — Respondeu Arthur, enquanto mordiscava a parte inferior de seu lábio e tentava, sem sucesso, imaginar mais uma vez a imponência que era Ghardïa, mas nada como Thiago descrevia aparecia em sua mente, por isso ele suspirava e levava a mão onde havia sido ferido naquele dia de manhã em um combate contra ladrões. — Acho que só terei ideia de seu tamanho mesmo amanhã, quando estiver em frente a esse tal enorme portão de ferro… — Finalizou sua frase e sem esperar a resposta do bardo, entrou na carroça e se deitou na palha que havia ali, não demorando muito para dormir.

Naquela noite, sonhou que lutava contra um guerreiro de armadura negra, mas não lembrou-se disso quando acordou no outro dia.

~♦~

Quando acordou naquele dia, Arthur finalmente entendera porque Thiago dizia que havia pouca ambição em sua mente.

Ghardïa era difícil de ser definida em palavras, eram vários agrupamentos de diversas construções enormes em volta de um enorme espaço central, como pensou na primeira vez que o bardo lhe descrevera, o problema ali era que não havia apenas um lugar como esse e sim uns seis destes pelo menos, se não mais, pois depois resolveu parar de contar e prestar atenção em seus outros detalhes. Haviam salões de festa cheios de colunas, enormes igrejas brancas como a lua que os iluminava e ostentando enormes cruzes douradas em seu topo e pequenos palácios feitos de tijolos. Em quaisquer outras cidades de Kyveth as casas seriam feitas de madeira com os telhados feitos de palha, sendo muito pequenas e tendo espaço apenas para uma pequena família viver, mas ali não, as pessoas queriam demonstrar a prosperidade existente com suas enormes moradias, tendo dois ou três andares cada e mesmo que algumas estavam desmoronadas, grande parte ainda tinham seus tetos de telhas. Entre as ruas – onde elas eram feitas de ladrilhos de pedra – quase não havia espaço para se andar, pois haviam sido dominada pelos visitantes que lá estavam. Mesmo de longe Arthur era capaz de notar, mesmo que não conseguisse distinguir um desenho de outro, diversas flâmulas balançando ao vento, coloridas e com símbolos de seus donos, o homem não entendia muito para que fazer um brasão, mas Thiago havia lhe dito que isso te tornava importante na sociedade kyvethiana e que se Arthur demonstrasse ser digno de um, também poderia ter um.

— Te falei. Sua mente é pequena demais, Arthur. — Falou o bardo, enquanto tocava o ombro de seu amigo boquiaberto. — Você tem que ser ambicioso, sempre desejar mais e mais. O mundo, meu caro Arthur, deve ser pequeno demais para o tamanho de sua ambição. — Terminou.

— Deve ser. — Naquele momento, palavras não eram atrativas para o guerreiro, que desejava mesmo era continuar absorvendo todos os detalhes que a cidade lhe proporcionava.

Ghardïa poderia ser bela, contudo o Castelo Imperial era um espetáculo a parte. Ele ficava em um morro acima da cidade, de forma que se acontecesse um ataque, eles teriam que passar pelas ruas ladrilhadas antes de chegar onde o rei estava e em volta da muralha de pedra, existia um profundo lago, mas esses detalhes pouco eram notados quando se estava tentando entender a genialidade dos arquitetos que levantaram aquilo. Haviam cerca de três torres. As duas primeiras, cada uma localizada num dos extremos do castelo, eram finas e altas, mediam algo entre sessenta ou setenta metros cada a central, larga e um pouco mais baixa que as outras, ficava exatamente no centro, sendo a câmara principal daquele lugar. E da distância que estava, tanto quando daquela enorme fortaleza quanto da cidade, Arthur pode distinguir o único brasão: O leão dourado pintado em ambas as enormes flâmulas presas as torres laterais.

Chegaram, por fim, em frente aos enormes portões de ferro da cidade que estavam abertos e agora Arthur podia estudar com um pouco mais de atenção as ruas. Via homens com enormes barbas caminhando de um lado para o outro, vestiam armaduras de diferentes materiais, mas todas estavam decoradas com um dos vários brasões dos nobres, contudo, em algumas raras ocasiões ele via guerreiros solitários com símbolos próprios. Segundo Thiago, estes homens se demonstraram valorosos em combate e tinham ganho o direito de ter o seu próprio desenho no escudo, mesmo não tendo a posse de feudos. Então, após uma longa caminhada pela rua principal e a mais movimentada de todas, o bardo parou em frente a um enorme anfiteatro, onde a terra estava sendo preparada para o torneio que aconteceria no dia seguinte e olhou para o Castelo Imperial, era possível notar que o sorriso formado em seus lábios era de completo deleite e empolgação.

— Você fica por aqui, Arthur. — Falou, num suspiro incerto. — O Castelo Imperial é somente para nobres e alguns convidados especiais e eu tenho alguns trabalhos extras para fazer, preciso me preparar também para animar uma multidão hoje a noite. Por isso, vou deixar você conhecer um pouco a cidade, mas tome cuidado… Você não tem ambição, mas os outros têm, uma palavra em vão e sua vida pode ser arrancada de si. Me encontre amanhã a noite em frente a estalagem do Canto da Sereia e espero que esteja vivo. — Ele riu após terminar de falar e levou sua mão até o bolso da calça que utilizava, tirando de dentro dele um pesado saco de moedas. — É perigoso ir só, tome isso. — Finalizou, entregando na mão de Arthur. — Compre uma espada nova, te recomendo ir no Sopro de Dragão, diga ao Thortramm que Thiago lhe agradece pelo seu alaúde.

Era incrível como o bardo não parava de falar um segundo, Arthur era completamente diferente. Seus olhos buscavam sempre um detalhe a mais que passava despercebido, então, quando fitou a sua esquerda, viu um corpo se destacar entre os demais, principalmente o brasão desenhado no escudo que estava repousando no solo: uma enorme cabeça de um lobo intimidador, a sua pelagem era negra e os olhos, vermelhos e intimidadores.

— Ela não faz o tipo de princesa indefesa, Arthur. — Comentou o bardo, enquanto com o olhar indicava a mulher que o outro fitava. Em seguida, após um longo suspiro, ele afastou-se lentamente, pensando que errou ao dizer que deveria ter ambição em seu coração.

Assim que Thiago se foi, a mulher que estava de costas virou-se lentamente e deu a Arthur uma das visões mais deslumbrantes desde que se lembrava de existir, o que não era muito tempo. Era uma mulher que já deveria ter enfrentado uns vinte e quatro verões, mas como Thiago lhe disse, ela não parecia ser indefesa. Seu corpo, apesar de ainda ter algumas leves curvas sensuais, era poderoso o suficiente para defender-se a si mesmo, os ombros largos, suportando o peso da armadura de couro que vestia, mas sua beleza não estava em seu tronco e sim no seu rosto. Pontudo e de olhos azulados, os lábios finos e seu cabelo era curto fazendo que o negro de seus fios contrastassem perfeitamente com sua pele clara, parecia que ela tinha optado por cortá-los devido as situações de combate, onde uma longa juba poderia ser puxada com força e dar fim a uma vida. Haviam, ainda, algumas sardas espalhadas em volta de sua bochecha. Aquela mulher era linda, mas também trazia consigo um ar de perigo. Era realmente como uma loba, ao mesmo tempo bela e feroz.

Arthur caminhou em sua direção a passos lentos e quando ela notou sua aproximação, fechou os olhos e soltou um longo suspiro, ao mesmo tempo em que a mão direita já estava posicionada a cintura, pronta para sacar sua espada caso ele estivesse se aproximando com segundas intenções dela, mas ao notar isso, o rapaz levantou os dois braços até a altura da cabeça – um gesto de paz, pelo que aprendeu – e quando estava próximo o suficiente, fez uma pequena reverência a ela.

— Qual o seu nome? — Questionou Arthur, com um leve tom de nervosismo em sua voz.

— Apenas um bárbaro pergunta o nome de alguém sem mesmo antes se apresentar, mas há alguns cachorros também façam isso. — Foi a resposta que recebeu. A voz da mulher era um misto entre o agudo e o grave, era como a sua dona: sensual e ao mesmo tempo perigosa.

Um pequeno clima de tensão se instaurou ali e foi percebido por alguns guerreiros, que olharam para os dois de forma inquietante. Arthur olhava-a nos olhos e descobria em si um lado orgulhoso que não pensou ter, enquanto ela, mantinha com a mão a bainha de sua espada.

—Acho que até mesmo um bárbaro saberia que não é educado deixar os outros sem respostas, não é mesmo, donzela? - Conforme falava, o homem se sentia estranho, as palavras podiam escapar de seus lábios, mas não era da forma como desejava e por mais que tentasse recuar, algo o mantinha ali.

—Eu não sou uma donzela, meu caro. Não busco proteção atrás de um homem quando sou atacada, faço eles se ajoelharem ao meu pé e beijá-los, pedindo perdão pelas ofensas que recebi. - A mulher falava de forma ríspida, mas Arthur podia notar um pouco de satisfação em sua voz.

Durante os poucos milésimos que teve para pensar em uma resposta, o homem também levou a mão na espada presa em sua cintura. O clima ficava mais tenso a cada nova palavra proferida e ele podia ouvir algumas pessoas cochichando entre si. Não conseguia distinguir as palavras, mas muitos o admiravam por falar com a outra daquela forma. Outras, começavam a apostar moedas de ouro em quem sairia vitorioso daquela possível luta.

—Desculpe-me, mas não me lembro de ter ofendido ninguém, minha cara. - Arthur fechou os olhos e deixou um longo suspiro escapar de seus lábios. Não se lembrava de ter ofendido-a, como também não recordava se donzela em Kyveth era uma forma de xingamento. As vezes, achava que sua mente gostava de brincar com ele, pois as memórias iam e voltavam na mesma velocidade em que seu coração batia.

— Não me ofendeu? Também não irei te matar, bárbaro. Apenas passarei a lâmina de minha espada por sua garganta. Como disse, não tirarei sua vida, mas minha espada vai. Há menos que se ajoelhe, cachorro.

Arthur fez a menção de abrir sua boca para responder, dentro de si um pequeno ódio por aquela mulher começava a ser formado, contudo, uma voz grave – semelhante à de um martelo golpeando o aço interrompeu-o.

— Ela não é uma simples mulher, seu idiota e muito menos uma donzela em apuros.

Todos os olhares se voltaram para quem havia dito isso, contudo todos demoraram para encontrá-lo. O dono da voz era um homem baixo e de corpo robusto. Não deveria medir mais que um metro e cinquenta, contudo os seus músculos poderiam intimidar qualquer um. Seu longo cabelo ruivo e seboso caia por sua costa, estando preso em um rabo de cavalo, a barba – ou melhor um cavanhaque – estava bem cortada em volta de seu queixo e seus olhos, grandes e redondos tinha a coloração preta. Vendo que havia atraído a atenção de todos, inclusive a da mulher que provocava Arthur, deu alguns passos a frente. Utilizava vestes brancas e refinadas, deixando uma pequena parte de seu peito cabeludo de fora e sobre suas roupas, passava um grosso fio de couro que segurava a aljava que pendia atrás de si, junto com seu arco branco.

— Ela é uma donzela guerreira — Repetiu o anão de forma calma e didática, enquanto sua mão coçava o seu queixo e ele suspirava. — É uma garota, como todos devem ter percebido, mas pelo visto parece que a nossa amiga não se contentou com a vida para servir um homem e resolveu ser diferente, muitas pessoas são assim, não é mesmo? Para uma mulher, posso dizer que ela tem bons equipamentos a disposição, diferente de você, homem.

A explicação dada pelo anão não serviu em nada para diminuir a tensão entre os outros dois. Agora, mais pessoas se juntaram as outras e uma pequena aglomeração começava a surgir. Logo, atrairiam atenção dos guardas.

— Você também não se apresentou e agora está tirando conclusões sem saber a verdade, pelo visto essa cidade foi tomada pelos bárbaros do norte e eu não fiquei sabendo — disse, os dedos de sua mão esquerda se fechavam e abriam com velocidade, enquanto a direita se mantinha próximo ao cabo da espada.

O anão, preparando-se para pegar o arco, tentou argumentar mais uma vez.

— Você sabe que ter um brasão não ira ajudar em nada caso ocorra morte aqui, não é? — seus joelhos flexionaram lentamente e seu olhar estava fixo nos da garota.

— Acho que ela não quer ouvir nossas palavras, anão e sim outra coisa. — quando terminou de falar, Arthur deu alguns passos a frente e tentando entender os cochichos das outras pessoas ali em volta, aproximou-se dela, que levou o seu movimento com um ato de ofensa.

Num movimento rápido, a mulher sacou sua espada e a plateia que se formava ali urrou admirada. A lâmina era longa e quando foi retirada de sua bainha, cortou o ar com velocidade e Arthur pode notar que por onde ela passou, uma fina camada de gelo se formou. Então, a ponta da lâmina foi apontada em sua direção e a mulher mordiscou a parte inferior de seu lábio, enquanto sua arma era recoberta de uma camada fina de geada alva, que ela mesma criava, produzindo a cada novo segundo mais gelo enquanto o excesso caia em direção ao chão com formato de pequenos flocos. Era uma espada mágica e o homem teve certeza de que naquele momento não conseguiria derrotá-la. Por isso, abriu sua mão direita, parando de pressionar o cabo de sua arma e suspirou. Se entregando, já planejava tentar se desculpar antes, mas não havia dado certo.

— Sou Arthur, filho da Tormenta e peço perdão por ter lhe ofendido. — Falou, enquanto sentia uma pequena pontada de decepção atingindo o seu coração, ferindo o seu orgulho que havia surgido quando conheceu-a.

— Falagrim — Completou o anão, decepcionado, contudo, não havia pedido desculpas.

Ela pareceu satisfeita com a resposta.

— Todos pedem, meu caro. Vocês homens dizem serem os grandes lutadores de Kyveth, mas por que recuam quando conhecem Skadyr? Medo de terem as bolas congeladas? - Ela ria de forma sádica enquanto falava, se deliciava com a expressão de horror que tomava conta das pessoas que estavam ali em volta e principalmente de Arthur. - Alias, me chamo Joy, mas muitos me conhecem como a loba do norte. Infelizmente, eles só pedem perdão quando minha lâmina já está afundando em suas gargantas. Vocês dois, ao menos, tiveram um pouco de bom senso e recuou antes do meu ataque, são duas pessoas com um pouco de bom senso, Arthur e Falagrim.

Arthur, que sentiu o seu coração quase sair pela garganta, engoliu em seco e balançou sua cabeça em sinal de concordância. Naquele momento, poucas pessoas ainda observavam os dois, estas que continuavam ali eram formadas principalmente por crianças curiosas que desejavam tocar a espada de Joy, mas ela os ignorava.

— Dizem que eu costumo ter pouca ambição, mas se tivesse ela agora, possivelmente teria atacado e estaria morto agora. As vezes é preciso ter um pouco de bom senso. —Finalizou, enquanto estendia a mão em sua direção e cumprimentava-a.

Ambos então se entreolharam por alguns segundos, Arthur em silêncio, estudando a garota aproveitando a pouca distância que os separavam. Enquanto Falagrim coçava o seu cavanhaque, sem estar muito interessado na conversa dos dois. Então, a voz de Joy soou, reiniciando o assunto.

— Eu sei, mas não terei tanta dó de ti quando nos encontrarmos em um campo de batalha, lá Skadyr falará por mim e ela não é tão bondosa como sua dona. — Soava com um pouco de ironia a sua voz, mas ela pouco ligava. Então, puxou Arthur pelo braço. — Fala como um homem, mas será que bebe como um? Ou vai vomitar feito uma dessas princesinhas quando engolir um pouco de hidromel?

Não esperou sua resposta e pegando o seu escudo jogado ao chão, Joy levou Arthur para uma das mais famosas tabernas existentes naquela região da cidade. Falagrim, mesmo sem ter sido convidado para a bebedeira, seguiu-os. A cerveja de Kyveth era boa, mas não tanto quanto a da sua casa que sentia tanta falta, também achou cômica a forma como Arthur e Joy se conheceram naquele começo de manha, por isso iria questioná-los quando estivessem bêbados. E foi assim, quando viraram aquela esquina, bêbados e com a visão debilitada por causa da noite que começava a brotar, que foram atacados, dando início a epopeia do Lobo na Tempestade, mas isso é outra história.


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