Crônicas de Kyveth escrita por Eduardo Ariedo


Capítulo 1
I - Bem-vindo a Kyveth




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Antes de cair, a única lembrança que veio na mente do homem era a de um enorme vulto negro, carregando uma espada que refletia a luz do luar avançando em direção. Após isso, nada além da escuridão.

Em seguida, quando voltou a abrir seus olhos sabe-se lá quanto tempo depois da última imagem que estava em sua cabeça, sentiu o amargo gosto de uma erva medicinal descer por sua garganta, fazendo-o abrir seus olhos rapidamente, assustado. Estava deitado numa pequena cama improvisada, pois via que a palha do colchão não havia sido amarrada de forma correta, fazendo com que diferentes partes de seu corpo coçassem.

Estudou o local com olhos e, por uma pequena fração de segundos, imaginou estar em um quarto de algum nobre, pois o ambiente era bem decorado e feito da mais pura madeira existente naquele mundo. Os objetos que conseguiu encontrar com sua visão - ainda meio embaçada - pareciam ser de grande valor, contudo o local não estava organizado. Papéis e penas jogadas em um lado, enquanto a tinta parecia estar encaixotada em pequenas caixas de madeira e sob estas, um alaúde vermelho decorado com uma coloração tão dourada que parecia ser de verdade.

Então, conforme os seus sentidos voltavam, o homem ouviu vozes vindo do lado de fora e notou finalmente que não estava em um quarto e sim em uma carroça, pois junto com as vozes, também ouvia cascos golpearem o chão de terra batida rapidamente.

Agora, com todos os seus sentidos de volta ao corpo, levou a mão esquerda até sua testa e sentiu uma forte dor vinda do local e também compreendeu a gravidade do problema: apesar de já estar respirando, enxergando e ouvindo com clareza, as lembranças do que acontecera na sua vida antes de abrir os olhos desaparecem completamente.

Qual era o seu nome? De onde vinha? Por que estava ali? Eram perguntas que não saberia responder, mas talvez as pessoas que estavam do lado de fora saberiam responder-lhe. Contudo, no exato momento em que seu pé saiu da cama onde estava, o veículo que o transportava passou em cima de um pequeno buraco e aquela irregularidade no terreno, junto com o fato dele não estar preparado, jogou o rapaz no chão fazendo com que o encontro de seu corpo ao solo de madeira fizesse as duas pessoas que conversavam animadamente lá fora silenciarem-se de imediato.

— Acho que ele acordou. — Disse a primeira voz, aparentemente masculina. Era uma tonalidade musical e afinada, como se o seu dono fosse acostumado a passar horas e mais horas em frente a uma plateia se apresentando.

— Vá lá ver. — Respondeu a segunda. Dessa vez, não parecia ser tão gentil quanto a primeira. Era mais áspera e séria, como se o seu dono fosse um homem de poucas palavras e sim preparado para situações de perigo, onde falar não adiantaria nada.

Então, o silêncio perdurou no local por poucos segundos.

O homem dentro da carroça não soube dizer por quanto tempo ficou ali sentado, esperando alguém aparecer. Poderiam ter se passado apenas algumas poucas frações de segundos, mas a sua ansiedade por respostas fez aquele pouco tempo parecer longos minutos intermináveis. Seu coração palpitava conforme os cavalos andavam. Parecia uma criança ansiando por respostas, mas na verdade, ele era curioso. Será que aquelas pessoas desconhecidas saberiam dizer quem ou o que era aquele homem trajando vestes negras? E qual era o seu nome? As dúvidas pipocavam em sua mente e, quando ele viu o primeiro corpo adentrar aquele local, teve a esperança delas serem respondidas.

O homem, talvez o dono da voz mais afinada, aparentava ser belo. Era uma pessoa alta e de corpo frágil. Não era possível enxergar músculos em seus braços, mas o que mais chamava a atenção era seu rosto: a pele branca caia perfeitamente com seus olhos esverdeados, seus cabelos - bem penteados com algum óleo - eram de coloração castanha e sua barba rala dava uma beleza a mais naquele rosto triangular de lábios finos. A primeira vista, o desconhecido parecia ser uma pessoa gentil, pois era claro o sorriso estampado em suas feições animadas.

— Vejo que acordou, meu caro! — Exclamou, com a mesma voz musical. — Você ficou dormindo alguns dias. E, por um pequeno momento, pensei que não voltaria a abrir seus olhos, mas graças ao Criador, você está bem. Então, qual o seu nome? — Enquanto falava, não parecia pessimista muito pelo contrário. Era uma pessoa otimista que inspirava confiança as outras pessoas.

— Meu nome... - Respondeu o outro após um longo suspiro, enquanto olhava para o nada, tentando se lembrar de algo, contudo apenas as imagens de um final de combate lhe vieram à mente novamente. — Achei que você soubesse...

Por uma pequena fração de instantes, a feição do homem que estava em pé mudou para a de uma pessoa decepcionada. Porém durou poucos segundos, pois como num piscar de olhos, ele voltou a sorrir e estendeu sua mão ao seu "amigo" que ainda estava no chão.

— Prazer, senhor-sem-nome. Chame-me de Thiago Leveck, o bardo. Pode não saber o seu nome, mas sabe o motivo de estar aqui ou todas suas memórias foram apagadas?

Quando Thiago terminou de falar, o outro homem pegou em sua mão, apoiando-se para levantar e logo em seguida, voltou a se sentar na cama. O seu corpo ainda estava cansado e em alguns pontos, ainda doía. A cada nova pergunta feita pelo bardo, se sentia ainda mais perdido naquele mundo. Era uma pessoa sem nome e agora também não tinha história. Era como um daqueles imensos rolos de pergaminhos que estava encaixotado ali dentro: vazio por dentro. Então, antes de responder, levou a mão esquerda até seu queixo e notou que ali havia uma grossa e volumosa barba.
— Também não tenho passado, Thiago... — Começou, mordiscando a parte inferior de seu lábio. — Sou um homem que não tem nome e muito menos história. Sou como um desses teus pergaminhos velhos; posso existir, mas vazio por dentro. — Terminou, sem muito ânimo.

— Olhe pelo lado bom, rapaz. — Disse o bardo, enquanto se sentava ao lado de seu amigo e dava-lhe um pequeno tapa nas costas, tentando levantar a sua autoestima. — Pelo menos você sabe para que serve um pergaminho e consegue falar de forma correta. Diferente de alguns camponeses que conheci em minhas viagens, apesar daquelas pessoas terem lembranças de suas histórias, falam apenas um pouco melhor do que aqueles bárbaros vindos do oceano. — Então, parou de falar para tomar um pouco de ar e após alguns segundos em silêncio, retomou suas palavras. — Também temos alguns outros pontos positivos para enxergar! Você diz não ter história, um pergaminho vazio. Então, por que não pega um pote de tinta e começa a escrevê-la? Vai que entre essas linhas encontre algum manuscrito perdido que mostre o que aconteceu?

As palavras do bardo eram sinceras, entretanto, também tinham um pouco de interesse pessoal nelas. Thiago era famoso no mundo todo, sua agenda de apresentações era completamente lotada. E havia nobres que brigavam de forma ferrenha entre si para poder ter a honra do músico em sua corte durante mais um torneio, contudo, apesar de sua bela voz e beleza impecável, também era inteligente. Sabia que todo aquele sucesso só ficaria até o seu último dia de vida - talvez nem isso - e que depois disso, ele seria apenas mais um entre os diversos bardos que já viveram, mas sua ambição clamava por mais.

Thiago queria ser um modelo de perfeição para as próximas gerações e queria ter seu nome cantado também por outras pessoas após sua morte. O único problema que enfrentava era o de ser bom apenas em compor e não em lutar, desse modo, jamais poderia partir sozinho em uma aventura digna de uma melodia sua. Mas o Criador havia dado uma benção a ele: aquele homem, completamente sem história, era realmente um pergaminho vazio que precisava ser preenchido com as mais belas palavras existentes nesse mundo e a tarefa de escrevê-las seria do bardo. A épica balada do Guerreiro sem passado e o seu fiel Companheiro.

— Eu sei que devo recomeçar minha vida a partir daqui, mas como? Agora sou uma pessoa que por não se lembrar de seu passado perdeu tudo aquilo que lhe era de direito. Se eu tivesse alguma coisa antes de estar aqui, não é mesmo? — Enquanto falava, escutava a sua barriga roncar e uma estranha sensação correu por seu corpo, era como se ele estivesse completamente vazio e precisasse ser preenchido por algo. Colocou suas duas mãos sobre o lugar que lhe incomodava e então a palavra certa para definir aquilo lhe veio a mente: fome.

O protesto do estômago do homem sem nome foi ouvido pelo atento Thiago que riu com a preocupação de seu amigo, então novamente lhe deu um pequeno tapa no ombro e se levantou.

— Depois de alguns dias dormindo e sem comer nada, é normal que o seu estômago ronque desse jeito, meu caro, mas não se preocupe. Em alguns minutos iremos parar as carroças e começar o preparo de nosso almoço, mas antes, temos que lhe dar um nome para ficar mais fácil a comunicação. O que prefere? Nome de antigos heróis? De Reis? De lendas que vivem apenas nas melodias e não há provas de sua existência?

— Escolha o que achar melhor. Não importa. — Respondeu, mesmo que com a perspectiva de nos segundos seguintes ter um nome, isso não o animava, pois não seria o seu e sim criado por outra pessoa apenas para suprir uma necessidade.

Thiago ficou coçando o seu queixo. As possibilidades para o seu novo herói eram infinitas, poderia homenagear algum antigo rei escolhendo o nome para ele, mas todos que veio a sua cabeça naquele momento não eram épicos o suficientes e os únicos heróis que se lembrou não haviam efetuados feitos dignos do que o seu amigo faria. Então, quando já estava perto de perder suas esperanças, surgiu no fundo de sua mente uma ideia: o antigo rei dos cavaleiros, talvez o maior mito desse mundo e que levava diversos pesquisadores famosos a discussões ferrenhas sobre a existência daquela pessoa. Se ela realmente existiu um dia, o amigo do bardo teria que carregar um enorme fardo em suas costas, mas se fosse apenas um mito, a lenda se tornaria real a partir daquele segundo.

O bardo sorriu enquanto se empolgava em suas imaginações, fazendo o outro arquear a sobrancelha em dúvida.

— Então, meu caro amigo, não poderá mais reclamar de seu nome, pois agora terá um. - Thiago sorriu, enquanto cruzava seus braços.

— E qual é? — Perguntou o homem-sem-nome, enquanto começava a perceber que a carroça que estavam já havia parado há alguns minutos e o cheiro da refeição sendo preparada atiçava ainda mais sua fome.

— Você, a partir de agora, terá o nome de uma das maiores lendas que já pisou sobre Kyveth, meu caro. Agora, não será mais o sem-nome e sim Arthur, o filho da Tormenta!

— Arthur? Tormenta? — Questionou, enquanto fitava Thiago nos olhos.

— Sim, quando te encontrei há alguns dias atrás, estava de noite e a chuva caia sobre nós com tamanha força que parecíamos estar no meio de uma Tormenta. Nossos cavalos já não mais andavam e teríamos de parar o mais rápido possível se quisemos ter a chance de passar por aquela tempestade sem grandes perdas. Então, vi rapidamente um brilho forte no céu, como se fosse um raio golpeando a terra ferozmente. Pensei em ignorar, mas um de meus homens disse ter visto uma mancha negra acompanhando essa claridade. Movido pela curiosidade, como um bom bardo, encontrei o seu corpo. Completamente ferido. Por isso, Arthur, você é o filho da Tormenta! — Naquele momento, Thiago abriu seus braços com ânimo e sorriu. — Agora está na hora do almoço, depois, vamos ver se você sabe empunhar uma espada.

Sem esperar a resposta de seu amigo, Thiago rapidamente saiu da carroça onde estavam pelo único local que havia ali, deixando Arthur sentado no meio da palha mal amarrada. O homem olhava para as suas próprias mãos. Estavam calejadas em várias partes, mas eram limpas. Talvez, fosse uma pessoa de higiene antes de perder a memória ou Thiago e algumas pessoas que o acompanhavam fez aquele bom trabalho, não sabia dizer.

A única coisa capaz de explicar era o sorriso que se formara em seus lábios. Há alguns minutos atrás se sentia um saco vazio, sem nenhuma perspectiva do que fazer, mas o Criador parecia estar guiando sua vida, pois teve a sorte de encontrar um homem que queria ajudá-lo. Levantou-se de onde estava e conforme caminhava para fora, sentia o calor do sol golpeando sua face e o resto de seu corpo, dando-lhe leves arrepios, porém seus olhos ainda não estavam acostumados com aquela intensidade e por instinto, o seu braço esquerdo tentou proteger a irritação que se iniciava.

Por fim, antes de pular para fora, viu uma majestosa águia de plumagem vermelha cortar o céu azulado, e com poucas nuvens, numa velocidade incomum.

Certamente, não poderia ter passado, mas o futuro estava em suas mãos.


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