Homem Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 2
Maremoto




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– Tem certeza que não quer jogar pôquer? – questionou Lizzy mais uma vez ao chegarem em seu apartamento, logo após o fim da exposição. Ela olhava para Jack como se houvesse algo de errado em seu rosto, ou pior, nele.

– Não, eu... Eu preciso dormir um pouco. Você se importa?

Por mais insano que fosse o segredo que Jack guardou por toda vida, a ideia que lhe arrebatou no museu não saía de sua mente. Mais do que ninguém, ele sabia que até as impossibilidades tinham limites. Só havia uma pessoa que poderia aconselhá-lo sobre isso.

Lizzy parecia desconfiada, tentando com todas as forças entender o que acontecia com o jovem. Ela riu e cruzou os braços, franzindo a testa.

– Sem problemas. Vou aproveitar e começar o trabalho da faculdade.

Jack tentou esboçar um sorriso sem muito sucesso quando ela atravessou a sala pequena, desviando dos móveis usados de madeira, para chegar ao seu quarto. Antes de adentrar o cômodo, Lizzy se virou para ele uma última vez.

– Jack, você está bem? Mesmo? – ela soava realmente preocupada.

Essa era uma ótima pergunta, ele pensou. A história da mulher suicida, o colar e seu próprio mistério... Tudo era uma massa cinzenta pesando como concreto injetado aos poucos em seu crânio, impedindo-o de pensar em qualquer coisa além disso. Jack não estava bem. As mãos formigavam, a barriga zunia, o coração corria e as bochechas esquentavam. Ele também não estava mal.

– Estou sim.

Ao menos Lizzy conseguiu esboçar algo mais próximo de um sorriso se comparada à Jack. Assim que ela deu meia volta e fechou a porta atrás de si, o pintor correu para o banheiro, trancando-se por dentro. Inspirou, expirou. Ele perdeu a noção de quantas horas ficou lá; mesmo que pudesse ter passado apenas alguns minutos, pareceu uma eternidade. Talvez Lizzy tivesse pegado no sono, também não ouvia nada vindo de seu quarto pelas finas paredes do edifício.

O que era esse desconhecido? O que, por Deus, seria esse querer emergencial que o colocou ali, prestes a fazer exatamente aquilo que há tantos anos evitava? A história de Rose girava pelos seus olhos, por seus pensamentos, tudo ilustrado por aquele colar. Ele sentiu algo de diferente nele, algo místico. Se alguém poderia notar algo que beirasse o sobrenatural em um lugar, esse alguém era ele. Jack, afinal, era um Lake Dawson.

O banheiro começou a lhe parecer claustrofóbico o suficiente para um ataque de pânico. Para seguir com o plano insano que lhe apeteceu, ele precisaria se consultar com seu velho guru. Era estranho lidar com a pressão de resolver tudo o mais rápido possível ao lado de considerar as possíveis consequências de seus atos dali em diante. Jack poderia perder todos que amava só por uma loucura repentina que mal entendia ou sabia explicar.

Ele sentiu um puxão no estômago só de pensar nisso e ficou parado por mais um tempo impossível de calcular no toalete. Talvez esse fosse mais um truque cruel do destino, pensou. Perdurar segundos, minutos, horas, tão somente a fim de prolongar o sofrimento alheio o quanto quisesse. Jack concluiu, baseado em experiências anteriores, que era bem a cara do destino fazer isso.

Quando se viu preparado, tocou no interruptor e a luz se apagou. O toalete de ladrilhos azul-bebê vertera-se em breu, a reles iluminação abrindo caminho com dificuldade pelas frestas ao redor da porta.

Jack se posicionou atrás dela, fechou os olhos, pôs as mãos em punho ao lado do corpo e mentalizou a data para onde – melhor, quando ­– queria ir. As sensações inquietantes aumentaram, mas ele se controlou até cessarem. Para um viajante do tempo, Jack Dawson sempre soube lidar com suas emoções, ao menos até agora.

16 de agosto de 2052

Chippewa Falls, Wisconsin / EUA

– Vô.

Tim Lake não havia mudado muito nos últimos dois anos, mas vê-lo depois de quase seis meses longe pela faculdade mergulhou o jovem em uma nostalgia profunda. Lá estava o avô de Jack, sentado ao sopé da janela acolchoada aproveitando a luz do dia para ler Moby Dick. Os óculos só não caíam do rosto pela cordinha bege que fazia um colar em sua nuca, bem abaixo dos ralos cabelos brancos, outrora tão vermelhos quanto as bochechas de Jack naquele momento.

Ele olhou para o neto com as duas safiras que trazia nos olhos, fechando o livro.

– Já voltou?

Jack sentou na sua frente, o cheiro da chuva da noite anterior escapando pelas dobradiças da janela para dentro da sala de estar da casa dos avós. Aquela foi mesmo uma época chuvosa. Ele levantou uma sobrancelha e Tim abriu a boca em surpresa.

– Oh, você voltou. E não do mercado com sua avó.

– Não, eu... Daqui a dois anos. Eu vim de lá.

O homem bufou e colocou a brochura de lado, soltando os óculos para se pendurarem no pescoço enrugado.

– Você tem alguma dúvida, não tem? – sugeriu Tim.

Jack nunca foi a fundo em todo o aspecto das viagens do tempo em sua vida, limitando-se a saber o básico. Era um gene passado de geração em geração? Correto. O dom era herdado apenas pelos homens da família? Correto. Seu pai era um deles? Errado. Sua mãe, Posy, havia lhe passado a genética. Filha de Tim, ela morreu de câncer antes de Jack se formar no ensino médio. Eles podiam ser mestres do tempo, mas analfabetos em mudar algo tão biologicamente entranhado. O pintor decidiu, desde então, que se viajar no tempo não podia salvar a vida da mulher de sua vida, não era algo a ser usado. Só isso poderia fazê-lo viajar novamente. O dia do funeral foi a última vez em que Jack voltou ao passado.

– Tenho. Eu preciso viajar... Pra longe.

O idoso cerrou os olhos, em dúvida.

Quão longe? – a voz grave ficava ainda mais embargada no tempo úmido.

Jack refletiu mais uma vez antes de falar e todas as sensações estranhas voltaram. Ele engoliu em seco.

– 1912.

Seu avô se tornou avesso à fotografias e sua perda de valor com o passar dos anos, mas o neto ficou tentado em clicar sua expressão quando ouviu a data.

– Jack, is-isso é loucura – ele ergueu as mãos, enfatizando e até se enrolando com as palavras. – Você conhece as regras, só podemos ir para onde estivemos! Isso pode ameaçar toda a estrutura do tempo, até te machucar... Olha, ontem vi um documentário sobre a Arábia Saudita e, só porque vi o lugar, não quer dizer que eu possa tentar ir para lá na hora da gravação. Eu não estava lá. Você não conseguiria.

– Eu preciso. Tem uma garota que se suicidou... Sei o que vai dizer, “pessoas se suicidam todos os dias”, mas ela... Ela é diferente.

– Você nem a conhece, Jack. Desculpe, mas isso é uma idiotice. E suponhamos que desse certo, como ia ter certeza que não estaria alterando tudo que conhecemos?

Isso era verdade, mas Jack sabia que deveria ter uma alternativa. Rose precisava ser salva, independente do quão recente isso martelasse em sua cabeça. Ele sabia que não estava sendo razoável, contudo, quanto mais se desviava do que viera fazer ali, mais as inquietações aumentavam, como se o destino quisesse que fosse em frente com aquilo.

– Não foi o senhor quem me disse que uma pedra pisada de um jeito errado no passado pode causar o apocalipse do futuro? – contra-argumentou o pintor com uma das frases de efeito do avô de toda vez que falam sobre as viagens.

– Está comparando uma pedra à vida de uma pessoa? Jack, são forças muito ligadas. Tempo, destino... Morte. Podemos brincar com uma e outra, mas todas ao mesmo tempo? É loucura, tão louco que você sabe e ainda insiste.

Droga, ele estava certo. Mas por que a vida de alguém era menos importante que uma incerteza? As perguntas começavam a embaralhar na mente de Jack, quanto mais o avô recusava sua meta.

– Tem um colar.

Tim enrijeceu a postura.

– E?

– Não é um colar comum, sabe? Tem algo nele... Algo que eu acho que pode me deixar, bem, brincar com as três ao mesmo tempo.

O homem riu, emendou uma tosse que Jack julgou ser da idade e apertou a junta no alto do nariz entre o indicador e o polegar.

– Você é doido.

– Disse o viajante do tempo.

Ambos gargalharam, um pouco pela preocupação, um pouco pelo ridículo. Jack se levantou de súbito, esfregando as palmas na calça. Tim reparou no ato e abandonou a poltrona, também se pondo de pé.

– Eu preciso ir.

– Suas mãos estão suando.

Jack se alarmou instantaneamente, pensando se estaria suando frio e havia contraído uma gripe, quem sabe impedindo seus planos.

– Isso é mal?

– É estar apaixonado. – Tim pensou alto enquanto procurava os óculos, sem perceber ao certo o que havia dito.

– O quê? – o jovem se alarmou tanto com a questão do suor que não chegou a ouvir a insinuação do avô.

– Nada demais. Você vai tentar de qualquer jeito, não vai?

O neto segurou o riso dessa vez e se jogou em um abraço no avô. No fim das contas, era uma decisão só dele, tal qual as responsabilidades por ela.

– Te amo, vô. – Jack declarou, a cabeça no ombro de Tim reparando nos fiapos da camisa verde de gola que ele adorava e se recusava a aposentar.

– Também te amo. – ele segurava a parte de trás da cabeça do neto durante o abraço, como quem zela pela moleira de um recém-nascido. – E se o mundo acabar por sua causa, vou culpar sua avó por ter te passado a teimosia e o gosto pelas más escolhas amorosas.


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