Homem Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 1
À Deriva




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14 de abril de 2054

Southampton, Hampshire / Reino Unido

– Tem certeza que não tem outro jeito?

– Eu só preciso de algumas horas no currículo, Jack. É importante. – repetiu Lizzy pela décima-quarta vez desde que saíram de seu apartamento aconchegante na Cossack Green, bem no coração de Southampton. Ele já esperava que, após uma semana na cidade, sua melhor amiga insistisse em algum programa acadêmico. Quase como o curso de Artes que fazia em Paris, Jack achava as Ciências Sociais da Universidade de Southampton nada interessantes.

– Nós já não passamos por aqui? – ele perguntou, apontando no vidro da janela para um parque cercado de árvores.

– Não adianta tentar, eu não vou me perder. E você vai gostar da exposição, acredite. – Lizzy sorria sem tirar os olhos da estrada e as mãos do volante. Eles alternavam na casa um do outro nos grandes feriados. Depois da jovem passar o último Natal com ele na França, foi a hora de devolver-lhe a visita na Páscoa.

Assim como a família de Jack, os pais de Lizzy insistiram em uma graduação no exterior, independente do custo. Parece que economizaram ao menos no carro da filha, oferecendo um modelo sem mesmo piloto automático.

– E que tipo de artista é você que não gosta de ir a um museu?

– Sou um pintor que gosta de jogar pôquer em cômodos quentes e tardes frias. Eu pensei que você havia dito que Southampton tinha sol – Jack se abraçava em seu suéter cinza-chumbo. – Esse tanque de guerra não tem aquecedor?

– Você é o culpado de trazer esse frio parisiense. – brincou Lizzy.

– Mais fácil você ter se perdido.

– Chegamos! – e ela abriu um sorriso irônico. Jack destravou o cinto-de-segurança, achando divertido o carro não fazer isso sozinho como era normal. Para alguém que não estuda História, ela tinha um gosto bastante retro.

– “Suicídios Históricos”. Isso é sério? – Jack gargalhava ao saírem do veículo, lendo o grande telão ao lado da entrada do museu. – Pensei que um carro com rodas já era chamativo o suficiente para você.

Lizzy rolou os olhos.

– Já falei, uma professora recomendou – ela dizia, fechando o carro e pegando a bolsa. – E quando ela disse “recomendar” quis dizer “vá se quiser passar na minha matéria”. Eu não reclamei quando você me levou naquele museu lotado no Natal.

– AQUILO ERA O LOUVRE!

– E esse é o SeaCity. Sorria.

Lizzy passou o indicador na haste direita do óculos e Jack ouviu um “click!” vindo do objeto.

– Você vai me agradecer depois. – ela admitiu, passando o braço pelo do amigo, que não tirava as mãos do bolso, graças aos ventos fortes que vinham do mar. – Eles têm até uma área de joias. Quem sabe você não se inspira para algum quadro?

O Museu SeaCity era o cartão de visitas da Rua Havelock, geralmente abrigando exposições ligadas aos moradores e à própria história de Southampton. Jack lia e relia as informações do folheto entregue pela guia de seu grupo, procurando o horário do término do tour, mas sem sucesso.

– Pelo menos eles têm uma loja de souvenir. – sussurrou para Lizzy, concentrada na explicação da guia sobre navios cargueiros. – Quem sabe eu te compro um baralho? Sabe, para a gente jogar pôquer.

Shhhh. – e até quando o mandava calar a boca, ele conseguia ouvir o sotaque quase britânico da vizinha de infância.

Jack resolveu tentar prestar atenção à explicação da mulher à frente, curadora do ambiente cheio de luzes e sombras bem colocadas e caixões de vidro transparente para proteger o que chamava de “arte”. Jack frisou mentalmente a palavra “caixões”.

– Você não está prestando atenção no que ela está dizendo. – comentou baixinho para Lizzy. – Está de olho nela.

A estudante desistiu de ignorá-lo e virou o rosto, os olhos arregalados e a boca entreaberta de susto. Jack comemorou a pequena vitória só de tê-la visto assim.

– Não estou, não. – ela sussurrou em resposta.

– Está sim. Rabo de cavalo – Jack contava nos dedos. –, óculos quadrados e assunto chato. Você está apaixonada.

Lizzy não resistiu e riu, chamando a atenção de um casal de idosos atrás deles que os fulminaram com um olhar de reprovação ao desrespeito à regra do silêncio.

– Eu posso querer o telefone dela e prestar atenção ao mesmo tempo, sabia?

E ela voltou a olhar para a cabeça bem à frente dos dois. Lizzy tinha uma grande cabeleira crespa que emoldurava bem sua pele negra. Na cidade natal dos dois em Wisconsin, Chippewa Falls, Jack adorava fingir que tirava coisas de seu cabelo, cartas de baralho na maioria das vezes. Lizzy ainda questiona sua autoridade capilar de alguém que, segundo ela, mantém um corte de 1930.

Talvez ela não se lembre, mas Jack não se esqueceu de como tudo isso começou, lá atrás em uma roda-gigante de um píer em Santa Mônica. Lizzy não queria subir na estrutura de jeito ou maneira, mas o amigo insistiu tanto que ela cedeu. Lá em cima, ela desatou a chorar de medo. Jack se sentiu tão culpado que fez a primeira coisa que lhe veio à mente: mexia em seu cabelo cheio e fingiu tirar os prêmios que tinham ganhado em outros brinquedos; balas, anéis de plástico e cartas de um baralho de Doctor Who. Quando Lizzy percebeu a palhaçada, parou de chorar e sucumbiu a um ataque de risos.

– Jack, é agora.

– O quê? – e ele se sentia puxado de seu devaneio, andando em direção a uma outra sala da exposição, menor, mais escura e com vários holofotes espalhados.

– A sala das joias.

Dentre as gargantilhas de esmeraldas, brincos de ônix e tantos anéis de rubi que formariam uma luva inteira, um colar diferente se destacou para Jack. Quando a guia parou ao lado do pedestal onde ele era guardado por uma redoma, foi a primeira vez que o rapaz quis, de fato, prestar atenção.

– ...carro-chefe da sala, doado à nossa coleção recentemente por um benfeitor anônimo. Como vocês podem ver, toda sua estrutura é feita de platina, com diamantes percorrendo a borda no formato do coração que abriga essa linda safira no centro. A joia pertenceu originalmente a Luís XVI, polida nesse formato logo após a Revolução Francesa, até ser destinada à jovem Rose DeWitt Bukater, uma das passageiras do RMS Titanic em abril de 1912. É claro, nós contatamos os DeWitt’s para saber se eles doaram a joia ou se tinha sido roubada, mas parece que o colar havia sumido antes mesmo do navio chegar aqui em Southampton, logo após sua pioneira viagem transatlântica bem sucedida. Pelo que sabemos, ele desapareceu ao mesmo tempo em que a srta. Rose se jogou do Titanic quando percorriam o meio do Atlântico em uma certa noite, cometendo suicídio apenas aos 17 anos. A família estava muito desorientada quando o navio parou para procurar a jovem e ninguém notou quando o colar sumiu de uma das cabines. Nunca acharam o corpo ou se ouviu falar outra vez da joia, bem, até agora.

A guia sorria, orgulhosa de si, de orelha-a-orelha, como se ela própria tivesse resgatado a joia do fundo do mar. Jack se surpreendeu pelo pouco caso que fez ao falar da morte da jovem. Alguém que ganha um presente daqueles, pertencido outrora a um rei, aparentemente estava atormentada por demônios maiores que qualquer valor. Uma dor curiosa começou a coçar em seu peito, como se algo naquela história mexesse mais do que o normal com ele.

– Há registros de que ele era conhecido como Le Cœur de la Mer na corte francesa, um dos adornos da própria coroa do rei. Mas como vocês podem ver nesse documento bem ali – a guia direcionava para um papel envelhecido ao lado da redoma, quase tão protegido quanto, e Jack abriu caminho entre todos, passando até por Lizzy para ficar bem de frente para o objeto –, verão que entre os pertences declarados do sr. Caledon Nathan Hockley, noivo da srta. DeWitt que iria lhe presentear com a joia, não havia nada do tipo ou fora do comum, exceto por um nome misterioso que não especificava nada em particular.

E antes que a mulher concluísse o raciocínio, Jack dançava os olhos pelo documento, encontrando o nome do noivo de Rose e lendo em voz alta, mesmo sem perceber, o título atribuído ao colar.

O Coração do Oceano.


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