Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 4
Capítulo 3: O Plano




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Depois da notícia que Aliane me dera, tive uma noite horrível. Acordei várias vezes e tive sonhos terríveis. O pior deles era um em que eu estava na platéia de uma luta de MMA e então minha amante — ex-amante, agora, se é que isso existe — entrava no intervalo entre os rounds segurando uma placa como as que as ring girls costumam segurar, mas ao invés de um número escrito, trazia uma palavra em letras maiúsculas: MONOGAMIA. Essa palavra jamais seria esquecida por mim.

Quando já estava claro, abri os olhos e percebi que Adelaide não estava mais na cama; com o cansaço impregnado no corpo, fechei novamente os olhos e me deixei jogado sobre o colchão. Não demorou muito para que minha esposa voltasse para o quarto. Ouvi seus passos e, então, abri novamente os olhos, fazendo um esforço para levantar um pouco o pescoço. Minha cabeça doía absurdamente e parecia pesar toneladas. Adelaide me olhou por um momento e, em seguida, sentou na beirada da cama, me encarando de uma forma que eu não sabia dizer se me confundia ou me assustava.

— Precisamos impedir os casamentos! — ela disse, como se fosse algo absolutamente claro.

— O quê? Como?

— Não sei como, mas temos que pensar em algo. Esses dois não podem casar. Nosso casamento depende disso!

— Mas... Mas... Isso é errado, não podemos interferir, isso é decisão deles! Além do mais, o que poderíamos fazer?

— Não venha com essa de que é errado, amor! Como se fosse certo você trocar os códigos de barras daqueles amendoins que compramos no supermercado pra pagar mais barato.

— Isso é diferente! Eu...

— Escuta! Temos que pensar em nós, no nosso casamento. Precisamos de um bom plano, e é isso que vamos fazer.

Eu sempre gostei de como Adelaide é decidida. Quase sempre, sabe bem o que quer, apesar de ser mulher, e defende seus interesses com dedicação. Contudo, não sei o que poderíamos fazer a respeito de nossos amantes. Como se impede uma pessoa de se casar? Quando penso nisso, só me vem à cabeça aquelas cenas de novela onde o padre pergunta se alguém tem algo a dizer antes de calar-se para sempre. E, convenhamos, é uma coisa ridícula; por mais que dê certo em novelas, seria um vexame danado na vida real.

Peraí, vou pegar um caderno — ela saiu do quarto correndo, e logo voltou com um caderninho e um lápis. Adelaide e sua mania de fazer listas e esquemas toda vez que tem algo para resolver.

— Adelaide, preciso ir trabalhar. Não sei o que pretende com esse caderninho, mas acho que pode fazer sem mim.

Na na ni na não! Você tem que me ajudar. Não vai demorar. E até parece que não pode se atrasar uns minutinhos.

— E o que acha que eu posso fazer a respeito? Isso é inútil.

— Pense, meu amor; pense! Podíamos contratar alguém, fazer uma coisa como aquele teste de fidelidade que passa na TV!

— Aquilo ali é tudo combinado, não daria certo.

— Então, contratar um investigador para descobrir algo cabeludo sobre o noivo de cada um.

— Nem todo mundo tem algum rabo preso. Perda de tempo.

— Que tal... Que tal... — ela não desistia, e com a dor de cabeça que eu estava sentindo, isso só me deixava mais mal humorado.

— Que tal eu me arrumar para o trabalho?

— Dê pelo menos uma ideia, ao invés de criticar todas as minhas!

— Nós nem sabemos com quem cada um deles vai se casar e...

Porra! É isso, amor!

— O quê?

— Ontem conversamos sobre os dois casamentos serem muita coincidência, mas as coisas estavam fervilhando em nossa mente, ainda, e não voltamos a pensar nisso. Mas, vamos analisar a situação. Qual a probabilidade de nossos amantes decidirem se casar e romperem conosco exatamente no mesmo dia, e até usarem o mesmo termo como justificativa?

— É um cálculo complexo. Sem minha HP não consigo...

— Não pode ser coincidência. Só há uma resposta pra isso.

— Você está pensando que...

— Aliane e Emílio são namorados!

— Isso é impossível! Como não saberíamos?

— Emílio e eu não conversamos sobre isso. E imagino que a tal Aliane e você também não.

— É verdade. Mas...

Antes que eu concluísse, Adelaide se virou, foi até seu lado da cama e pegou o celular. Eu apenas observei, esperando para ver o que ela estava fazendo.

— Alô, Emílio? Escuta, eu sei que não reagi muito bem à nossa conversa de ontem, mas quero te pedir desculpas. Eu apenas não esperava por aquilo. E, pra te mostrar que não estou chateada, gostaria de mandar um presente de casamento pra você e pra... Como é mesmo o nome dela?

Ela parou de falar por alguns segundos.

— Certo. Ok, um abraço, Emílio. Felicidades!

Ela desligou o telefone e desfez o sorriso dissimulado que estampava seu rosto.

Filhos da puta! Eu tinha razão, os dois são namoradinhos. Mas eu vou acabar com a festinha desses dois; ah se vou.

— Ele disse que a namorada se chama Aliane?

— Com todas as letras. Eu sabia, eu sabia!

— E agora?

— Agora, meu bem, temos apenas um casamento para sabotar, ao invés de dois.

— Eu vou trabalhar — levantei-me, peguei minha roupa de trabalhar e segui para o banheiro.

— Espera, Anderson. Você precisa me ajudar!

Eu nem respondi, fui direto para o banho e depois saí para trabalhar. Minha fome matinal havia simplesmente desaparecido, e foi bom assim; eu já não aguentava mais falar sobre aquilo! Antes de sair, dei um beijo em Adelaide, e ela fez uma última tentativa de me convencer.

— E o nosso plano?

— Você também precisa sair pra trabalhar, daqui a pouco. À noite a gente conversa, OK?

— OK.

*

O metrô estava lotado, para variar. Era sempre assim, todo santo dia, mas eu não tinha opção. Definitivamente eu não iria conseguir me habilitar para dirigir, e era melhor assim; provavelmente acabaria com o carro no primeiro dia. Quando Adelaide tentou me ensinar, eu fiz um bom estrago na pintura de seu fusquinha amado. Na época, até senti uma pontinha de ciúme do carro; parecia que nem comigo ela tinha tanto cuidado.

Com o fone de ouvido no último volume, tentava abstrair os acontecimentos recentes. Não pensar, era o que eu repetia para mim mesmo. Mas a quem eu tentava enganar? Não pensar era algo impossível! Para falar a verdade, a única coisa que eu vinha fazendo desde a noite anterior era pensar, e aquilo estava me matando. Não me lembrava de sentir uma dor de cabeça tão forte antes; nem mesmo a música sertaneja martelando em meu ouvido era capaz de amenizar minha inquietação. Eu queria esquecer, virar a página, mas Adelaide estava certa: dependíamos daquilo!

Nosso casamento foi feliz por um bom tempo, mas quando veio a crise, faltava apenas que nos batêssemos, de tanto que brigávamos. Certa vez eu disse que ela estava ficando gorda. Como eu pude ser tão estúpido? Ela queimou todos os meus CD’s do Chitãozinho e Xororó; não nos falamos por semanas, mas, ainda assim, não conseguíamos nos separar. Só de pensar que esse inferno pode voltar, minha cabeça dói ainda mais, e meu estomago embrulha e se retorce.

Parecia loucura... Não, era com certeza uma loucura, mas Adelaide estava certa: precisávamos impedir aquele casamento; não podíamos perder tempo.

*

Cheguei ao trabalho antes das 8 horas, a maioria das pessoas no meu setor ainda não havia chegado, então fui direto para a minha estação e comecei a trabalhar... Bem, não posso dizer que, de fato, comecei a “trabalhar”. Mas eu liguei o computador e tentei fazer algo parecido com o que faço quando estou trabalhando. Eu queria trabalhar, juro que queria, mas minha mente não me deixava fazer nada, não enquanto eu guardava toda aquela agitação dentro de mim. Eu precisava pensar, ter algo concreto para propor a Adelaide, um plano; não sabia como começar. Esperaria o Nelson chegar, quem sabe aquele “cabeça oca” não me dava uma boa ideia.

Nelson é meu amigo desde o ensino médio — ou segundo grau; não sei como chamam hoje em dia. Éramos dois tipos não muito populares, ou seja, que não conseguiam garotas. Eu era o magrelo que sempre se dava mal nas aulas de português; ele era o gordinho viciado em videogames, uma espécie de nerd que só tirava notas baixas. O relógio marcava 8:30 quando ele chegou; Nelson se atrasava todos os dias, com extrema pontualidade, sempre meia hora depois de seu horário.

Como sempre, deixou sua mochila na cadeira e veio até a minha estação.

— Fala, Dedé! E as novas?

— Puxa uma cadeira — eu disse —, preciso da sua ajuda.

— Chefinho mandou, Nelsinho obedece.

— Escuta aqui, o que eu vou falar é muito pessoal, então não pode comentar com ninguém! Entendeu?

— Que isso, cara! Somos brothers! Quando foi que eu contei um segredo seu?

— No 1º ano, quando contou pra todo mundo que eu gostava da Júlia. No 2º, quando espalhou pra Deus e o mundo que eu tinha queimado o meu...

— Tá bom, tá bom, entendi! Mas isso faz muito tempo, éramos crianças! Somos homens, hoje; pode confiar no seu irmão aqui.

Ele piscou com um olho só, dando aquele sorriso debochado que era seu costume. Nelson era o meu melhor amigo desde sempre, mas, por mais que eu tentasse, não dava para confiar. No entanto, eu não via muitas alternativas naquele momento, e não aguentaria muito tempo guardar aquilo tudo sozinho.

— Certo, então presta atenção, que a coisa é séria.

— Sou todo ouvidos.

— Lembra da Aliane?

— Aquela gostosa!

Revirei os olhos e parei por um momento. Nelson sempre falava assim das mulheres, eu achava idiota, mas ele não fazia por mal. Além disso, por mais que eu reclamasse, ele continuava com o mesmo comportamento.

— Pois é. Ontem ela veio conversar comigo, depois que fizemos... você sabe.

— Depois da trepadinha.

— Para de falar assim, cara! Que coisa chata!

— Relaxa, mano. Continua.

— Ela vai se casar, e terminou comigo!

Caraca, irmão! Fala sério! E agora?

— Não sei o que fazer. E o carinha que sai com a Adelaide é o noivo, e também terminou com ela. Nosso casamento está em perigo.

Nelson se calou por alguns instantes, apenas olhando para mim com cara de bobão. Eu esperei sua reação, que não veio, então voltei a falar.

— Adelaide acha que devemos bolar um plano e impedir o casamento.

— Ela certa, cara! Você tirou a sorte grande encontrando aquela delicinha, não pode perdê-la!

— Então, é aí que preciso da sua ajuda.

— Quer que eu sabote o casamento? Faça xixi no ponche?

— Não seja estúpido! E em que casamento você já viu servirem ponche?

— Bem, teve aquele...

— Cala a boca e me escuta. Precisamos de um plano, algo realmente bom e que dê certo, mas não tenho nenhuma boa ideia. Então, pensei que duas cabeças poderiam pensar melhor que uma.

— Ah, claro! Você quer a ajuda da minha mente perspicaz!

— Persp... O quê?

— Minha genialidade! Eu sabia que mais cedo ou mais tarde reconheceria meus préstimos.

Na verdade eu não tinha outra pessoa a quem recorrer, mas talvez fosse melhor ele achar que era isso mesmo; dizem que a motivação pode tirar o impossível das pessoas. O que será que significa préstimos?

— Ok, então. Como vamos fazer? Anotar as ideias em um caderno ou digitar no computador?

— Isso é top secret, Dedé! Nada de computador; um hacker pode roubar essas informações e fazer sabe-se lá o que com elas.

— Certo, pega um caderno lá no armário.

Depois de alguns minutos procurando — aquele armário vivia bagunçado —, Nelson achou um caderno e voltou à minha estação. Sentou-se e começamos e discutir o assunto.

— O que podemos fazer para separar um casal prestes a se casar?

— Cara, existem duas coisas que separam as pessoas: primeiro, o dinheiro; segundo, a traição. Exatamente nessa ordem.

— Não sei; pelo pouco que a conheço, Aliane não é muito ligada a dinheiro. Sobre a traição, como vamos fazer um dos dois trair? Eles eram nossos amantes, e sabem disso. Precisamos de ideias melhores.

— Vou anotar aqui para não esquecermos, talvez você mude de ideia. Dinheiro sempre funciona.

— Tá bom, tá bom. Mas vamos pensar em outras coisas.

— Eu podia dar uma prensa no cara! Fingir que sou um ex-namorado e mandar ficar longe dela.

— Quem ia ter medo de você, Nelson?

— Ou então... Ou então... A gente paga alguém pra dar uma surra no cara! Depois fala que foi por causa de uma dívida com traficantes. A mina ia ficar decepcionada e terminaria com ele.

— Próxima?

— Ah, essa última foi boa! Vai falar que não?

— Isso foi um erro.

— Não, Dedé, vamos lá! Vou pensar melhor...

Ficamos discutindo o assunto a manhã toda e boa parte da tarde, parando somente para o almoço, no refeitório da empresa. Quando dei por mim, já eram 16 horas. Ainda tinha uma hora para cumprir, mas estava muito inquieto, principalmente por passar o dia todo com Nelson tendo ideias absurdas e idiotas. Eu não aguentava mais ficar ali; meu chefe já havia ido embora, e sair uma hora mais cedo não faria mal. Juntei minhas coisas e fui para casa. Quem sabe Adelaide não tivera ideias melhores que as minhas.


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