Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 3
Capítulo 2: E agora?, Quem Poderá Nos Ajudar?




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Enquanto dirigia meu fusquinha cor-de-rosa de volta para casa, eu repassava em minha mente as palavras de Emílio repetidas vezes. Não podemos mais nos ver, ele dissera. Eu não podia acreditar naquilo. Puta que pariu! Tudo bem, ele iria se casar, não vejo nada de errado ou incomum nisso. Mas como um homem que era meu amante há dois anos, sabendo exatamente a natureza “adultera” do nosso relacionamento, pôde vir até mim e dizer que acredita na monogamia no casamento. Hipócrita filho da mãe! O pior de tudo é que eu precisava dele, meu casamento dependia dele. E agora estava tudo perdido, e eu não sabia o que fazer.

Das mais de duzentas músicas gravadas no meu pen drive, agora tocava Pink Floyd e, por mais que eu ame a banda, Great Gig in the Sky não estava ajudando nem um pouco naquele momento. O que eu precisava mesmo era de um belo baseado para me fazer relaxar e desanuviar a mente, e só então parar para pensar claramente na situação; mas a merda da minha maconha havia acabado, e o carinha que me fornecia estava atrasado com a minha entrega. Se a maldita erva fosse legalizada, tudo seria diferente.

Eu já estava quase chegando em casa, e tentei controlar a respiração para me acalmar. Eu ainda tinha que contar para Anderson o que acontecera, e sei que sua reação não seria das melhores. Na época em que Emílio e eu começamos a nos relacionar, foram semanas na frente do computador escolhendo o amante ideal, e meu esposo não ficou muito contente com isso, já que a amante dele foi escolhida em apenas um dia. Claro que eu ajudei bastante, o que ele jamais faria por mim; mas não posso tirar toda a sua razão.

Enfim, cheguei em casa, estacionei cuidadosamente; não queria estragar a pintura daquele carro que era meu xodó. Lembro quando tentei ensinar Anderson a dirigir, cada arranhão na lataria parecia uma punhalada no coração.

Abri a porta e entrei, estranhando ver a casa mergulhada em silêncio. Naquele horário, meu cônjuge já devia estar em casa, e a primeira coisa que ele sempre faz quando chega em casa é ligar a televisão ou colocar um daqueles odiosos CD’s de sertanejo universitário que chegam a me dar urticária. Mas tudo estava estranhamente silencioso.

Acendi a luz da sala, então notei que Anderson estava ali, sentado no sofá com um semblante totalmente inexpressivo. Contudo, eu estava absorta em demasia com a notícia que Emílio me dera, e não fui capaz de me importar muito com aquilo. Apenas sentei ao lado dele e, involuntariamente, imitei sua expressão de não-sei-quem-sou, não-sei-onde-vou, não-sei-onde-estou.

Aquilo durou um tempo inominável, talvez horas, talvez minutos; até hoje não faço a mínima ideia. A letargia que compartilhávamos naquele momento só foi interrompida quando um latido nervoso irrompeu em meio ao silêncio que se arrastava preguiçoso e nos abraçava como um veneno gasoso. Olhei para o lado a avistei Luke latindo alto e me encarando com um olhar assustado. Só então notei que o televisor estava ligado, mas exibia apenas estática.

Levantei-me ainda um pouco letárgica e peguei o cãozinho em meu colo. Luke é o nosso cachorrinho de estimação. Tá legal, não é bem “nosso”, é meu. Anderson não gosta muito de animais, mas pelo menos não reclamou quando eu o levei para casa. O pobrezinho passara por maus bocados sendo utilizado como cobaia na indústria de cosméticos, por isso seu pelo fofinho de poodle era verde claro. Eu escolhi o nome porque sempre imaginei meu esposo pegando-o no colo e dizendo “Luke eu sou seu pai”. Claro que isso nunca aconteceu, o máximo que podia fazer era dizer “Luke, eu sou sua mãe”, e me contentar com isso.

— Que foi, meu amor? — disse, infantil, acariciando o pelo fofo do meu bichinho. Luke fez um muxoxo e esfregou seu focinho no meu rosto. Ele devia estar com fome.

Levei-o até a cozinha, enchi seu prato de ração e repus a água. Depois, voltei para a sala e me sentei de volta no sofá, agora ficando de frente para Anderson. Ele estava desligando a TV, e aos poucos também abandonava o momento de catatonia que vivíamos há pouco.

— Aconteceu uma coisa! — dissemos em uníssono.

— Você primeiro — completei.

Sem cerimônia alguma, como já era seu costume, Anderson esfregou os olhos, demonstrando cansaço e desanimo, e começou a falar.

— Aliane terminou comigo! — disse ele, o mais objetivo possível.

— Como é?

— Ela me disse um monte de coisas, falou de uma tal monogamia. Mas o principal é que ela vai se casar e não vai mais se encontrar comigo.

Caralho!

— Olha a boca, Adelaide, sabe que não gosto desses...

Porra; puta que pariu!

Anderson revirou os olhos, ele dizia que mulheres falando palavrão era uma coisa feia de se ver. Mas sabia bem como eu era e que não mudaria isso em mim. Tanto é que quase sempre eu respondia suas reclamações com um sonoro “foda-se”.

— E você, o que tinha pra falar? — perguntou ele.

— Não acredito nisso! É muita coincidência! O Emílio também terminou comigo.

— Sério?

— Sim, e ele também vai se casar, e veio com o mesmo papo hipócrita de monogamia? Filho da...

— Para! E o que diabos é “monogamia”?

Eu olhei para ele entre a surpresa e a crítica. Anderson era uma ótima pessoa, um bom profissional e o homem que eu amava, mas, definitivamente, sua relação com a língua portuguesa nunca fora das melhores. Eu já o presenteara com dicionários mais de uma vez, mas acho que houve uma incompatibilidade de gênios nesse relacionamento.

— Monogamia é quando a pessoa tem apenas um parceiro; marido, namorado, o que for.

— Então é o mesmo que fidelidade.

— Não exatamente, amor. Nós não somos monogâmicos há dois anos, mas somos fiéis.

— Fiéis infiéis.

Eu ri. Não estava no clima para gracejos, mas aquilo foi realmente engraçado, principalmente porque Anderson falava sério, e não era um gracejo como parecia; eu sabia, pois conhecia aquele olhar tão bem como a mim mesmo.

— O que vamos fazer? — Anderson voltou a se manifestar, após um longo período de silêncio, onde eu me dividia entre a graça do que ele dissera e o problema que acabara de surgir em nossas vidas.

—Não sei, amor; não sei. Acho melhor descansarmos e não pensarmos nisso. Amanhã vamos descobrir, hoje precisamos apenas de um bom banho e cama. Vai tomar um banho enquanto eu preparo algo pra gente comer.

— Tá bom — ele se levantou, foi até mim e beijou minha fronte suave e desanimadamente.

Observei Anderson subir as escadas até o segundo pavimento e, tão logo ele desapareceu do meu campo visual, rumei vagarosamente para a cozinha. Não pensarmos nisso, eu acabara de dizer a ele, mas, na verdade, eu não era capaz de seguir meu próprio conselho. Enquanto pegava alguma coisa congelada para jantarmos, tudo o que eu fazia era pensar; minha mente viajou. Lembrei-me de como tudo começou, essa história de “casamento aberto”.

Sempre fomos um casal muito feliz, ainda que sejamos brutalmente diferentes um do outro. Tivemos ótimos anos de casamento, até que a maldita crise dos sete nos arrebatou. E aos seis anos de casados! Brigávamos como cão e gato, o sexo não prestava mais e quase não conversávamos. Tentamos dar um tempo, mas, apesar da situação insustentável, não queríamos ficar separados. Então, pesquisei exaustivamente “como salvar um casamento”, comprei livros de autoajuda — aquelas merdas que só ajudam mesmo a enriquecer os autores — e li todo tipo de material sobre casamento. Como era de se esperar, nada me ajudou.

Agora não me lembro bem de como a ideia surgiu, o que é estranho, se tratando de algo tão importante e singular, mas não importa. Simplesmente a coisa apareceu entre nossas conjecturas de como salvar nosso matrimônio e acabamos decidindo tentar. Dois anos se passaram, e arrisco dizer que foram os melhores anos de nosso relacionamento. Mas tudo podia ruir, porque nosso equilíbrio dependia disso, e não sei se a essa altura do campeonato seríamos capazes de procurar novos amantes.

Perdida em divagações, eu não tinha feito nada e Anderson já havia saído do banho. Peguei a lasanha congelada que fazia meus dedos dormentes e inseri no microondas. Subi para o quarto, precisava de um banho urgente!

Depois do banho, jantamos e fomos dormir. Não dissemos mais nada além de um “boa noite” e um beijinho murcho antes de apagarmos as luzes.

*

A noite não foi muito boa, acordei diversas vezes e, apesar do ronco contínuo, percebi que Anderson teve um sono agitado, o que me fazia acreditar que seu dia não seria nada agradável. Sempre que dorme mal, ele passa o dia todo meio mal humorado e não rende nada no trabalho. Ah!, como eu queria que fosse sábado.

Levantei-me antes que meu esposo despertasse. Esquentei um café de anteontem no microondas e engoli antes de sentir o gosto passado da bebida. Voltei para o quarto e Anderson começava a despertar; assim que ele abriu os olhos, sentei na beirada da cama e lhe disse com firmeza e convicção:

— Precisamos impedir os casamentos!


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