Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 22
Capítulo 21: Faxina e Solidão




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Adelaide saiu de casa como um furacão, deixando tudo de pernas para o ar. Depois que bateu a porta violentamente, nem me dei ao trabalho de abri-la novamente, pois logo escutei o ronco do motor de seu fusquinha, os pneus cantando e o carro se distanciando. Olhei para todos aqueles objetos destruídos, sabendo que teria que juntá-los e me sentei no sofá, buscando um canto onde não houvesse cacos cortantes daquilo que minha esposa quebrara.

Após a agitação que ocorrera ali, agora tudo estava silencioso, como após uma bomba que destrói tudo no local, e restam apenas os pedaços quebrados. Luke começou a latir, lá da cozinha; acho que tudo aquilo o assustou, e o pobre animalzinho nem mesmo teve coragem de se aproximar. Assoviei para ele, que veio correndo até a sala e saltou no meu colo, se encolhendo como uma criancinha carente de carinho.

— Estamos sós, meu amigo — não sei bem por que disse isso, mas esperava que Adelaide ao menos mandasse buscar o cão, pois eu não pretendia servir de babá.

Agora minha cabeça doía exageradamente, e eu começava a pensar do que acabara de acontecer. Sentia-me triste, pois amava muito Adelaide, e jamais imaginei vivermos separados. Em todas as brigas que já tivemos, até mesmo depois da crise, nunca havíamos chegado ao ponto de alguém sair de casa, o que me trazia um grande medo.

Enquanto Luke se aninhava em meu colo, olhei ao redor, constatando o estrago. Havia muitos porta-retratos, inclusive os de mamãe, que não lembramos de guardar após sua partida. Muitas fotos nossas, desde o nosso tempo de namoro. Adelaide sempre adorou fotografias, então tínhamos registros dos nossos melhores momentos. Nossa primeira viagem ao litoral; nosso passeio no parque, quando nos embrenhamos na floresta para fazer amor — fiquei dias tirando as folhas secas das partes íntimas; a primeira vez que viajamos de avião — eu estava apavorado, mas Adelaide me acalmou, me contando a história de como se interessou por mim.

Eram tantos momentos bons, felizes. Não sei como chegamos àquele ponto, de discutirmos como selvagens, deixando um rastro de destruição pela casa. Eu havia dito coisas cruéis, ela também. Talvez estivesse tudo acabado, ainda que meu amor por Adelaide nunca houvesse diminuído.

Levantei-me e fui até a cozinha, apanhei um saco grande de lixo e me pus a recolher os restos de nossa briga. Eu queria fingir que nada havia acontecido, esquecer da horrível discussão que tivemos, mas não podia. A cada minuto passado, mais eu me sentia mal, sozinho. Em pouco tempo já não podia conter a tristeza, e meus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto limpava a sala, sentia as gotas escorrerem pelo rosto; algumas alcançavam minha boca, o gosto salgado carregava um amargor que ia além do meu paladar.

Estava quase terminando quando me deparei com uma das fotografias, agora destruídas, que enfeitavam nossa sala. Era uma das fotos prediletas de minha esposa; no dia do nosso casamento. Na imagem, eu estava abaixando, com as mãos no chão, praticamente “de quatro”, e Adelaide segurava a saia do vestido de noiva, com um dos pés quase tocando meu traseiro. Foi um momento engraçado, e ela aproveitou para tirar uma foto lendária.

Lembro-me como se fosse ontem. A cerimônia havia terminado, e estávamos aproveitando a festa. Nelson veio conversar conosco, elogiando nossa aliança.

— É uma bela algema, hein, amigão? O nome dela tá aí dentro, ou só seu número de série?

Em um ato impensado, tirei a aliança para mostrar a inscrição “Anderson e Adelaide, Amor” — foi isso que decidimos grafar em nossas alianças, a mesma mensagem nas duas. Quando fui passar o anel para que meu amigo visse melhor, a joia caiu no chão, se entranhando na grama. Abaixei-me para apanhar, e me desequilibrei, quase caindo. Fiquei seguro pelas duas mãos, palmas no solo. Nesse momento, Adelaide segurou a saia e simulou um chute no meu traseiro. O fotógrafo passava por lá no exato momento, e bastou um sinal de minha recém-casada esposa para que o momento fosse eternizado. Depois disso, rimos muito e o momento jamais fora esquecido, sempre sendo comentado em reuniões com amigos.

Naquele momento, a lembrança que sempre me fizera rir, apenas doía, entristecia ainda mais meu coração. Tentei afastar meu pensamento, me concentrando na limpeza. Peguei uma vassoura e varri toda a sala, limpando ao máximo os cacos espalhados. Mas minha tentativa foi inútil, pois não conseguia pensar em nada mais. Terminei a limpeza, que não foi das melhores, e peguei uma embalagem com 6 latas de cerveja na geladeira. Liguei o aparelho de som e coloquei o CD de Milionário e José Rico; aquela era a melhor versão de Boate Azul já gravada.

Permaneci ali, bebendo e ouvindo a música ecoar dos alto-falantes, até que não houvesse uma gota de cerveja na geladeira. Então, deitei-me no sofá, deixando meu corpo cansado se esparramar. Logo adormeci, caindo em um sono pesado.

*

Eu estava em uma fila de banco; não sei como fui parar ali, mas tinha algumas contas para pagar em minhas mãos. Olhei para frente e devia ter mais de 20 pessoas para serem atendidas antes de mim. O ar condicionado não funcionava e eu suava como um bicho acuado. Virei-me para trás, percebendo que eu era o último da fila. Meu relógio marcava 15:57, e notei uma jovem correndo em minha direção; trazia um pacote pardo, aparentemente lotado de papéis.

— Puxa, achei que não conseguiria entrar a tempo. Se passar um minuto, os filhos da puta não deixam a gente entrar.

— É — disse, sem conseguir articular algo melhor. Minhas mãos começaram a suar e meu coração disparou.

Fiquei alguns instantes encarando aquela moça. Ela era tão linda, mesmo sendo um pouco “boca suja”. Eu nunca a tinha visto antes, mas algo me fazia sentir como se já nos conhecêssemos. Observei-a tirar alguns documentos do envelope, junto com algum dinheiro. Assim como eu, estava ali para pagar contas.

— Essa fila tá lenta, né? Esses caixas são uns preguiçosos, trabalham como se estivessem nos fazendo um favor.

Não respondi, apenas continuei olhando para ela. O rosto, de pele morena, era deslumbrante. Os cabelos pretos, lisos e compridos, emolduravam perfeitamente o rosto. Um pouco mais alta que eu, seu corpo era muito atraente, todas as curvas pareciam me chamar para um passeio. Eu a encarava como um bobo, e não demorou para que ela percebesse.

tudo bem contigo?

Foi como tropeçar e cair de cara no chão. Minhas bochechas queimaram, e com certeza meu rosto ficou vermelho como um pimentão. Demorei um pouco para conseguir falar, mas, com muito esforço, disse:

— Tudo... Tudo bem, sim.

— Meu nome é Adelaide — disse ela, estendendo a mão.

— Anderson — respondi, não muito ágil.

De repente, enquanto olhava para aquela linda mulher a minha frente, senti algo molhado em minha boca. Minha visão se enfumaçou e escureceu, até eu não poder ver nada à minha frente. Senti que meus olhos estavam fechados, e então os abri. Eu não estava mais no banco, e sim deitado no sofá de casa; Luke lambia minha boca, empurrei o animal e levantei-me nervoso. Corri até a cozinha e lavei meu rosto na pia. Que nojo! Aquele cachorro estava me lambendo. Por isso nunca gostei de animais dentro de casa.

Com a cabeça doendo e a boca seca, peguei um copo com água e tentei matar a sede da ressaca. Eu havia sonhado, agora me lembrava; sonhei com o dia em que conheci Adelaide. Foi um dia incrível, mas que agora só me trazia melancolia. Eu precisava tirar esses pensamentos da cabeça.

Procurei meu telefone celular, na confusão não sabia onde o tinha deixado. Tive que ligar do fixo para ele, e o encontrei debaixo do sofá. Busquei pelo número de Nelson e disquei.

— Fala, parceiro!

— Nelson, o que vai fazer hoje, mais tarde?

— Não sei, Dedé, tô de bobeira. Por quê?

— Então vamos cair na noite, porque a partir de hoje eu solteiro!


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