Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 18
Capítulo 17: Pobre Luke




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/604214/chapter/18

A noite foi ótima. Depois da mentira que, com certeza, plantara uma dúvida na mente dos pais de Emílio, tivemos uma noite de amor maravilhosa. Pela manhã, acordei com a impressão de ouvir um latido vindo de longe, meio choroso. Olhei para o relógio e ainda era muito cedo, iria dormir mais um pouco. No entanto, ao olhar para o lado, me deparei com Adelaide, totalmente nua, e um calor gostoso percorreu meu corpo. Todas as sensações da última noite voltaram à minha mente, e a única coisa que eu queria — e precisava — era revivera cada uma delas.

Livrei-me do lençol que separava nossos corpos e me encaixei a ela, abraçando-a por trás. Comecei a acariciar sua pele, vez ou outra visitando uma região mais íntima, e logo ela acordou. Percebendo meu olhar, ela soube exatamente no que eu estava pensando. Senti o sangue bombear mais forte, e partes de mim se enrijecerem latejantes. Adelaide nada disse, apenas rolou na cama, ficando de frente para mim, e me beijou com vigor. Em pouco tempo aquele latido que pensei ter ouvido era uma lembrança distante, e o único som presente era o de nossas respirações, que ressoavam na sincronia de uma única voz.

*

Uma hora mais tarde, Adelaide se descolou de mim, deitando-se ofegante ao meu lado. Minha respiração também era rápida, e o suor brotava de todo o meu corpo. Aos poucos, a temperatura foi caindo, e as batidas do meu coração se estabilizando.

— Está ouvindo isso? — perguntou minha esposa, após um longo tempo de silêncio.

— O quê?

— Parece um choro de criança.

— Esse latido? Eu escutei mais cedo, mas depois sumiu. Deve ser da rua, ou do vizinho.

— Luke! — ela quase gritou, pondo-se sentada na cama em uma fração de segundos.

Adelaide levantou-se com urgência, vestiu um robe e desceu as escadas correndo. Pus um calção e a segui até a cozinha. Chegamos lá juntos, e encontramos Luke deitado no chão, gemendo baixinho, de uma forma chorosa. Assim, de perto, parecia mesmo um choro de bebê.

— Ai, meu Deus! — disse ela, quase chorando. — Ele deve estar faminto!

Como uma mãe que ampara seu filho recém-nascido, minha esposa carregou o cãozinho no colo, abraçando-o e beijando-o.

— Oh, meu amor, a mamãe esqueceu de te dar comida! Desculpa, meu amor; perdoa a mamãe.

Depois de alguns instantes acarinhando e beijando Luke, ela se voltou para mim, em tom de ordem

— Anderson, pega a ração e o pratinho dele, por favor.

— Tá.

Corri até os fundos e peguei o saco de ração e os dois pratos. Quando voltei à cozinha, o cãozinho já estava no chão, então enchi o recipiente com ração, enquanto Adelaide colocava água no outro pote. Luke, que tinha uma aparência fraca, rapidamente se pôs a comer. Ele devia mesmo estar com fome, pois em poucos minutos não havia um grão sequer. A água também acabou com rapidez, e logo minha esposa serviu novamente o líquido do qual o pequeno animal fora privado.

O bichinho terminou a refeição e Adelaide o pegou novamente no colo, enchendo de carinhos e palavras de amor. Só parou com aquilo — que eu já começava a achar exagerado —, quando ouviu o telefone tocar.

— Vai pro papai — disse ela, me entregando Luke, que carreguei desajeitadamente, já que não era meu costume fazer aquilo.

Da cozinha, vi Adelaide falando ao telefone, sem conseguir ouvi-la. Contudo, ela sorria bastante, então algo bom devia ter acontecido. A ligação chegou ao fim, minha esposa voltou à cozinha com uma expressão de satisfação.

— Preciso sair. Vou só tomar um banho.

— Sair? Onde você vai?

— Era o Emílio, me chamou pra conversar. Acho que nossa ação de ontem já fez efeito.

— Nossa! E o que eu faço com ele? — perguntei, referindo-me ao cachorro.

— Ele ficou muito tempo sem se alimentar, então não é bom deixá-lo sozinho. Por favor, coloque o Luke na gaiola de transporte e leve para o trabalho.

— Mas...

Mas não houve tempo para “mas”. Adelaide saiu desenfreada, subiu as escadas diretamente para o nosso quarto. Poucos minutos depois, ela já estava pronta para sair. Despediu-se de mim com um beijo, e fez o mesmo com Luke. Não tive tempo de dizer mais nada, e antes que eu percebesse, ouvia o roncar de seu fusquinha se afastando de casa.

— Agora somos só você e eu, bichinho — disse em voz baixa, me achando um maluco por estar conversando com um animal.

Coloquei-o no chão e fui procurar pela gaiola. Eu não sei como levaria o cachorro para o trabalho, mas se acontecesse alguma coisa com Luke, Adelaide me mataria, se não fizesse coisa pior, então teria que dar um jeito.

Achar a gaiola foi fácil, o difícil foi fazer o animalzinho entrar nela. Tentei colocar a cabeça primeiro, mas ele esticou as patas, impedindo o corpo de entrar. Fiz o contrário, e ele mordeu as laterais da porta, não me deixando fechá-la. Fiquei alguns minutos tentando colocá-lo ali, e não obtive sucesso. Parei para descansar, pois estava ofegante e com os batimentos acelerados. Quando meu corpo voltou ao normal, senti o estômago roncar; eu não havia comido nada. Peguei um pote de biscoito e um copo de leite, sentei-me para comer. Logo percebi que Luke estava agitado, e seus olhos brilhavam, apontando para o pote de biscoites. Então tive uma ideia.

Joguei dois biscoitos no fundo da gaiola. Mais que depressa, o cachorro entrou para buscá-los, permitindo que eu fechasse a gaiola. Ele chorou um pouco, com um olhar tristonho de quem percebe a traição sofrida, mas assim que eu joguei mais um punhado de bolachas para ele, a tristeza acabou como que por mágica.

Enquanto Luke saboreava aquele alimento que não era o recomendado para ele, aproveitei para terminar meu desjejum e tomar um bom banho. Quando desci novamente, o animalzinho já comera tudo, mas estava mais calmo. Passei a mão na gaiola e saí de casa. No caminho, achei melhor pegar um taxi; carregar aquela gaiola dentro do metrô seria uma aventura perigosa demais. Cheguei cedo, não havia ninguém no meu departamento, então acomodei o cão debaixo da minha mesa e comecei mais um dia de trabalho, torcendo para que aquela loucura não tivesse consequências catastróficas.

*

Tudo correu bem até pouco antes da hora do almoço, quando Luke começou a choramingar. Dei graças a Deus por ele não ter um latido alto, ou o estrago iria ser maior ainda. Logo que os minguados latidos começaram, meu chefe resolveu dar uma volta pelo departamento. Ele quase nunca estava presente, e foi escolher justo aquele momento para passar ali. Tentei fazer o cãozinho se calar, gesticulando para ele e até mesmo oferecendo uma bala de hortelã, mas ele insistia em murmurar reclamações na língua dos cachorros.

Meu chefe já havia passado por mim, e se encaminhava para outro salão, quando o animalzinho soltou um latido mais alto que os anteriores. Imediatamente, ele se virou e voltou o olhar em minha direção. Caminhou até a minha mesa e olhou ao redor, procurando por algo visivelmente anormal. Não encontrando nada, me encarou e perguntou:

— Que barulho foi esse, Anderson?

— Barulho? Que barulho? — fingi-me de desentendido.

— Esse som agudo que ouvi algumas vezes enquanto atravessava a sala. Algo como um ganido.

— Ah, deve ter sido meu estômago. Não me alimentei muito bem hoje, e a fome já apertando — a mentira simplesmente saiu da minha boca, como Adelaide faria.

Ele me olhou desconfiado, não era muito chegado a conversas com empregados, também não era muito educado. Sua expressão era bastante desagradável, e tudo o que eu queria era que saísse logo de perto de mim.

— Ainda faltam 30 minutos para o almoço, mas pode ir agora, se quiser.

— Obrigado, senhor — respondi, sem nada melhor em mente para dizer.

— Mas volte 30 minutos mais cedo! Não pense que somos uma instituição filantrópica.

— Claro, senhor — acenei com a cabeça, concordando, mesmo não fazendo ideia do que significava “filantrópica”.

Esperei que o homem se virasse e seguisse seu caminho, então passei a mão na gaiola e saí da empresa o mais rápido que consegui. Algumas vezes, eu almoçava em um restaurante próximo, mas com um cachorro comigo não me deixariam entrar, então caminhei mais um pouco até chegar em um estabelecimento menos refinado. Era um bar apertado e não muito limpo, mas que tinha algumas mesas na calçada, onde não poderiam me proibir de permanecer com Luke.

Coloquei a gaiola ao lado da mesa e entrei no “Bar e Restaurante Sabor de Lá em Casa”. Procurei pelo cardápio, mas só havia o PF do dia, então teria que servir. O prato do dia era costelinha de porco com mandioca, acho que estava com sorte. Pedi um PF médio, que logo me foi servido, e sentei-me com o bichinho de Adelaide ao meu lado.

Ao olhar bem o prato, percebi que aquela carne não tinha uma aparência das melhores, metade ali era osso, e a outra metade quase toda era gordura. Espetei um pedaço e ergui o garfo, examinando bem o alimento. Nesse momento, Luke começou a latir ainda mais alto, e os clientes do bar se viraram a me olhar. Ele devia estar com fome, só podia ser isso. Como não me sentia nem um pouco interessado em comer aquele pedaço de osso gordurento, abri um pouco a porta da gaiola e atirei todos os pedaços de costelinha lá dentro.

Foi como mágica. Os latidos, que já começavam a incomodar, e que me fizeram mentir para meu chefe, desapareceram. Luke se agarrou aos pedaços de carne com vontade, e saboreou o que parecia tão indigesto para mim como quem se delicia com o mais maravilhoso dos banquetes.

Terminei de almoçar e voltei com a gaiola para o trabalho. Apesar de já ter devorado toda a carne — e gordura — das costelinhas, Luke ainda se deliciava com os ossos que remanesceram. Assim, passei a tarde com tranquilidade, salvo por costelas de porco. Quando o dia acabou, o cãozinho estava bem quietinho, parecendo satisfeito. Dois ossos descansavam ao seu lado, e outros dois estavam presos entre as patas dianteiras, e vez ou outra eram lambidos com prazer.

Tomei novamente um taxi e logo estava em casa. Apesar de todas as dificuldades, meu dia como babá de cachorro chegava ao fim sem maiores complicações. Assim que entramos, abri a gaiola e deixei-o livre. Fazendo o quase desmaio de mais cedo parecer uma lembrança distante, Luke correu alegre até a cozinha, passou pela abertura da porta dos fundos e ganhou o quintal.

Adelaide ficaria feliz. Agora, eu precisava de um bom banho e um sofá macio para descansar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Fiéis Infiéis" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.