Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 16
Capítulo 15: Se É Por Falta de Adeus... Tchau




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Foi difícil convencer mamãe de ir embora no dia seguinte, e se não fossem todas aquelas coisas que Adelaide inventou, nem sei o que faríamos; com a confusão dos amantes e mamãe em casa, seria o caos total. Minha esposa era brilhante quando se tratava de inventar mentiras para contornar situações; eu não sei de onde ela tira tantas ideias. Às vezes são coisas loucas como a história da “gripe do rato” — se fosse o José Serra, diria que se pega quando um ratinho espirra perto de você —, mas Adelaide sempre consegue enrolar a pessoa na conversa. Eu não tenho essa capacidade, e é por isso que nós dois sempre nos completamos.

Mamãe foi para o banho, e eu corri para o quarto e busquei duas toalhas limpas. Dona Marieta sempre pedia duas toalhas limpas, uma para o corpo, outra para o cabelo. Era assim quando papai estava vivo, e quando eu estava no colégio. Minha mãe é uma mulher de hábitos bem definidos. Após deixar as toalhas para ela, voltei para sala. Adelaide estava sentada no sofá, olhando para o nada com uma cara amarrada. Sentei-me ao seu lado e respirei fundo, em uma mistura de alívio e preocupação.

— Que sufoco — disse, fechando os olhos devagar.

— Eu sei que é sua mãe, amor, mas a dona Marieta é foda! Se ela ficasse até o fim do mês, com tudo o que está acontecendo neste momento, acho que só restaria uma de nós viva aqui.

— Credo, Adelaide! Não fala isso nem brincando.

— Amanhã acho que nem vou trabalhar, só pra poder descansar de tudo isso.

— Droga!

— Que foi, Anderson?

— São 6 horas.

— 6:30 dona Marieta tem que jantar. Havia me esquecido. Fala sério!

— Sabe que é melhor fazer as coisas como ela gosta, senão ela fica uma arara.

— Não é bem esse animal que eu citaria, mas tudo bem.

— O que vamos fazer?

— Nós? Nada. Vamos ligar pra um restaurante e pedir a comida.

*

A comida que pedimos por telefone chegou antes que mamãe terminasse o banho, e eu ajeitei tudo em panelas como se nós tivéssemos cozinhado. Dona Marieta não gostava de comida feita na rua, dizia ela que os restaurantes enchiam os restos de comida de conservantes e serviam como se fossem alimentos frescos.

— Um dia na cidade e sua mãe quase provoca uma crise de água — brincou Adelaide, enquanto púnhamos os pratos à mesa.

— Ela tá descendo — avisei, ao ouvir os passos de mamãe nas escadas.

— O jantar está servido? — perguntou minha mãe, já vestida com seu pijama e com uma toalha enrolada na cabeça.

— Só esperando pela senhora — disse Adelaide, sorrindo falsamente. — A água estava boa?

— Quente demais, esses chuveiros elétricos não são como antigamente. Na minha casa ainda usamos a água aquecida à lenha.

— Vamos comer? — interrompi aquela conversa logo, antes que uma briga começasse.

Sentamo-nos à mesa e nos servimos. A comida do restaurante era simples, mas muito saborosa. Adelaide dissera que precisávamos pedir algo não muito elaborado, ou mamãe não acreditaria que nós cozinhamos aquilo.

— Até que não está ruim. Meu menino deve ter te ajudado, não é mesmo, Adelaide?

— Claro, seu menino vale ouro.

Terminamos a refeição sem maiores atritos entre minha mãe e minha esposa. Levamos a louça para a cozinha enquanto mamãe se esticava no sofá. Ela nunca dormia sem antes assistir ao jornal; vivia reclamando que só se noticiava tragédia, mas não perdia aquelas tragédias por nada no mundo. Fiquei com ela vendo TV enquanto Adelaide ficou lavando a louça. Costumávamos dividir essas tarefas, mas minha esposa pediu que fosse assim, ela estava fazendo de tudo para se manter longe da sogra.

Logo mamãe começou a ficar com sono e assim que o jornal terminou, acompanhei-a até o quarto de hóspedes.

— Vamos fazer a oração, filho.

— Mas, mãe, não sou mais um menininho.

— Para mim, você sempre será meu menino. E não seja mal criado, obedeça sua mãe! Eu não te carreguei por 9 meses dentro de mim para ser desobedecida.

— Tá bom, mamãe; tá bom.

Ajoelhei-me ao lado da cama e rezamos a oração que eu fui obrigado a repetir todas as noites desde que aprendi a falar até o dia em que me casei e saí de casa. Fazia tempo que não rezava, mas era impossível esquecer aqueles versos.

— Boa noite, mamãe — beijei-lhe a testa, acendi o abajur e apaguei a luz do quarto.

— Boa noite, filho. E não fique de fornicação se não for para me dar um neto!

Fechei a porta e fui para o nosso quarto. Como aquilo tudo era cansativo! Eu amo minha mãe, mas não era nada fácil conviver com ela. Eu jamais admitiria para Adelaide, mas também estava aliviado por ela ir embora no dia seguinte.

*

O sol já tinha nascido, mas eu decidi ficar na cama um pouco mais, já que teríamos que levar mamãe à rodoviária e eu só trabalharia no período da tarde. No entanto, na melhor parte do sono, que é quando você sabe que é de manhã mas pode aproveitar mais um pouco, assustei-me com passos altos pelo corredor. Antes que eu abrisse os olhos, escutei a porta se escancarar e os passos aumentarem. Levantei a cabeça, agora de olhas abertos, e vi mamãe entrar sem reservas em nosso quarto.

— Bom dia, filho!

Adelaide acordou com a entrada nada discreta de minha mãe, e logo se manifestou.

— O que é isso, dona Marieta? Por Deus, são 7 da manhã!

— Já preparou sua mala, meu filho? — disse mamãe, ignorando o questionamento de minha esposa.

— Não, mamãe, ainda é cedo, e...

— Quantas vezes eu já lhe disse que devemos fazer as malas sempre com antecedência? Pegue logo a mala e vamos separar suas coisas.

— Acho que Anderson pode fazer a própria mala sozinho, né, sogrinha?

Droga! Mamãe odiava ser chamada de sogra; sogrinha, então, a deixava furiosa. Dona Marieta lançou um olhar assustador à Adelaide, mas, por fim, nada disse, e se voltou para mim.

— A mala, filho!

Sem saber como reagir, levantei-me depressa e apanhei a mala dentro do guarda roupa. Adelaide se levantou e saiu do quarto sem nada dizer. Comecei a separar algumas roupas e colocar na bolsa, sem muito critério, afinal, eu não iria a lugar nenhum.

— Não, minha criança, não pode levar esses farrapos para uma viagem de negócios!

— É só um seminário, não preciso...

— Tire esses trapos da mala que sua mãe vai lhe ajudar a escolher, já que a Adelaide não cumpre o papel de esposa.

— Mamãe! Não fale assim da Adelaide, ela é minha mulher e eu a amo!

— OK, filho, não está mais aqui quem falou. Mas as verdades não são menos verdadeiras por não serem ditas.

— MÃE!

— Tudo bem, vamos parar de falar de coisas ruins. A mala, vamos ver.. Aquelas duas camisas, azul e cinza, pode levá-las. Aquela calça preta, a marrom. Não se esqueça de levar boas gravatas, hein!

*

Em meia hora terminamos de fazer a mala, mas pareceu durar horas. Mamãe sempre foi mandona, controladora, até mesmo depois que eu entrei na faculdade. Algumas vezes brigávamos porque ela queria escolher minhas roupas, e eu não queria chegar à universidade vestido como um coroinha. Com a mala, que jamais seria usada, preparada, descemos para o desjejum, que Adelaide já havia preparado.

— Achei que iriam ficar a manhã inteira escolhendo as roupas do bebê — disse minha esposa.

Pare de provocar, Adelaide!, pensei em silêncio. Minha esposa se esforçava para ser paciente e não responder às provocações de mamãe, mas às vezes ela usava da ironia para alfinetar a sogra. Tudo isso me deixava bastante tenso, pois as brigas entre nora e sogra sempre me colocavam em uma posição delicada. Quem defender? Como decidir tomar partido de um dos lados quando se trata de sua mãe e sua esposa, as mulheres mais importantes de sua vida?

— O café da manhã está pronto? — perguntou mamãe, e eu dei graças a Deus por ela não rebater a provocação de Adelaide.

— Pronto e servido, dona Marieta. Farto do jeitinho que a senhora gosta.

— Vamos ver como você se saiu sem a ajuda do meu menino.

Adelaide havia preparado um café da manhã caprichado, daqueles que vemos nos filmes americanos.

— Parece que tá uma delícia! — disse, sentando-me entre minha mãe e minha esposa à mesa da cozinha.

Queijo minas, pão quentinho, frutas, iogurte, suco, castanhas, bolo de fubá. Não sei como Adelaide conseguira tudo aquilo em tão pouco tempo, só sei que foi uma ótima ideia, pois mamãe começou a comer e parecia que não pararia mais. Depois da “tortura” com a mala, eu também estava faminto, então o desjejum foi silencioso, o único som era o da mastigação continua de todos os presentes.

— Faltou um bom pão de queijo — disse mamãe, assim que terminou de comer —, mas até que esse não foi um café da manhã dos piores.

— Obrigado, sogrinha — rebateu Adelaide, falando entre dentes para não dizer algum palavrão. — Anderson costuma fazer uma caminhada depois do café, a senhora não gostaria de acompanhá-lo?

— Não sei, com essa tal gripe de que vocês me falaram por aí, acho melhor ficarmos todos em casa.

— Se é assim, vou levar o Luke pra passear.

— Esse cachorro ainda não morreu? — provocou mamãe.

Dona Marieta não gostava de animais, e aquele cachorrinho era o xodó de Adelaide.

— Não, sogrinha. Em idade canina, o Luke tem quase a sua idade.

Com essa, minha esposa colocou a coleira no cachorro e saiu de casa. Mamãe ainda ensaiou uma resposta, mas Luke e sua dona já estavam longe.

— Adivinha o que mamãe trouxe na bolsa?

— Não faço ideia, mãe.

— Um baralho novinho pra gente jogar.

— Acho que não vai dar tempo. Temos que tomar banho e daqui a pouco tá na hora do almoço...

— Claro que dá tempo. Você toma banho mais rápido que gato escaldado! Vá pegar uma toalha para forrar a mesa que eu vou buscar o baralho.

Mamãe saiu em disparada antes que eu pudesse dizer algo. Dona Marieta adorava uma jogatina, toda sexta se reunia com as amigas da igreja para jogar cartas. Eu não gosto muito de jogos de baralho, nunca gostei, mas desde pequeno minha mãe me ensinara todos os jogos conhecidos, e passávamos horas naquilo. Fazia tanto tempo que acho que me esquecera até mesmo das cartas.

Ela voltou logo, com o baralho ainda lacrado, e começamos a jogar.

*

A jogatina durou uma eternidade. Nesse meio tempo, Adelaide voltou do passeio com Luke, tomou banho, preparou o almoço com o que sobrara do jantar que fingimos ter feito e colocou os pratos e talheres na mesa. Quando ela anunciou que a refeição estava pronta, um alívio percorreu todo o meu corpo, meus dedos estavam lisos de tanto embaralhar aquelas cartas.

Comemos rapidamente, mamãe reclamou ao reconhecer alguns itens do jantar, dizendo que não gostava de comida requentada, mas Adelaide se controlou e fingiu não ouvir. Eu ainda tentei acalmar mamãe, mas estava tão cansado que me concentrei mais em comer que em prestar atenção nas constantes reclamações.

Após comermos, mamãe foi direto para o nosso chuveiro. Peguei uma boa roupa e fui me lavar no banheiro social, enquanto Adelaide retirava a louça e levava para a cozinha. Ainda escutei Luke latir alegre, quando minha esposa lhe ofereceu os restos que dona Marieta deixara no prato. Aproximadamente meia hora mais tarde, enfim, estávamos prontos para partir. Deus que me perdoe, mas eu estava contando os minutos para embarcar mamãe no primeiro ônibus para sua cidade.

*

— Continua dirigindo essa velharia? — disse minha mãe, ao avistar o fusquinha de Adelaide.

— E vou continuar por um bom tempo. Essa “velharia” é mais confiável que muitos seres humanos.

Com essa, mamãe se calou, eu também não disse nada. Para tentar quebrar o gelo, liguei o rádio e deixei na estação de música sertaneja, que dona Marieta também gostava. O trânsito estava tranquilo, então não demoramos chegar à rodoviária. Tirei a pesada mala do carro e nos encaminhamos para a plataforma de embarque. O próximo ônibus sairia em uma hora, mas dissemos que não podíamos esperar, pois perderia meu voo.

— Fique com Deus, meu menino — disse mamãe, me abraçando e manchando minhas bochechas de batom cor abóbora, com beijos sufocantes. — Cuidado com essa tal gripe e não deixe de ligar para a mamãe, ouviu?

— Tá bom, mamãe, vou ligar sempre. Faça boa viagem e tente cochilar no ônibus.

— Adelaide — foi assim que dona Marieta se despediu da nora, apenas dizendo seu nome e fazendo um gesto com a cabeça.

— Adeus — respondeu minha esposa com um falso sorriso na boca.

Mamãe entrou no ônibus e nos afastamos acenando para ela. Adelaide suspirou profundamente, assim que nos afastamos.

— Deus seja louvado!

— Amor, sei que você e mamãe não se dão muito bem, mas também não precisa falar como se uma praga tivesse ido embora.

— Meu bem, se eu disser tudo o que penso sobre sua mãe, a coisa ia ficar feia. Agora, vamos; eu tenho que te levar para o “aeroporto”.

Não respondi; tentar convencer Adelaide de que mamãe não era tão ruim era batalha perdida, assim como o inverso também era totalmente improdutivo. Melhor me manter neutro e administrar a situação na medida em que as coisas acontecerem.

Voltamos para o carro e seguimos para o meu trabalho. Minha esposa me deixaria lá e iria para a loja. A mala ficaria no carro, e à noite eu guardaria a roupa. Adelaide ligou o som e colocou uma de suas músicas; agora que mamãe não estava conosco, ela não me deixaria ouvir um bom sertanejo, ao invés disso, eu teria que ficar escutando aquelas músicas que não dava para entender nada.

— Graças a Deus a velha foi embora, não sei por quanto tempo eu aguentaria aquilo.

— Adelaide, não fale assim da mamãe. Ela é difícil, mas é uma boa pessoa.

— Eu só a chamei de velha. Qual o problema nisso?

— É desrespeitoso!

— Mas ela é velha! E uma velha muito da chata!

— Eu respeito seus pais, mesmo não achando que são perfeitos! Você bem que podia fazer o mesmo.

— Por favor, Anderson! Vai começar com mimimi agora? Olha como sua mãe me trata, e você não faz porra nenhuma! Agora vem me recriminar? Tenha dó!

— Não é fácil pra mim! É muito complicado ficar entre vocês!

— Ou muito cômodo. Sua mãe vive dizendo mentiras sobre mim, me desmerecendo, como se eu não fosse boa o suficiente para o menininho dela.

— Não é bem assim! — eu estava nervoso, e meu tom de voz se alterara.

— Se tivesse gravado tudo o que falou de mim de ontem pra hoje, poderia processar a velha por injúria, calúnia ou difamação, ainda...

Adelaide parou de falar, quase bateu em um carro no momento de distração, mas acertou a direção no último momento. Seu olhar estava fixo em um ponto inexistente e um sorriso se formava nos lábios.

— O que foi, Adelaide? — perguntei, estranhando aquele comportamento; minha esposa não costumava interromper uma fala no meio e ficar com cara de “boba alegre” assim, de repente.

— É isso! — disse ela, enfim.

— Isso? Isso o quê?

— Tive uma ideia do cacete, amor!

— Ideia pra quê? De que “raios” está falando?

— Uma ideia para acabar com o casamento daqueles dois!

Eu até havia me esquecido daquilo. Confesso que ao ouvir sobre o casamento, me senti dividido. Parte de mim queria saber qual era o novo plano e acabar com aquele relacionamento que ameaçava o nosso. Mas outra parte lembrava tudo o que acontecera naquele fim de semana terrível, e só queria esquecer de tudo. Claro que a primeira parte falou mais alto.

— Me conta!

— Chegamos — disse ela, parando o carro em frente à empresa. — Vai trabalhar, preciso lapidar a ideia com calma, em casa te conto tudo.

Preferi não contrariar. Beijei-a e saí; hora começar — atrasado — mais um dia de trabalho. Porém, algo me dizia que eu não conseguiria pensar em nada além da ideia misteriosa de Adelaide.

Por que ela tinha que me contar sobre isso logo agora?


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