Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 15
Capítulo 14: Pare, Senão Mamãe Atira!




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Tive que revirar todo o nosso guarda-roupa para encontrar as fotos de dona Marieta. Toda vez que a velha aparecia era a mesma coisa, tirar até o último grão de poeira da casa, organizar tudo como se fôssemos obsessivos compulsivos e espalhar pela sala as fotos daquela cara feia e enrugada. A mãe de Anderson nunca gostou de mim. Quando namorávamos, ela até me aturava com certa educação, mas depois que nos casamos, o relacionamento entre nós duas virou um inferno. Eu nunca havia conhecido uma mulher tão meticulosa, autoritária e detestável. Nada para ela era bom o suficiente, as coisas estavam sempre fora do lugar, e a infeliz sempre conseguia achar poeira não sei de onde. Às vezes penso que Marieta leva sempre consigo um saquinho com poeira, então, se não acha nada sujo, faz o trabalho só para ter do que reclamar.

A velha já havia tocado a campainha umas 12 vezes quando, enfim, conseguimos organizar os porta-retratos. Fui atender a porta e, antes que eu a abrisse totalmente, minha sogra foi logo empurrando, quase me jogando no chão. Entrou na casa feito um foguete, olhando para os lados, procurando alguma coisa para reclamar. Não seria difícil encontrar algo dessa vez, já que a arrumação foi em tempo recorde. Espaçosa como era seu habitual, sentou-se no sofá, tirou os sapados, exibindo os joanetes inchados, e ligou a TV. Eu não entendia o que aquela mulher fazia na nossa casa, já que havia cortado relações conosco desde que descobrira sobre o nosso novo “regime matrimonial”. Viúva há tanto tempo, ela sim precisava de um amante para dar um belo trato nela. Aquela ali devia estar há tanto tempo sem ver um pênis, que provavelmente não reconheceria um mesmo que estivesse roçando seu nariz.

— Traga um café pra mamãe, meu filho, estou exausta — disse o Diabo. A mulher achava que estava em um hotel de luxo.

— Deixa que eu faço — falei logo. Não que eu gostasse de fazer café, mas qualquer coisa era melhor que ficar ouvindo a velha reclamar de tudo.

Na cozinha, peguei as coisas para fazer o café e apurei minha audição. Apesar do volume do televisor estar alto — a velha devia estar surda também —, consegui ouvir a conversa dos dois.

— E então, mamãe, qual o motivo da visita? — foi a primeira coisa que Anderson disse.

Puta que pariu!, pensei, como você pode ser tão burro, amor?.

Não devemos incentivar o Diabo a usar seu tridente, costumava dizer um professor que tive no ensino fundamental. Aquilo foi a coisa mais estúpida que meu esposo poderia dizer. A velha era um entojo, mas não era burra, uma pergunta daquela deixaria claro para ela que não a queríamos ali. Mas a presença de Marieta sempre deixava o filho nervoso. Naquele momento, eu tinha certeza de que Anderson estava com vontade de fazer xixi, ele sempre tinha quando ficava muito tenso.

— Mal cheguei e você já quer me mandar embora! — redarguiu o Diabo. Eu sabia que ela reagiria assim.

— Não! O que é isso, mamãe? Você é sempre bem vinda. — começou ele, lembrando-se que ela gostava de ser bajulada. — Na verdade, estávamos com saudade. Acontece que a senhora não nos visita faz tempo, né?

Enquanto ouvia atentamente a conversa de mãe e filho, a água ferveu e transbordou. Corri para o fogão e peguei a caneca com um pano e virei tudo no coador.

— Eu estive afastada — começou a velha —, mas cheguei à conclusão de que não posso abandonar meu único filho, mesmo que ele seja um pervertido; ou tenha sido cooptado por uma pervertida — a última frase foi meio sussurrada, mas ouvi bem. Tenho certeza que ela queria que eu ouvisse.

— “Copi” o que?

— Filho, precisa contratar uma faxineira para esta casa, faz quanto tempo que não tiram o pó por aqui? Sabe que a minha rinite ataca, e você herdou a mesma alergia que eu tenho. Aposto que seu nariz deve estar entupido — a diarista tinha ido na semana passada, mas eu passei pano em tudo. Velha implicante!

— Mamãe, a casa está limpa, é que venta muito aqui, e a poeira da rua entra fácil.

— Então mantenham as janelas fechadas! Onde estão as cortinas que eu te dei, meu menino?

Aquelas cortinas horríveis! Claro que eu havia doado para os carentes na primeira oportunidade que tivera.

— Devem estar lavando. E como vão as coisas na cidade, mamãe?

— Tudo na mesma. Cidade pequena é bom, mas nada acontece! Qualquer dia pego minhas coisas e venho morar aqui.

Não! Eu preferia a morte a ter que dividir um teto com o demônio em forma de sogra. Assim que ela disse isso, me apressei a servir o café e levar até a sala. Coloquei a bandeja na mesinha e entreguei-lhe a xícara. O café estava fervendo, e involuntariamente torci para que a velha queimasse a língua e nunca mais falasse. Mas acho que a língua da mãe de Anderson era mais grossa que sola de sapato de pedreiro, pois ela bebeu um gole generoso de uma vez.

— Frio — disse ela, fazendo uma careta — e melado.

— Se quiser, posso fazer outro — falei, quando o que eu queria dizer era “volte pra sua droga de cidade e tome seu próprio café, velha insuportável”.

— Não, não precisa. Você nunca foi boa na cozinha, né, Adelaide? Melhor não forçar, o próximo pode ficar ainda pior. Aliás, acho que meu menino anda comendo mal, olha só como está magrinho!

Anderson engordara uns bons quilos nos últimos anos, o que ele não precisava era de uma comida melhor; a barriguinha saliente estava ali para comprovar. Eu quase me rendi ao impulso de responder à provocação, mas me contive. Era isso que ela queria, que eu perdesse o controle e depois pudesse dizer que eu a odiava e a perseguia. Não, eu não daria tal satisfação ao Diabo.

— Trouxe uma mala bem grande. Pretende estender a viagem em outro lugar — perguntei, com meu tom mais amistoso, mas com uma grande dose de veneno escondida.

— Vai controlar o que eu carrego agora, Adelaide? Só trouxe umas coisinhas, acho até que vou precisar comprar outras coisas.

— Por quê? — não resisti a perguntar, a curiosidade e medo eram grandes.

— Vou ficar até o fim do mês...

— Não! — Anderson e eu exclamamos em uníssono.

— Estão me expulsando?! — disse ela, levantando-se e gesticulando de forma teatral.

— Não, mamãe, não é isso! É que... É que... — ele era péssimo em inventar mentiras.

— É que não vamos ficar em casa. Anderson tem uma viagem a trabalho e eu vou ficar na casa de uma amiga enquanto o apartamento é pintado.

— Reagendem! — disse a velha, autoritária. Depois, voltou a se sentar.

— Não podemos — Anderson interveio, mas eu sabia que ele não saberia continuar.

— Oras, como não podem? Por acaso pintar o apartamento e fazer uma viagem são mais importantes que sua mãe, Anderson Moita Figueiredo?

— Não é isso, dona Marieta.

— Não me chame de dona, assim me sinto uma velha.

— Desculpe. Mas a questão é que decidimos sair da cidade porque há um surto de uma nova gripe, e ainda não existe vacina.

— Como não ouvi falar nada sobre isso?

— A prefeitura está segurando a notícia, mas uma colega de trabalho do Anderson conhece alguém da lá e nos contou que já há mais de 100 casos confirmados da “gripe do rato”!

Não era uma boa história, mas eu não tive o tempo para planejar algo. Uma boa mentira deve ser pensada com calma. Fitei Marieta enquanto ela processava aquelas informações. Quando não se tem uma boa mentira, fale bem rápido, assim seu interlocutor tem dificuldade de processar com senso crítico aquilo que ouviu. A expressão da mãe de Anderson revelou um pouco de preocupação; ela havia acreditado, ou pelo menos ficado na dúvida. Além de ser obsessiva compulsiva, a velha também sofria de hipocondria, e parecia que isso seria nossa salvação.

— Todo dia aparece uma nova doença — disse ela, com a expressão contrariada. — Isso é culpa dos transviados, que transmitem entre si todo tipo de porcaria, depois passam para os cidadãos de bem. Esse mundo está virando mesmo uma grande latrina. Não vejo a hora de Jesus retornar e lavar esse lixo da humanidade para as profundezas do inferno.

Como a velha era dramática. Se fosse para ficar longe dela, talvez o inferno não fosse tão mal assim.

— Se não tem jeito, tudo bem, eu vou. Quando vai ser a viagem?

— Amanhã — respondeu Anderson. Eu queria dizer hoje, assim ela iria embora logo, mas talvez fosse menos suspeito assim.

— A que horas?

— 14 horas — eu tentei responder antes, mas meu esposo foi mais rápido. Eu ia dizer 8 da manhã, para não correr o risco de ela querer ficar até o último minuto.

— Certo, depois do almoço, amanhã, levem-me à rodoviária. Agora vou tomar um banho. Filho, providencie duas toalhas limpas e leve para a mamãe na suíte do seu quarto.

A velha sempre tomava banho no nosso banheiro. Eu ficava furiosa. Mas, agora, eu nem me importei, pois no dia seguinte eu me veria livre da personificação de Satã na terra.


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