Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal


Capítulo 14
Capítulo 13: Maldita Segunda-Feira, Sempre




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Adelaide me deixou no trabalho, e só quando entrei no elevador eu vi, pelo meu reflexo na porta metálica, o quanto estava mal. Minha esposa jamais me deixava sair desleixado de casa, o que significava que ela não estava nada bem. Tentei arrumar os cabelos com as mãos, mas não acho que fez diferença alguma. Cabelo crespo, só água dá jeito, dizia minha mãe. Eu estava com um humor péssimo, nem mesmo Adelaide ter me deixado ouvir a rádio sertaneja conseguiu me deixar melhor. Além disso, uma dor de cabeça me incomodava, os braços doloridos de tanto lavar lençóis “sujos de amor”, como dissera a recepcionista do motel.

Entrei no departamento sem cumprimentar ninguém, e fui direto para minha estação de trabalho. Liguei o computador e fiquei olhando para a tela por tanto tempo que nem sei dizer quanto. Tudo parecia vazio, eu estava tão cansado, tão desanimado. Não me lembrava de ter um final de semana tão desastroso em toda a minha vida, e olha que minha adolescência não foi das melhores. Certa vez eu fui a uma festa com o Nelson e cismei de beber cachaça com kissuco de morango; vomitei em cima da garota por quem eu tinha uma queda e, depois disso, ela nunca mais me cumprimentou — ou será que ela já não cumprimentava? Bebi tanto aquele dia que talvez tenha esquecido. Mas, enfim, sem sombra de dúvida, o último fim de semana foi o pior da história dos fins de semana.

Fazia mais de uma hora que eu estava ali, olhando fixamente para a tela do computador, pensando nos dias desastrosos que antecederam o agora, quando Nelson se aproximou silenciosamente e sentou-se ao meu lado.

— O que tá pegando, meu irmão?

Apesar do vocabulário meio malandro de sempre, Nelson falava em um tom de seriedade. Meu amigo me conhecia muito bem, e sabia que havia algo errado. Eu não queria falar sobre o fim de semana, na verdade queria esquecer tudo aquilo, mas já que eu não conseguia parar de pensar em tudo, quem sabe dividir minhas terríveis experiências recentes poderia ajudar?

— O final de semana foi terrível, Nelsinho. Pior que daquela vez que eu vomitei na Camile, lembra?

— Ô, se lembro! Então a coisa foi feia mesmo. Pode começar a contar.

— Lembra que te falei sobre o plano para separar a Aliane do outro lá, né? Então, no sábado seguimos o cara...

*

Aconteceram tantas coisas nesses dois dias, que foi difícil conseguir contar tudo com algum sentido lógico e o mínimo de detalhes necessário para um bom entendimento do quadro geral, mas, uma hora e meia mais tarde, cheguei ao fim da história. Nelson ouviu tudo atenciosamente, se surpreendendo com vários pontos do meu relato.

— Caceta, mano! Vocês podiam ter sido presos! Que doideira. E agora, o que vão fazer? Pretendem desistir dessa coisa de impedir casamento?

— Pra falar a verdade, nem parei pra pensar. Depois de tudo, Adelaide e eu não conversamos sobre o assunto. Chegamos em casa moídos, foi a conta de tomar um banho e tombar na cama. Minhas pernas e braços estão doendo até agora, cara! Nunca pensei que uma camareira de motel pegasse tão pesado no trabalho.

— Que bom que você estudou, né, meu amigo?

— É — eu me permiti um riso naquele momento, apesar de que aquilo não era exatamente algo para se brincar. Estávamos rindo de pessoas com subempregos só porque não estudaram o suficiente. Mas que foi engraçado, isso foi.

— Por que não tirou o dia de folga? Você tem duas férias vencidas nessa espelunca, Dedé!

— Nem pensei nisso. E, também, de que adiantaria ficar em casa?

— É, pode até ser. Só sei que você precisa relaxar, amigão! Que tal uma cervejinha depois do trabalho?

— Bem, eu...

Não consegui concluir minha fala — nem o raciocínio —, pois meu celular tocou, me assustando. Eu sempre coloco o telefone no silencioso antes de começar a trabalhar, mas aquela segunda-feira não era um dia normal, e não me lembrei de nada.

— Alô — disse, atendendo ao telefone.

Depois que disse “alô”, não tive oportunidade de dizer mais nada, porque ela começou a falar feito uma maritaca batizada com agulha de vitrola, como se não precisasse parar para respirar. Fui bombardeado com uma quantidade recorde de palavras por segundo, quando ela terminou, nem sabia o que falar, então apenas terminei a “conversa” com um abobado “OK”

— Droga! — sussurrei para mim mesmo.

— O que foi? Parece que viu um fantasma!

— Mamãe está vindo pra casa!

— Ih, fodeu!

— Vou ter que sair, agora! A casa tá uma zona, e sabe como mamãe é.

— Conheço bem a dona Marieta. Mas achei que ela estava sem conversar com você.

— Eu também achei, Nelson. Mas parece que ela mudou de ideia. Droga! Adelaide não vai gostar nada dessa notícia. Vou indo, segura as pontas com o chefe, tá bom?

— Vai tranquilo, eu me entendo com a chefia.

*

Depois da notícia mais bombástica desde a comunicação do casamento dos amantes, saí do trabalho às pressas. No metrô, liguei para Adelaide e lhe contei o que estava acontecendo e, claro, sua reação não foi das melhores. Desci do metrô e segui correndo para casa. Cheguei suado e respirando com dificuldade, minhas mãos tremendo ao abrir a porta. Assim que entrei, deixei minha bolsa no sofá e comecei a arrumar as coisas. Após o desastroso fim de semana da “espionagem”, não tivemos forças para fazer nada, então além de uma pilha de louça suja na pia, havia coisas espalhadas por toda a casa.

Não demorou muito e Adelaide chegou, e ela logo começou a me ajudar com a arrumação. Mamãe era uma mulher com certa mania de organização. Quando pequeno, eu nunca podia sair do quarto de manhã sem antes fazer minha cama do jeitinho que ela exigia. Meu quarto estava sempre organizado, sem brinquedos ou roupas espalhadas. Ainda me lembro o dia em que cheguei da escola e deixei um par de meias jogado no chão; fiquei um mês sem televisão. Depois que me casei, ela começou a implicar com Adelaide, e sempre que vinha à nossa casa, reclamava de tudo e procurava poeira em cada cantinho de cada cômodo.

Fazia dois anos que dona Marieta não conversava comigo, desde que descobrira que minha esposa e eu agora vivíamos um casamento aberto. Minha mãe, além de extremamente organizada, também era bastante conservadora; condenava totalmente tudo o que ela — ou a igreja — julgava imoral: homossexuais, prostitutas, pessoas tatuadas, roqueiros, maconheiros, homens de cabelo comprido. Todos eram pecadores imorais. Mesmo ficando viúva cedo — papai faleceu quando eu tinha apenas 3 anos —, nunca mais se relacionou com ninguém, mesmo sendo uma mulher muito bonita e muito assediada na época.

A visita de mamãe era algo que me deixava bastante tenso, pois eu não sabia como ela se comportaria depois de tanto tempo sem conversarmos. E, pelo jeito que falara comigo ao telefone, continuava mandona e implicante como sempre, isso se não estivesse pior.

— Que horas ela vai chegar? — perguntou Adelaide, enquanto tirava o pó dos móveis; estávamos quase terminando o trabalho.

— Não sei, ela não me disse a que horas saiu de casa, nem que ônibus pegou na rodoviária. Pode chegar a qualquer momento!

— Pronto, acho que acabamos.

— Graças a De..

— Não!

— Que foi, Adelaide? — assustei-me com o grito repentino de minha esposa.

— As fotografias?

— Droga! Onde estão?

— Não sei, tem tanto tempo que ela não vem aqui, desde que... você sabe.

Naquele exato momento, em que tentávamos lembrar onde havíamos guardado os porta-retratos com as fotos de mamãe, a campainha tocou.

— É ela! — disse Adelaide, olhando fixamente para a porta. — Não abra, vou procurar os retratos.

Imediatamente, ela correu escada acima feito uma louca, enquanto eu fui para a cozinha e comecei a procurar em todas a gavetas. Nada nas gavetas, parti para os armários, depois a adega, área de serviço. Nada, em lugar nenhum.

— Achei! — ouvi minha esposa gritar lá de cima.

Corri para sala e Adelaide já descia as escadas. Ela me entregou metade dos porta-retratos e tratamos de espalhá-los pela sala apressadamente. Quando terminamos, soava a campainha pela 12ª vez; mamãe devia estar bastante irritada a essa altura.

— Eu atendo — disse minha esposa.

Sem dizer nada, assenti com a cabeça, enquanto a observava seguir em direção à porta. A maçaneta girou e as dobradiças gemeram baixinho, na medida em que a visitante inesperada se revelava do outro lado. Antes que a porta fosse totalmente aberta, dona Marieta entrou empurrando-a, com uma expressão no rosto de “poucos amigos”.

— O que vocês estavam fazendo que demoraram tanto para abrir a porta? Com certeza alguma sem-vergonhice. A esta hora do dia? Tenham vergonha!

— É que não estávamos encontrando a chave — disse Adelaide, com uma expressão de quem queria estrangular mamãe duas vezes.

— Ou procurando sua calcinha, não é, mocinha? — respondeu mamãe, deixando minha esposa vermelha como um pimentão. — Se bem que você sempre foi desorganizada, Adelaide.

Mamãe se sentou, deixando a bolsa de um lado e tirando os sapatos. Pegou o controle remoto na mesinha e ligou o televisor.

— Traga um café pra mamãe, meu filho, estou exausta.

— Deixa que eu faço — adiantou-se Adelaide, pisando duro rumo à cozinha.

— E então, mamãe, qual o motivo da visita? — perguntei, sentando-me na poltrona ao seu lado. Dizer aquilo foi o meu primeiro erro.


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