Fiéis Infiéis escrita por Samuel Cardeal
Eu nunca me importei em ter que trabalhar. Na verdade, sempre gostei de trabalhar; preciso me sentir ativa, útil, independente; nunca tive vocação para fazer o papel da mulherzinha, dona de casa, rainha do lar; não mesmo. Contudo, a função de camareira de motel barato, definitivamente, não é para mim.
Depois de dois dias desastrosos, chegamos em casa totalmente destruídos, física e moralmente. O máximo que conseguimos fazer foi tomarmos um banho e em seguida desmoronamos sobre a cama. Dormi feito uma pedra e só acordei às 08 da manhã. Anderson roncava sonoramente ao meu lado, o que não era comum, mas compreensível diante de nossas desventuras nos últimos dias. Eu adormecera ainda de roupão e, assim que o despi, percebi toda minha pele marcada pelo tecido atoalhado. Tomei outro banho e desci até a cozinha, eu estava faminta.
Enquanto preparava algo rápido, Anderson acordou e foi também para a cozinha, não havíamos comido nada quando chegamos. Olhamo-nos desanimados, nem mesmo trocamos um bom dia. Dividi o que preparara com ele e comemos no mais absoluto silêncio. Nos trocamos para o trabalho e ofereci uma carona para o meu esposo. Ele agradeceu, dizendo que encarar o metrô lotado era a última coisa que precisava.
Minha cabeça doía como se eu tivesse levado uma paulada, mesmo que apenas o contrário tivesse ocorrido. O corpo também estava todo dolorido, principalmente os braços e as pernas; aquele trabalho não era mesmo para mim. Entramos no carro e saímos, não havia nada a ser dito, então ficamos calados. Anderson ligou o rádio e sintonizou uma estação sertaneja, eu nem mesmo me opus. Só conseguia pensar no tenebroso final de semana que tivemos e no quanto eu precisava de um baseado. Mas, além de não ter nenhum ali comigo, não podia fumar na frente do meu esposo; eu sabia que ele fumava escondido, mas tinha certeza que Anderson nem sonhava que eu usava maconha regularmente.
Deixei-o na porta da empresa e nos despedimos com um beijo quase sem toque. Segui até o shopping; antes de chegar ao destino, peguei o celular e liguei para o Argola. Eu comprava erva do sujeito havia mais de três anos, e nunca soube seu nome verdadeiro, nem mesmo o motivo do estranho apelido eu sabia.
— Quem é? — ele sempre atendia ao telefone assim.
— É a Adelaide. Tô precisando de um pouco de erva, Argola, você tá atrasado comigo.
— Foi mal, Adelaide, meu fornecedor teve problemas, sabe? Apreenderam uma carga pesada na fronteira, mas eu consegui um pouco de um outro cara. Não é tão boa quanto a que você gosta, mas se quiser…
— Tudo bem, pode ser. Dá pra levar na loja, hoje?
— Não prefere um lugar mais discreto, como fazemos sempre?
— Não tenho tempo, vai ter que ser na loja mesmo.
— Sem problema, passo por lá antes do meio-dia.
— OK, vou ficar te esperando. Mesmo preço de sempre, né?
— Essa custou um pouco mais caro, por causa da urgência, mas você é uma das minhas clientes mais antigas, vou quebrar o seu galho.
— Tá bom, até mais.
Quando terminei a ligação, já estava entrando no estacionamento. Andei até a loja me arrastando, se eu pudesse ficaria pelo menos uma semana na cama. De todas as segundas-feiras terríveis pelas quais eu já passara, aquela era a campeã disparada.
— Bom dia! — disse Gabriela. — Chegou cedo.
— Bom dia — respondi, sem render assunto e ainda com os óculos escuros encobrindo as olheiras profundas.
Fui direto para minha sala e tentei me entregar ao trabalho, mas minha capacidade de concentração estava longe do normal. Agora eu começava a pensar com frieza sobre o que acontecera. Emílio frequentava, escondido, um clube de garotos virgens para jogar xadrez e usar suéteres ridículos. Isso não fazia o menor sentido. A gente pensa que conhece as pessoas, pensei comigo, e elas te surpreendem das formas mais inacreditáveis.
*
Às 11 da manhã, o telefone da minha sala tocou, pelo identificador vi que era o ramal do balcão, e pela porta de vidro pude ver que era Gabriela.
— Oi, Gabi.
— Adelaide, chegou o...
— Já tô indo.
Devia ser o Argola, e eu já estava sonhando com aquela erva, então me levantei apressada e fui até lá. Chegando ao balcão da loja, dei de cara com Edeval, piscando e me mandando beijos. “Princesa, a deusa da minha poesia”, ele cantava. Olhei bem para ele, com minha melhor expressão de desdém; em outro dia eu acharia graça daquilo. Um quarentão, um pouco fora de forma, com uma pochete e um walkman amarelo na cintura, vestindo uma camisa dos Ramones e cantando Amado Batista era uma visão, de fato, hilária. Mas não naquele dia, não naquele momento. Eu estava no meu pior humor, algo que superava a pior das piores crises de TPM, então, não passava pela minha cabeça ser simpática.
— Edeval, cala a boca e pega a porra do malote!
— Mas, mina delícia, eu só tava...
— Caralho, Edeval! Você tá surdo? Pega a porra do malote e some!
Depois dessa indelicadeza suprema, eu me virei e voltei para minha sala. Ainda pude perceber os olhares embasbacados direcionados a mim. Eu sempre xingava o Edeval, mas em tom de brincadeira, afinal, não dava para levar a sério as coisas que ele dizia, mas naquele momento eu tinha sido mais que hostil; fora cruel o modo como eu falei com o coitado. Mas não pude evitar, não depois do que acontecera nos últimos dias.
Fiquei na minha sala em silêncio; não consegui fazer nada no trabalho, e, com a cabeça mais fria, começava a me sentir mal com o modo como tratara Edeval. Meia hora mais tarde apareceu o Argola, e pedi que o mandassem vir à minha sala. Ele me passou o pacote e eu lhe dei o dinheiro. Todas as funcionárias acharam estranho aquilo, já que não o conheciam, e eu nunca convidava um estranho para o meu espaço. Eu não me importei, tentei ser discreta ao guardar o pacote na bolsa e saí, dizendo que iria almoçar.
Fui até o estacionamento e desembrulhei o pacote, o cheiro da maconha já me abriu o “apetite”; eu quase podia sentir os efeitos da marijuana no meu organismo. Como sempre, Argola incluíra no pacote uma boa quantidade de palha cortada, do tamanho que eu gostava. Enrolei o fumo habilmente e apanhei o isqueiro na bolsa, abri o vidro a acendi. Puxei com vigor o baseado e segurei a fumaça. Depois de um tempo, soltei devagar, sabendo que boa parte daquilo ficaria dentro de mim.
Paz. A melhor palavra para descrever aquele momento era “paz”. Senti o corpo relaxar, os ombros descontraírem, a mente desanuviar. Bendito seja aquele que descobriu que a maconha dava um cigarrinho tão milagroso. Fiquei ali por cerca de 30 minutos, e só não fiquei mais porque o telefone tocou.
— Alô — atendi, com a fala arrastada.
— Adelaide, tô aqui na praça te esperando! — era Ingrid, eu havia me esquecido de que tínhamos marcado. — Onde vocês está?
— Tô no estacionamento, chego aí em dois minutos.
— Tá chapada, né? Eu conheço sua voz quando tá chapada. O que houve pra dar um tapinha tão cedo.
— No almoço te explico, já tô chegando.
*
Ingrid estava curiosa, mas só consegui falar alguma coisa depois de me servir um prato bem generoso e começar a comer; a erva sempre me dava muita fome, se mamãe soubesse disso, teria economizado um fortuna em Biotônico Fontoura quando eu era menina.
— Então, não vai me dizer o que houve?
— É uma longa história, o fim de semana foi inacreditavelmente terrível.
— Então comece a contar, temos 50 minutos.
Entre gordas garfadas, narrei com a riqueza de detalhes que consegui lembrar, e que o efeito da maconha me permitiu articular, as desventuras do final de semana.
— Tô passada, menina! Quer dizer que o gostosão do ébano tem uma vida oculta onde frequente um clube de nerds virgens?
— Estou tão surpresa quanto você, Ingrid.
Eu havia contado sobre tudo: a fuga, a paulada no adolescente da portaria, a fuga pelo tubo de lixo, o dia de escravidão no motel; ainda assim, o que mais chocara Ingrid foi o fato de Emílio participar do tal clube.
— O pior é que...
Meu celular tocou. Enchi a boca com uma boa garfada e pesquei o telefone de dentro da bolsa, fitei o visor e verifiquei de quem era a ligação.
— É o Anderson. Só um minuto — engoli a comida que ainda estava na boca e atendi ao telefonema. — Oi, Amor — ele falou por alguns segundos. — Cacete! — cuspi, na reação mais contida que poderia ter à noticia que acabara de receber, ouvi por mais algum tempo e desliguei. — Puta que pariu!
— O que foi, Lelê? O que foi que aconteceu? — indagou Ingrid, assustada com minha reação ao telefonema.
— O Diabo decidiu sair do Inferno.
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