Pensamentos de Dolores escrita por Lara Coimbra


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Minha fic de inscrição para o desafio "Grandes Mulheres Da Ficção", proposta pela equipe do Nyah! Fanfiction.Tema escolhido: 3 - Separação.Boa leitura!



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Ela acenava para Humbert, que arrancou o carro, levantou poeira, foi embora. O cachorro de rua que vivia nos arredores do casebre perseguiu o veículo por alguns metros. Dolores ajeitou os óculos grandes e redondos, antes de voltar para dentro. Apanhou o bolo de dólares e o cheque, e correu para o quarto. Dentro de seu armário apanhou um lenço. Era perfumado. Enrolou-o envolta da quantia, abriu a gaveta de baixo do criado-mudo ao lado da cama, e colocou lá no fundo, a salvo. Quatro mil dólares. Muito mais do que ela e Dick precisavam. Ouviu seu nome a certa distância:

– Dolly, cadê você?

Ela se apresentou para o marido, de um jeito doce e risonho:

– Estou aqui. Você e Bill querem mais uma cerveja? Eu acho que sobraram mais algumas latas.

Bill, limpando o suor da testa com seu único braço, aceitou. Tanto ele quanto Dick eram sobreviventes da Segunda Grande Guerra. A sequela de Dick era auditiva. Por vezes tinham que falar com ele gritando. Dolores foi à cozinha e afundou as mãos na geladeira, praticamente vazia, e pegou as duas latas restantes. Dick coçou a cabeça e olhou pela janela. Não via mais o carro do senhor que se apresentou como seu sogro:

– Dolly, onde está o seu pai?

– Ele foi embora. – respondeu, servindo o marido e seu amigo.

– Mas já? Eu gostaria de ter me despedido. – Dick pensava ter passado uma má impressão.

– Ele tinha coisas a fazer. Ele é professor, como eu disse.

– Espero que a curta passagem não seja por minha causa.

– Não. Não foi. – Dolores fazia carinho nas maçãs do rosto dele.

– Ele deixou algum dinheiro, afinal?

– Não. – mentiu ela.

Bill pediu licença para lavar a mão e o rosto, antes de voltar para casa. Dick ficou desanimado com a notícia. Para quê serviu aquela visita, sendo que o homem não havia se sensibilizado pela atual situação da filha? Pobre. Casada. Grávida. Eles estariam com sérios problemas se a empresa do Alaska não tivesse contratado Dick, mas ainda faltavam semanas para resolverem todos os problemas burocráticos de sua transferência. Precisariam de dinheiro até para fazer a viagem. Bill agradeceu pelas cervejas, deu um abraço em Dick, e foi embora. Dolores perguntou se haviam consertado a fia­ção. Estavam trabalhando naquilo, debaixo do sol, desde as primeiras horas da manhã. Uma ventania emaranhou os fios do casebre onde moravam com os do casebre dos vizinhos. Faltava luz no quarto e no banheiro do jovem casal Schiller, e faltava luz na cozinha e na sala dos Martin. Agora não faltava mais luz. Dick testava os interruptores enquanto Dolores lixava as unhas. A sujeirinha acumulava-se na roupa da garota, em cima de sua barriga inchada.

Humbert foi embora. Para sempre. Ela não queria admitir que estava triste. Humbert a amava. Amava de forma doentia, irracional, mas amava. Ela sentia culpa no fundo, por não ter conseguido amá-lo de volta. No começo o sentimento era recíproco, mas Dolores era muito nova e não estava preparada para um relacionamento de longa duração. Como uma menina qualquer, ela havia se entediado. Clare Quilty tornara-se um personagem mais interessante, mas no final era igual a Humbert. Eles só a queriam por egoísmo, por orgulho. Pensando bem, Clare não era tão igual a Humbert. Clare não batia. Clare não se descontrolava emocionalmente diante dela. Clare não a obrigou a participar dos filmes eróticos que dirigia, não a prendeu. Dolores tinha pena de Humbert, por outro lado. Algo terrível deve ter acontecido no passado dele. Dolores pensava ser bem parecida com a pessoa cuja perda traumatizou Humbert. Uma coisa que ela gostava era o jeito que a chamava: Lo. Quando ele veio visitá-la, naquele dia mesmo, cada vez que as duas letras juntas saíam da boca do professor era um suspiro interno, um sorriso que não demonstrava para não lhe dar mais esperanças. Dolores encheu a boca para dizer não. Ela tinha essa coragem. De qualquer forma, ela sentiria falta da preocupação exagerada, sentiria falta da forma como suas provocações o deixavam louco e excitado, sentiria falta da veia de pai, coisa que nunca teve na vida. Ela gostava de pensar que em outra vida, se tivesse a chance de reencontrar Humbert, as coisas seriam diferentes. Ela não faria chantagem. Ele não a agrediria. Ela não o irritaria. Ele não seria egoísta. Haveria apenas amor. Um amor saudável. Um amor livre. Um amor altruísta.

Um som de automóvel se aproximando chamou a atenção dos ouvidos do casal. Dolly achou, por algum motivo, que fosse Humbert novamente. Será que veio tentar convencê-la a ir com ele de novo? Será que faria algum mal a Dick? Ele guardava um revólver no portaluvas, ela se lembrou, de repente. Começou a imaginar que ele teria coragem de matar seu marido e ela, logo em seguida. Se ele não podia ter sua Lo, ninguém mais teria. Estremecendo, espiou pela janela. O carro era diferente, uma camionete. Dick colocou as mãos nos ombros de sua esposa:

– Está tudo bem? Você está tremendo.

– Estou bem, Dick. Só estou com um pouco de frio.

Ele foi buscar um casaquinho, enquanto ela continuava a observar pela janela. Um casal de meia idade saiu da camionete, caminhou até a porta. Um dos dois apertou o botão da campainha, e aguardou. Dolores os ouviu conversando:

– Tem certeza que é aqui, Jeffrey?

– É claro, Angela. Não me enfiaria nesse buraco, no meio do nada, se não tivesse certeza.

Dolly abriu a porta, confusa. O senhor era praticamente idêntico ao marido: cabeleira negra e ensebada, olhos esverdeados. A mulher que o acompanhava era loura, platinada. Dolores também era loura, mas uma loura da cor Alice No País Das Maravilhas, como Humbert costumava descrever. Dick apareceu na hora, com um casaquinho azul de lã, mal acabado, simples. O rapaz sorriu, e abraçou-os, agarrando-lhes pelo pescoço, quase que os sufocando.

– Papai e mamãe, não sabia que viriam! Esta é Dolores, minha esposa.

– Como vai, mocinha? – Angela, sua sogra, estendeu a mão. – Quantos anos você tem?

A garota cumprimentou os dois enquanto respondia às primeiras perguntas, um pouco envergonhada. Dick apressou-se em agasalhar sua pequena Dolly.

– Estou bem. Dezessete.

– Dezessete! E já está esperando uma criança. – surpreendeu-se o sogro, Jeffrey. – A senhorita é muito precoce.

Eles não faziam ideia. Os pais de Dick vistoriavam todos os espaços do casebre. Estavam chocados com tamanha pobreza. Não eram ricos, mas a fazendinha que possuíam lhes dava o suficiente para sobreviver. Aquela era a primeira vez que viam o filho em alguns anos. Dick pediu desculpas por não ter nada a oferecer. A geladeira estava vazia, e as cervejas acabaram. Jeffrey e Angela Schiller também receberam uma carta pedindo ajuda. Quando ficaram sabendo que o pai de Dolly não havia lhes doado um dólar sequer, ficaram enraivecidos. Se fossem grandes proprietários, dariam o mundo a ela.

– Fizemos visitas pedindo solidariedade pelos ranchos vizinhos. – contou Angela, enquanto Jeffrey entregava uma caixa de madeira ao filho. – Contando todas as cédulas e moedas, o total é de 150. Dá para comprar um berço e uma manta bem quentinha.

– Um dia ainda retribuirei o favor. – agradeceu Dick, emocionado.

A jovem não disse nada, apenas ruminava a mentira que contara na boca, tentando não demonstrar nenhum sinal de ansiedade. Poucos minutos depois, os visitantes anunciaram a partida. Não queriam pegar estrada à noite, tinham medo. A despedida foi calorosa. Dolores cozinhou sopa de batatas para o jantar. A quantidade na panela renderia uns três dias para os dois. Eles jantavam com a televisão ligada. Estava passando um jogo de baseball. Dolores odiava baseball. Dick amava. Dolores gostava de olhar para a cara de Dick assistindo ao jogo, somente. Os olhos dele brilhavam. Seus cabelos estavam sujos de suor. Ela queria enfiá-lo dentro da banheira e dar um trato nele, deixá-lo cheiroso, e derreter em seus braços. Agora que estavam finalmente estavam a sós, ela podia dizer a verdade:

– Papai nos deu quatro mil dólares.

Dick quase derrubou a mesa de jantar, quando tomou o susto e se levantou.

– Quatro mil, Dolly?! Você contou direito?

– Tenho certeza. Guardei no quarto.

– Pensei que seu pai fosse um monstro sem coração. Estou feliz agora, muito feliz. Sairemos desse buraco, alugaremos uma boa casa no Alaska, e criaremos nosso filho lá, com tudo que ele ou ela tem direito.

– Espero que a empresa te pague bem. Você merece. – Dolores sorriu.

Dick inclinou-se e beijou a esposa nos lábios. Ele achava que tudo melhoraria. Ele acreditava que sim. A produção industrial estava em alta nos Estados Unidos, uma herança pós-guerra. Uma fase próspera que já durava mais de oito anos desde o Dia D, em junho de 1944. Dick pensava adiantadamente em o que levar do casebre para sua nova vida quando se mudasse. Ele não tinha muito, mas tinha sonhos. Dolores nem sonhos tinha mais, ela só queria continuar livre das obsessões dos homens. Ela apenas queria que Dick não se tornasse mais um. Dolores pensava no que iria deixar no casebre, ao contrário do marido. Ela deixaria a menina perigosa e inconsequente em casa. Estava na hora de dizer adeus à Lo, à Lolita que se deixava seduzir por velhos maldosos e egoístas. Adeus à Lolita que ainda sentia saudades do homem que poderia tê-la amado melhor.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Eu agradeceria se soubesse a opinião de vocês.