O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 9
A ajuda da professora




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Não fui à aula de violão e na escola fiquei até a hora do recreio sem sequer olhar para Lucia. Porém, nessa hora, nem tomei sopa, nem quis comer meu lanche, o qual mamãe sempre preparava com muito carinho, ficando sentado sozinho na mureta do pátio. Lucia, a me ver agir assim, deixou sua sopa e veio a meu encontro perguntando:

— O que foi Regis? Você parece que está me evitando!

Nada respondi e continuei sem olhar para ela. Era o único garoto de toda a escola, que em pleno calor de final do mês de Abril, estava usando calça e camisa de mangas compridas, a fim de esconder as dezenas de vergões que marcavam meu corpo frágil.

Ela insistiu:

— Ontem você esteve no circo mas nem sequer falou comigo. Por quê?

Continuei calado e triste.

— Você está com raiva de mim? Eu lhe fiz algo?

— Não! — neguei cabisbaixo.

— Então fale comigo! Olhe pra mim!

Olhei para ela mostrando-lhe a marca de cinta em meu rosto.

— O que foi isso? — perguntou-me ela surpresa.

— Apanhei de papai.

— Quando?

— Ontem! Hoje também!

— Por quê?

— Ele disse que eu desobedeci e ainda menti.

— Desobedeceu como?

— Indo a seu circo ontem!

— Não era pra ir?

— Não! Fui obrigado!

— Não estou entendendo nada!

— Não se incomode. Não dá pra entender mesmo!

— O Zé Carlos disse que você esteve no circo hoje cedo, mas eu estava dormindo.

— Ainda bem, Lucia!

— Regis, você está me deixando confusa!

— Eu não menti pro meu pai! Nem desobedeci.

Comecei a chorar. Ela prosseguiu:

— Eu acredito em você! Mas explique direito porque eu não estou entendendo nada!

Não consegui falar mais nada. Estava chorando.

— Pare de chorar — pediu ela. — Os meninos estão olhando.

— Lucia, eu estou todo marcado de cinta! No corpo inteiro.

— Sinto muito! — Ela ameaçou me abraçar, mas se conteve devido meus ferimentos. — É culpa minha?

— Claro que não!

— Posso ajudá-lo?

— Não sei!

Logo depois retornamos à sala de aula. O resto da tarde não falei mais com ela. Ao voltarmos para casa, também preferi me calar e ela respeitando minha decisão também ficou calada. Só em frente ao circo resolveu me convidar:

— Vamos entrar!

— Não posso! Papai não quer!

— Por quê?

— Ele é ruim!

— Não fale assim! Nossos pais nunca são ruins!

— O meu é!

— Impressão sua.

— Ele vendeu meu violão. Ele tinha me dado de presente.

— Verdade!? Ele não podia fazer isso!

— Mas fez! Ele não quer nem que eu fale mais com você!

— Ah homem safado! O que eu fiz pra ele?

— O pior é que ele sempre foi bom pra mim! Só agora que ele ficou assim.

— Não se preocupe. É Só uma crise e logo vai passar.

— Mas até passar eu vou ficar apanhando!? Ele sempre gostou que eu fosse artista. Até gostou quando eu disse que sabia fazer trapézio.

— O que eu posso fazer?

— Nada! Vou embora agora.

Naquela tarde, evitei papai ao máximo. A noite chegou logo. Tomei meu banho diário, jantei, escovei os dentes e ao contrário de sempre, sem me despedir, nem mesmo de Tony, acabei indo pra cama muito cedo.

Na manhã seguinte, após tomar café e estar brincando com Tony, que mamava no sofá da sala, papai me chamou em seu quarto. Sem demora, porém com muito medo, atendi sua ordem. Ele segurava a mesma cinta de couro em sua mão e disse:

— Não quero ter que usar isto de novo. Então quero que você conte a verdade. Basta falar a verdade e eu te deixo em paz. Mesmo que você me desobedeceu me fale agora e eu prometo não te bater.

— O que mais o senhor quer saber? — perguntei com medo.

— Quero saber tudo direitinho! Não gosto de desobediência nem de mentiras! Mas estou disposto a te deixar em paz se você disser a verdade!

Olhei sério para ele sem nada dizer. Ele insistiu:

— Diga logo, por que você me desobedeceu naquela noite?

— Eu não desobedeci ao senhor — falei trêmulo.

— Não? Ir ao circo sabendo que eu não queria não é desobedecer?

— Mas o Luís Lauro me obrigou a ir com eles!

— Se você continuar com essa história vai acabar apanhando novamente.

— O senhor quer que eu fale!

— Quero que você fale a verdade!

— O senhor quer que eu fale que desobedeci. Eu não desobedeci! O senhor quer que eu minta!

— Só quero saber a verdade!

— Então... a verdade é a que eu disse. O Luís Lauro me obrigou a ir lá. Ele usou um revólver preto.

— Moleque mentiroso!

E covardemente me surrou novamente, com crueldade. Os vergões de cinta do primeiro dia, ainda não desaparecidos, tornaram a voltar. Apanhei bastante, mas não corri. Isso eu não faria mesmo; pois achava que se papai era realmente dono de mim, tinha o direito de agir como quisesse a meu respeito; embora ele estivesse indo longe demais, só parando, após perceber que eu novamente havia feito xixi na calça curta. Minhas pernas, enfraquecidas pela dor, acabaram se dobrando e me sentindo impotente acabei me deixando cair sentado no chão. Naquela hora, ele até pareceu ter sentido um pouco de remorso, então me ordenou:

— Vá tomar um banho!

Na sala, o maninho Tony, também assustado começou a chorar forte e acabou se engasgando com a mamadeira, fazendo com que mamãe corresse a seu socorro.

Chorando, levantei-me devagar, me despi completamente e segui nu para o banheiro, onde tomei um banho demorado. A água quente caindo sobre meu corpo cheio de vergões, fazia doer ainda mais; então, com dificuldade pela altura, ajudado por um banquinho de madeira, mudei a posição do chuveiro para desligado, fazendo assim, que com água fria as dores fossem menor.

Assim que terminei o banho, me enxuguei e saí do banheiro enrolado na toalha. Papai já tinha seguido para o trabalho, então me aproximei de mamãe e chorando pedi:

— Mamãe, não deixe que papai me machuque mais!

— Ele não vai mais bater em você — disse ela tentando me abraçar, mas eu evitei. — Prometo!

Apesar de tudo: das marcas de cinta, da dor, vergonha e da revolta, não deixei de ir à escola. Novamente com roupas compridas. Mas o pior era que todos meus amiguinhos da escola já sabiam do que estava acontecendo; por isso mesmo, alguns entre os mais peraltas caçoavam de minha triste sina, enquanto que outros tinham pena. Lucia não aparecera naquele dia. Na sala de aula, permanecia escondendo o rosto por vergonha. Apesar de que a marca de cinta que trazia em minha face, havia desaparecido, restando as do resto do corpo.

Durante certa explicação sobre a família, que dona Maria do Carmo ministrava, eu, dolorido, com o pensamento longe não prestava atenção…

— Nunca devemos mentir — dizia ela. — Nem a nossos pais, nem a amigos ou qualquer pessoa. Sempre devemos dizer a verdade, por mais difícil que seja. Mesmo que tenhamos que ser punidos por isso… Lembrem-se de que pode até passar algum tempo, mas a mentira é sempre descoberta. E o grave é que às vezes uma mentira pode levar pessoas inocentes até para a prisão e demorar dezenas de anos para se descobrir tal farsa. Nesse caso, o que fazer pela pessoa que foi presa inocentemente? Não tem solução, pois a vida dele não vai mais voltar. Além do mais, a mentira é pecado... Não é Regis?

Olhei assustado para ela e disse:

— Eu não menti a meu pai! Disse a verdade, mas ele não acredita em mim.

Ao falar assim, desconcentrei a professora, que me explicou:

— Eu não estava me referindo ao que aconteceu a você. O que estou comentando é assunto de nossa aula. Chamei seu nome porque você não estava prestando atenção.

— Desculpe — pedi triste. — Eu me distraí.

Sendo assim ela continuou sua aula. Poucos minutos depois, me chamou à frente, me pedindo para acompanhá-la. Fomos até a sala dos professores, onde ela fechou a porta e me perguntou:

— Seu pai bateu novamente em você?

Acenei que sim.

— Abra a camisa. Deixe-me ver.

Obedeci. A me ver muito marcado pela surra, se espantou dizendo:

— É por isso que você está vindo à escola de camisa e calça comprida?

Acenei que sim.

— Baixe a calça. Deixe-me ver.

— Não é preciso — neguei.

— O que é isso? Está com vergonha?

— Estou.

— Nunca vi um artista com vergonha!

Dei de ombros como a dizer: “Belo artista!”

— Seu pai não tem piedade mesmo, hem!?

— Ele não acredita em mim.

— Você não mentiu mesmo a ele?

— Nunca!

— Nem desobedeceu?

— Também não.

— E ele te bate porque não acredita em você?

— É.

— Pois vai acreditar! Pode fechar a camisa.

Abotoei a camisa e dei-lhe um beijo na face; ela riu e me levou ao banheiro das meninas. Chegando à porta falei:

— Aqui eu não posso entrar! É das meninas!

— O que tem isso?

— O outro é dos meninos!

— Venha aqui mesmo.

Entramos juntos e ela me pediu:

— Vá tirando essa roupa que eu volto logo.

— Por quê?

— Só obedeça.

E se retirou. Fechei a porta e permaneci parado. Quando ela retornou, depois de ir à sala de aula e à cozinha, onde pegou uma leiteira, um punhado de sal e uma toalha, então me perguntou:

— Você ainda não tirou a roupa?

Não respondi.

— Tire logo! — insistiu ela.

Despi-me, ficando apenas de cueca, enquanto ela voltou até a pia para pegar a água.

Voltando a mim, insistiu:

— Você ainda não tirou isso?

— Não é preciso — neguei tímido.

— Claro que é preciso! Senão vai molhar!

— O que a senhora vai fazer?

— Vou lhe dar um belo banho!

— Acha que estou sujo?

— Está! Sujo de vergões! Tire isso!

— E se aparecer alguma menina?

— Problema dela!

— Problema meu! Serei eu quem estará pelado!

— E daí? Eu não estou!

— Não quero!

Então ela misturou sal com água, fazendo uma salmoura e passou a me dar um banho delicado. Mas mesmo assim ardia muito.

— Por que a senhora está fazendo isso?

— Pra aliviar a dor e sarar.

— Eu sei! Mas por que a senhora está fazendo? Por que tem que ser a senhora?

— Porque eu acredito e gosto de você.

Por fim sorri e exclamei:

— A senhora é muito boa!

Terminando aquele banho com delicadeza, ela me entregou a toalha dizendo:

— Se enxugue, vista roupa e volte pra classe. Eu vou indo porque lá deve estar uma bagunça.

— E a toalha?

— Entregue com a leiteira na cozinha… e não se esqueça de agradecer!

Assim que a professora saiu entrou uma menina, que vinha ao banheiro. Quando a vi, ela já havia me visto; então me enrolei na toalha e disse:

— Se esconda logo! Não está vendo que estou sem roupa?

— Sua professora deu banho em você?

— Não!

— O que vocês estavam fazendo aqui?

— Tomei banho sozinho!

— Foi ela quem mandou?

— Não! Ela pediu.

— Você não toma banho em sua casa?

— Claro que tomo! — exclamei bravo.

— Estava sujo?

— Não senhora! Eu tomo banho todos os dias! Quer entrar logo em seu banheiro e fechar a porta! Não está vendo que estou sem roupa?

— Está com a toalha!

— Eu preciso me vestir!

— Se vista! Não atrapalho nada!

— Você quer me ver pelado? Não sou objeto de exposição.

— Pelo menos você sabe que está no banheiro das meninas?

— Sei muito bem onde estou!

Percebi que ela estava querendo me fazer passar vexame. Peguei minha roupa, entrei em um dos banheiros individuais, fechei a porta e fui me vestir. Enquanto isso ela ainda falou:

— O cantorzinho está com vergonha?

— Estou porque tenho, você como não tem fica espiando meninos nus.

— Claro! Não é todo dia que se vê um artista só de cueca!

Achei que não adiantava ficar tentando falar com ela, pois a danada tinha respostas para tudo, então me calei, acabei de me vestir e me retirei. Ela, ainda por gozação me mandou um beijo e eu ri. Passei na cozinha, entreguei a leiteira e a toalha, agradeci e voltei à sala de aula, pedindo licença na porta. A professora me mandou entrar e perguntou:

— Por que demorou tanto?

— É que lá chegou uma menina que não me deixava em paz.

— Está melhor agora?

— Sim senhora! — Exclamei rindo.

— Pode ir se sentar.

À tarde, ao chegar à minha casa, encontrei minha professora falando com papai e sabia que era sobre mim:

— Acredito mais que ele tenha dito a verdade do que acreditar naquela gente do circo — foi incisiva ela.

— O cara disse que nem tem arma — retrucou papai.

— E o senhor acredita no cara que nem conhece, mas não acredita em seu filho que conhece há oito anos?

— Não sei! Eles disseram que o menino pode ter imaginado isso e eu acho que é verdade.

— Se fosse ele já teria contado. Ou o senhor acha que ele prefere ficar apanhando, não sei até quando?

— Não sei! Regis nunca mentiu pra mim! Acho que ele tem medo de mudar a história.

— O senhor mesmo disse que ele nunca mentiu! Por que mentiria agora?

— Eu o proibi de fazer o que ele mais gosta.

— Olha aqui senhor Pedro, duvido que pessoas como as do circo, que vivem viajando pelo mundo, não carregue nenhuma arma. Outra coisa, o senhor não pode espancar o menino do jeito que faz. Mesmo que ele mentir. O senhor pode até bater, mas não machucá-lo!

— Agradeço muito pela sua preocupação. Agradeço por cuidar de meu filho em sua escola, mas da educação dele aqui em casa quem cuida sou eu!

— Se o senhor bater nesse menino mais uma vez, eu juro que venho aqui e dou um murro na cara do senhor.

Papai era difícil de mudar de opinião. Resolvi entrar sem ouvir mais nada. Achava que minha professora ali só iria complicar ainda mais minha situação. Fui direto ao meu quarto, deitando de bruços em minha cama.

Pouco depois, levantei-me e me despi do uniforme escolar, apanhei uma toalha e de cueca seguia para o banheiro, onde encontrei papai que me chamou:

— Venha comigo.

— Já vou — respondi, voltando ao quarto.

— Agora!

— Espere! Vou vestir roupa!

— Não precisa. Venha assim mesmo!

— Não vou sem roupa a lugar nenhum, papai!

Pelo menos na exploração de meu corpo seminu eu ainda merecia ser dono.

Apanhei um short no guarda roupas e vesti rapidamente. Assustado, acompanhei papai, que apanhou sua bicicleta e disse para pegar a minha.

— Pedro, você não me bata mais nesse menino! — pediu mamãe brava. — Caso isso acontecer você vai se haver comigo.

— Eu cuido disso — insistiu papai.

— Chega com essa baboseira! — persistiu mamãe, realmente brava. — Já machucou demais esse menino!

— Não é baboseira pra mim!

— Se você machucar o menino de novo, a coisa vai ficar feia entre eu e você!

Em poucos minutos estávamos novamente no circo. Deixamos as bicicletas e nos dirigimos ao reboque de Luís Lauro. Papai bateu na porta e foi atendido imediatamente. Lucia me viu de longe, chamou meu nome e veio correndo, mas papai não me deixou esperar. Antes de sermos convidados, entramos e ele mesmo fechou a porta. Além de Luís Lauro, Marcelo também se fazia presente.

— O que vocês querem aqui? — Perguntou o gerente.

— O senhor sabe muito bem o que eu quero aqui!

— Por que insiste em trazer o menino, quase pelado, aqui?

— Se o menino está pelado ou não é problema meu! Mas eu vim pra uma conversa definitiva sobre raptar o filho dos outros!

— Não acredito que o senhor continua com esta história boba!

— Não é boba pra mim! Quero saber o que aconteceu naquela noite, em que vocês trouxeram meu filho a seu circo sem minha permissão.

— O senhor não acha que esta história já foi longe demais? — insistiu Luís Lauro. — O menino quis vir e foi só isso! Acabou!

— Esta história boba que o senhor diz, está muito mal contada. Eu vou à polícia e lá meu filho vai contar a versão dele, vocês dois terão que atender intimação; no caso dele estar dizendo a verdade vocês serão presos e se ele estiver mentindo é ele é quem vai acabar na Febem.

Sabia que papai falou aquilo apenas para assustar os dois homens e a mim também. Não me assustei, mas os dois homens sentiram receio. Mesmo assim, Luís Lauro insinuou:

— Acho bobagem o senhor ir à polícia; irá perder seu tempo e o nosso também. Mas tudo bem quer ir pode ir.

Papai julgou que se Luís Lauro não se importava tanto com uma intimação da polícia, é porque ele dizia a verdade, então abriu a porta do reboque e deu um forte tapa em meu rosto, dizendo:

— É esse sem vergonha que anda criando problemas pra mim! Mas ele vai me dizer a verdade, ou eu mato ele de tanto bater!

Com o forte tapa no rosto sem esperar, me desequilibrei e caí fora do reboque. Levantei-me chorando e estava sangrando na boca. Machuquei-me na queda. Lucia, que continuava por perto, correu a me socorrer, me abraçando e gritando com papai:

— Pare com isso seu monstro covarde!

— Não bata assim no menino, senhor Pedro — pediu Marcelo, que até então estava em silêncio. — Ele nunca mentiu ao senhor! Naquela noite ele não queria ter vindo ao circo…

— Marcelo! — gritou o gerente. — Pare de falar bobagem!

— Como ele não queria vir... — continuou Marcelo. — Luís apanhou o revólver que estava no porta luvas e o obrigou a entrar no carro… É lógico que ele não iria usar o revólver... estava até descarregado. Mas era pra intimidar o menino.

— Isso é mentira! — gritou o gerente. — Marcelo está com pena do menino.

— Mentira eu ajudei o senhor a fazer até agora! — continuou Marcelo, arrependido. — Tinha medo de perder o emprego. Não sabia que as consequências seriam tão sérias para o menino, que é apenas uma criança. Pensava que isso tudo não passaria de um puxão de orelhas. Preciso desse emprego, mas agora não dá mais pra ver o menino sofrendo. O senhor é muito exagerado senhor Pedro.

— O que esse rapaz tá falando é mentira! — insistiu Luís Lauro.

— Não senhor! — continuou Marcelo. — Chega de tanta covardia. Somos um monte de cafajestes adultos maltratando uma pobre criança. Pode olhar na gaveta, senhor Pedro, que o revólver preto está lá. Pode me demitir agora Luís.

— É lógico que você está demitido! — confirmou o gerente.

— E eu estou indo à polícia! — advertiu papai, faiscando de ódio. — O senhor será preso.

Mesmo ferido, deixei Lucia e voltei ao reboque, parando no segundo degrau de escada, de onde, ainda soluçando muito assustado pedi a papai:

— Não vá à polícia não papai! Luís, por favor, não demita Marcelo, que ele precisa do emprego.

— Que isso Regis?! — admirou-se papai. — É claro que vou à polícia! O que ele fez é muito grave!

— Por favor! — pedi. — Só vai dar confusão!

— Por que você está com medo?

— Não estou com medo! — afirmei trêmulo. — É que também... tive culpa.

— Como culpa?

— Se eu não tivesse perturbado Lucia pra vir ao circo cantar, nada disso teria acontecido.

— Você não me perturbou nada, Regis — negou Lucia, ainda junto de mim, fora do reboque. — Eu é que convidei você!

— Não te entendo! — estranhou papai.

— Eu me entendo. É verdade. O importante é o senhor saber que eu não menti.

— Está bem! Vou pensar nisso! Mas se fosse por mim, mandaria prender os dois! Porque os dois não prestam!

— Não se faça de idiota, senhor Pedro! — protestou Marcelo. — O senhor é o maior covarde entre todos nós. Onde se viu espancar um menino desse jeito!

— Não brinque comigo rapaz! — insinuou papai nervoso.

— O senhor é covarde mesmo! — reclamou Lucia, nervosa. — Vai fazer o que comigo?

Papai, ignorando Lucia, virou-se para Luís Lauro e disse:

— Por Regis, não irei à delegacia, mas se esse circo der mais um espetáculo nessa cidade, eu volto com a polícia e embargo tudo.

Chamou-me, então me despedi de Lucia e voltamos para casa. O sangue que saíra de minha boca estava ressecado em meu peito nu, por onde rolara.

Chegando a nossa casa, mamãe que estava sentada no sofá da sala, talvez percebendo que as coisas teriam se resolvido, me chamou e eu ainda triste a obedeci.

— Deite aqui em meu colo — Pediu-me ela.

Acho que realmente precisava daquilo, então a obedeci, deitando-me no sofá com a cabeça em seu colo. Ela raspou o sangue ressecado, perguntando:

— O que foi isso?

— Caí! — dei de ombros.

Acariciou meus cabelos de um jeito tão especial, fazendo como em um milagre, que todas minhas tristezas desaparecessem.

— Conseguiram resolver agora? — especulou-me ela.

Acenei que sim e continuei querendo aquele carinho especial, o qual nunca tive.

— Meu menino pequeno — insinuou séria. — Acho que depois que Tony nasceu, esquecemos que você continua sendo só um menininho indefeso.

— Eu amo você, mamãe.

Acariciou meu peito e emocionada disse:

— Você tem um coraçãozinho de ouro.

— Não mamãe! É de carne! — aleguei com sorriso. — Se fosse de ouro a senhora iria querer vender pra ficar rica.

— Só você mesmo, Regis! Vai ser artista mesmo! — calou-se por alguns instantes, sabendo que eu estava adorando aquele momento. — Mas minha maior riqueza é ver um sorriso lindo em sua face sapeca.

— Não sou sapeca! — protestei alto.

E ela me beijou.

Quanto tempo isso não acontecia.

Naquela noite, desobedecendo à ameaça de papai cricrí, Luís Lauro fez com que o circo realisasse seu espetáculo normalmente.

Ao perceber que ele não atenderia sua ameaça, papai foi mesmo à delegacia, contando tudo o acontecido e fazendo um boletim de ocorrência. Com isto, por ordem do delegado de plantão, que solicitou ao juiz, um mandado de prisão contra Luís Lauro, por sequestro e cárcere privado.

No dia seguinte, embora as coisas parecessem ter se resolvido, não fui à aula de canto, Lucia não fora novamente à escola. Na saída do recreio, permaneci na sala e quando todos se retiraram segui até a mesa de dona Maria do Carmo:

— Obrigada professora por ter me ajudado — agradeci-lhe.

— Ajudado em que? — espantou-se ela. — No banho?

— Fazer papai acreditar em mim!

— Ele está acreditando?

— Sim senhora!

— Já tinha passado da hora! — exclamou ela. — Vá ser turrão assim no raio que o parta. Opa! Desculpe!

Apenas sorri.

— Vá pro recreio. Se quiser outro banho é só falar — brincou ela.

— Não precisa! Estou bem!

Naquela tarde passei no circo, mas tímido não entrei. Tentei ver Lucia, mas não conseguindo segui para casa.


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Notas finais do capítulo

Obrigado aos poucos que estão acompanhando a esta estória.
Estou um pouco desanimado e as vezes até penso em abandoná-la.



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