O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 42
Como um traste humano


Notas iniciais do capítulo

Esta é continuação de "Uma triste história" que era muito longa.



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Na manhã seguinte... Parece fácil dizer, na manhã seguinte, mas o difícil, realmente é passar uma noite inteira preso em uma cama, sem praticamente poder se mover. Já era difícil sem tomar banho, imagine preso. A gente sente cócegas no nariz e não tem como se coçar e então passa a sentir cócegas no corpo inteiro, se debatendo sem poder fazer nada; é uma noite, mas parece uma eternidade no inferno. Mas enfim... Entrou alguém, que descobri depois ser o ruivo, que também descobri se chamar José Renato. Ele trazia uma bandeja de café e a me ver amarrado, deixou a bandeja sobre a cadeira, desamarrou meus pés e com a chave, que nem sei onde estava, abriu as algemas. Sentindo-me livre, tirei com um pouco de sacrifício e dor, a venda colada em meus olhos. Junto com a venda, saíram quase todos os pelos de meus olhos (os cílios). Meus dois pulsos estavam em carne viva, pois as algemas os cortavam, conforme me esforçava durante a noite.

— Se você tivesse dormido quieto, não teria machucado o punho — alegou o homem, com sorriso irônico. — Mas quis dar uma de herói de televisão. O azar foi só seu!

Pouco depois, na sala de jantar, quando Luís Marcos me viu com os pulsos machucados e mancha de máscara nos olhos, quis saber:

— O que fizeram com esse menino?

— Quis dar uma de herói de tevê! — riu José Renato.

— O que fizeram? — gritou tão alto Luís Marcos, que até eu, que estava sendo defendido por ele, me assustei.

— O deixei dormir amarrado — alegou Paulo. — Algum problema?

Em um segundo, Luís Marcos já dera um murro na cara do parceiro e soltando faíscas de ódio, disse:

— Outra vez que você maltratar o menino, eu lhe mato!

— Tá apaixonado por ele? — caçoou o homem, esfregando a mão na boca. — Ele não é seu amigo! É seu ganha pão! Ou será que ainda não aprendeu, que quando se está em um negócio como este, você precisa olhar pra ele e não vê-lo como criança e sim como uma mala cheia de dinheiro?

Paulo, com certeza era o cabeça da quadrilha e todos, com exceção de Luís, talvez por medo, o respeitava.

Já estava decidido que deveriam realmente sumirem para São Paulo, com isto, meia hora depois, Paulo disse à Laura:

— A gente vai comprar mais algumas roupas pra esse moleque. Põe ele pra tomar um banho, pois está fedendo…

— Por favor! — pedi. — Me arranje também uma escova de dente. Estou com mau hálito.

— Mau hálito!? — Caçoou José Renato. — Você está podre!

Realmente: além da falta de banho, também não escovava os dentes e embora, lavasse constantemente a boca, estava com os dentes grossos, cheio de restos de comida e cheirando mal. Estava me sentindo como um bicho imundo em um mundo sem água. Mesmo quando passava a noite desamarrado eu não conseguia dormir; acho que desmaiava, depois de sofrer, com o corpo todo grudando, cabelos grossos espetados, cabeça coçando muito, parecendo cheia de piolhos, meu pinto e minha bunda cheia de alergia, por falta de higiene. Acho que aquilo era a pior tortura de meu cativeiro. Experimente Willian, ficar dez dias sem tomar banho e sem escovar os dentes pra saber do que estou falando. Eu fedia mais do que gambá. Contei isso no show.

“Durante toda sua triste narrativa, ele permanecia chorando muito”.

Assim que os três homens se retiraram, Laura me chamou, me levando a outro quarto que possuía um banheiro e disse:

— Tire essa roupa que vou lhe dar um banho!

— Não! — neguei assustado.

— Você não quer tomar um banho?

— Quero muito! Mas tomo banho sozinho!

— Sozinho eu não deixo! — negou ela rindo com ironia.

— Não me maltrate mais, por favor!

— Não quero maltratá-lo! Quero deixá-lo feliz! Banho gostoso... Cabelos penteados...

— Só quero um banho! Sozinho! Por favor!…

— Se for sozinho, vai continuar sujo!

Mais uma vez acabava sub...

— “Submisso? — emendei”.

Mais uma vez acabava submisso a uma mulher mais velha e de índole perversa.

— Estou machucado e com muita dor.

— Mentira! Esse bilauzinho seu já sarou!

— Ainda dói!

— Vamos ver!

— Estou com a boca fedendo!

— Não vou beijar sua boca! — negou ela rindo.

Será que era aquilo que um menino com menos de doze anos de idade, refém de bandidos queria? Não vou contar detalhes, né Willian?!

Naquela mesma noite, apesar de ter pagado um preço cruel, que acho que valeu a pena, porque então, pelo menos de banho tomado, usando roupas confortáveis e boca cheirando bem, entramos os cinco no Chevrolet Opala e seguimos para São Paulo, pensando assim, em despistarem, quem porventura nos procurassem no Rio de Janeiro.

Só às dez horas da manhã do dia seguinte, é que... Mandaram-me ligar pra vocês. Quem atendeu foi você e eu tive que ter pressa, dizendo:

— Willian, meu pai está aí?

— Está sim Regis! Você está bem?

— Estou com saudade e com muito medo também!

— Não se preocupe. Nós iremos encontrar você!

— Os homens querem vinte milhões. É muito dinheiro e sei que papai não tem!

— Não se preocupe. A gente vai arranjar!

— Arranje, por favor! Vou telefonar depois.

— Onde você está?

— Não posso falar! Eles me batem! Outro dia... me deixaram amarr…

Tomaram o telefone de minha mão. Por sorte não me maltrataram.

Naquela mesma noite, todos, com exceção de Luís, estavam na sala do apartamento assistindo a um programa jornalístico pela televisão, quando o apresentador anunciou:

— Vinte milhões de cruzeiros! Este é o valor do resgate exigido pelos sequestradores, para libertarem o menino Regis Moura. A polícia divulgou a fita, com a gravação do último contato que o menino fez com seu empresário, anunciando o valor do resgate…

Enquanto o jornal exibia a gravação do telefonema, como se fosse culpa minha, Paulo, nervoso, me arrastou pela garganta gritando:

— Seus familiares são todos um bando de cretinos! Eles não amam você não, moleque! Eles amam é o dinheiro que você ganha pra eles ficarem ricos! A gente pediu pra tirar a imprensa das negociações e eles divulgam a gravação do telefonema?

Jogou-me sobre uma cadeira próxima ao telefone, discou alguns números e apesar de eu estar apavorado, me avisou:

— Quando atenderem diga que vou te matar!

No segundo toque do telefone, papai atendeu e então implorei quase chorando:

— Papai, não me faça sofrer mais!

— O que ouve Regis?

Paulo, nervoso, tomou o telefone de minhas mãos e ameaçou:

— Ouça aqui seu cretino, Você vai entregar esta gravação também pra fazer média com a imprensa? Seu filho não está precisando disso não! Ele está querendo viver e você está assinando sua sentença de morte!

Papai deve ter falado alguma coisa. Depois Paulo continuou:

— Cale a boca e me escute! Vou assistir vinte e quatro horas de televisão por dia! Se ela anunciar qualquer coisinha a respeito dessa negociação, vou te mandar seu filho picadinho, dentro de um lindo caixão branco!

E bateu o telefone, arrastando-me para o quarto, onde, novamente me amarrou na cama pelos pulsos e pés. Depois, tornou a me fotografar de diversos ângulos e então, como eu suspirava cansado e nervoso, porém sem chorar, ele ainda gritou:

— Chore menino! Quero ver você chorar!

— Por quê? — insinuei ofegante. — Se eu chorar você me deixa ir embora?

— Só quando eu tiver vinte milhões em minhas mãos!

— Eu odeio você! — protestei, mostrando realmente cara de muito ódio.

— Não há problema! Não preciso de seu amor! Só de seus vinte milhões de cruzeiros!

— O senhor tem filho?

— Não é de sua conta! — negou Paulo com ódio.

— O que o senhor faria se alguém o maltratasse?

— Você não se acha muito abusado, moleque? Meça as palavras pra falar comigo!

— Já estou preso, amarrado, arrasado, sujo, fedendo. O que mais tenho a perder?

— A língua!

Apesar do banho do dia anterior, acho que apesar de criança, devido o nervosismo e revolta, me transpirava muito, estando novamente cheirando mal.

©©©

Só quando Laura me levou café na manhã seguinte, depois de outra noite infindável sem dormir, é que ela me desamarrou, me sentando na cama.

— Por que você se faz de tão valente? — perguntou-me ela. — Você não tem medo de Paulo e dos demais?

— Medo não! — neguei nervoso. — Tenho pavor!

— Então?! Procure não retrucar com as ameaças dele! — aconselhou-me Laura. — Com certeza você sofrerá menos!

Às nove horas daquela manhã, com os pulsos ainda mais feridos e observado por quatro pares de olhos e um punhal sobre meu pescoço, disquei alguns números e antes da ligação ser completada, Paulo, apesar da reprovação de Luís, me ameaçou:

— Se você falar o que eu não gostar corto sua garganta!

Assim que o telefone deu o primeiro toque, papai atendeu:

— Papai, o senhor já arranjou o dinheiro?

— Arranjamos sim, filho! Como faço pra entregar o dinheiro a eles?

— Eles querem que o senhor coloque o dinheiro em uma caixa de papelão velha e às sete horas da noite de hoje, deixe a caixa no quilômetro vinte e cinco da rodovia dos Imigrantes, sentido praia, próximo ao telefone de emergência. Vai ter uma caixa de papelão grande e velha jogada. Coloque o dinheiro dentro dela e se afaste. Assim que eles apanharem o dinheiro me deixarão perto de casa. Mas por favor, papai, não tente nada diferente, porque eles disseram que não vão insistir por mais de uma vez.

— Está bem, filho! Vou fazer direitinho. Você vai voltar pra casa. Você está bem?

— Não me faça falar algo que não devo! Eles estão com uma faca no meu pescoço!

— Muito bem, filho! —apavorou-se papai. — Nós pagaremos o resgate e você sairá daí ainda hoje!

— Não deixe os jornais saberem disso, papai!

— Tudo bem filh...

O telefone foi novamente desligado. Paulo me deu um empurrão, dizendo, com sorriso sarcástico:

— Quem diria, o menino lindo da televisão está fedendo mais do que um mendigo de rua. Sua boca fede mais do que ovo podre.

Até eu sabia o quanto fedia. Desde que fui levado do Rio de Janeiro para São Paulo, não tomei mais banho, ou escovei os dentes. Willian, você não é capaz de saber o quanto eu estava revoltado.

— Séculos passarão e eu ainda te odiarei — insinuei nervoso.

— Nem um dia passará e uma faca em sua garganta eu enfiarei — gracejou Paulo irônico. — Assim faço você calar essa boca de carniça! Quem sairá perdendo?

— Você — retruquei convicto. — Eu estarei com Deus!

— Deus... Moleque? Você acredita em um Deus de Amor e Piedade? Se esse Deus existisse, você estaria aqui?

— Por que não? — insinuei calmamente. — Ele lhe deu o livre arbítrio. Você pode me amar, ou me sequestrar!

— E quem tem ódio no coração, não estará com Deus! — tornou ironizar, o homem.

— Eu estarei. Deus não exige que se ame o demônio!

Provoquei com isso sua ira e ele avançou sobre mim, tentando me esmurrar.

— Acabo com sua raça agora mesmo, moleque!

Felizmente Luís Marcos o segurou, dizendo:

— Chega Paulo! Você vai pegar o dinheiro do menino! Não precisa mais ficar maltratando ele.

Ainda muito nervoso, ele insinuou:

— Ele gosta de falar provérbios! Eu gosto de fazer provérbios!

— Chega disso!

— Hoje eu pego seu dinheiro! E hoje mesmo, meto um tiro em sua testa! Ou você pensa que vou deixá-lo ir embora, assim de graça? Você conhece minha cara...

— Cala a boca, Paulo! — gritou Laura.

— Vocês estão escondendo a verdade dele! — falou aos companheiros, depois me apontando o dedo, prosseguiu:

— Fala menino, você que se acha tão inteligente... Acha que tem alguma chance de deixarmos sair daqui vivo? Mesmo Luís Marcos, que se acha seu amigo?

— Cala a boca, Paulo! — gritou Luis Marcos, faiscando de ódio.

— Será que vamos arriscar você montar nosso retrato falado e irmos pra cadeia? — continuou ameaçando-me Paulo, irônico. — Pelo menos, a maldita imprensa terá muito assunto, acompanhando seu lindo velório, com milhares de fãs, desfilando em carro de bombeiro, em belíssimo caixãozinho branco...

Deixaram-me trancado no quarto, onde permaneci muito tempo, deitado de bruços, onde, acho que pela primeira vez no cativeiro, chorei muito. Estava muito apavorado, pois sabia que Paulo realmente deveria cumprir sua ameaça; não pelo fato de tê-lo enfrentado com minha arrogância, mas sim, por eu conhecer a cara de todos eles. Acho Willian, que eu deveria ter permanecido com venda nos olhos, desde o momento em que fui capturado por eles, somente assim, acho que teria uma chance de viver. Mas eu sabia que tinha um amigo lá dentro. Por que será que ele não iria me defender?

— “Sabe Regis — interferi em seu comentário triste — Muitas vezes, a vítima de um sequestro acaba se empatizando com seu sequestrador e começa a admirá-lo, tendo a impressão que ele é seu amigo. Foi o que aconteceu entre você e o tal Luís. Você o via como um amigo. Mas ele não era seu amigo! Ele era um marginal e vai apodrecer na cadeia”!

Cerca de duas horas da tarde, ainda estava deitado, apavorado. A porta se abriu e Paulo, quase sem roupas, entrou gritando com as algemas na mão:

— Sabe de uma coisa, moleque... sua família não tá nem aí conosco e nem com você! Pedi pra tirar a imprensa fora disso e eles acabaram de falar sobre o resgate de hoje à noite. Você acha que isso pode dar certo?

Levantei-me apavorado, mas nada respondi e ele prosseguiu:

— Sabe quanto tempo faz que não tenho uma mulher!? Esse negócio era pra ser resolvido em dois dias! Já faz quase quinze! Tire essa camisa!

Ainda apavorado o obedeci rapidamente; ele me deu um empurrão, me jogando na cama, onde tornou a algemar minhas mãos nas grades da cabeceira, desta feita de bruços.

— Seus pais erram você paga! Esta é minha lei!

No maior dos desesperos, comecei a chorar.

— Tenha um pouquinho de piedade! — pedi desesperado.

— Você me chamou de demônio! Você acha que demônio tem piedade?

— Me mate, por favor! — todas as lágrimas que estavam acumuladas, de todos os dias de cativeiro, se tornaram presente naquela hora.

— Por enquanto, você morto não me vale nada! — riu o homem com maldade e sarcasmo. — Hoje à noite, terei o prazer de atender a este seu pedido!

Ele puxou com força minha calça jeans, me deixando nu. De todo o sofrimento passado até então, nada se comparava ao que pudesse me acontecer naquele momento.

— Deus, meu Deus! — gritei no maior de todos os pavores, com o rosto molhado de tantas lágrimas. — Eu quero morrer!

Nem a morte poderia ser pior do que aquele tipo de tortura. Só um monstro, que nem mesmo Deus pode ser capaz de perdoar, seria capaz de tanta covardia.

Mas acho que Deus ainda não havia me esquecido, pois a porta se abriu rapidamente e Laura voou dalí mesmo com os pés sobre o monstro, que relutava sobre minha fraqueza de menino frágil desesperado, atingindo-o com força de leão, derrubando-o no chão.

Ele se levantou calmamente e se retirou, dizendo à Laura:

— Está com pena dele? Dê pra ele!

— Seu filho da puta! — gritou ela. — Se eu fizer isso, pelo menos sou mulher!

Laura apanhou a chave das algemas, que Paulo jogou no chão, me libertou e depois que subi a calça, me pediu pra vestir a camisa; o que obedeci, chorando muito, depois sentei-me a seu lado na cama.

— Menino! — disse-me ela. — Isso já foi longe demais. Sei que fiz coisa errada com você...

— Depois do que você me fez agora, faço o que você quiser, quantas vezes você quiser; apesar de que, não gostarei nenhum pouco! Nada me dá prazer neste inferno!

Abraçou-me, acariciando meu rosto, como se fosse a mais meiga de todas as mulheres, dizendo:

— Nunca mais mexerei com você, menino! É errado! Você é criança! Mas pelo menos, quando mexi contigo, eu sabia que eu era mulher e você era homem!

— Olhe pra mim! — pedi chorando. — Que homem você vê em mim?

Não quero contar mais, Willian! Não suporto!

“Ali no ônibus, o abracei forte, sentindo suas lágrimas que molhavam meu ombro e seu soluço de revolta”.

— Outra hora você continua contando — pedi.

Ele continuou abraçado forte a mim, como se fosse um menininho pequeno, com as mãos fechadas, quase rasgando minha camisa, como se pedisse proteção... E prosseguiu:

No finzinho da tarde, aproveitando descuido dos bandidos, apanhei o telefone e liguei. Foi você quem atendeu.

— Pronto! Willian!

— Olha, Willian! Tenho pouco tempo. Não sei onde estou, mas o telefone aqui é dois três sete... um sete... Pede pra Telesp que eles ajudam você a me encontrar. É centro de São Paulo.

— Fique tranquilo, Regis. A gente vai te encontrar!

— Eles vão me matar, Willian... Tenho tanto medo...

Desliguei o telefone e tremendo nervoso deitei-me no sofá. Em poucos minutos entrou Luís Marcos. Ainda nervoso avancei sobre ele, dizendo:

— Por favor, vamos embora daqui antes que seja tarde! A polícia vai descobrir vocês e virão aqui! Todos serão presos!

— Calma, garoto! Ninguém será preso! Hoje tudo vai terminar! Você voltará pra casa!

— Papai não vai pagar o resgate! Deixe-me ir embora!

— Se ele não pagar o resgate, não tem problema! Fico com você pra mim! — riu ele. — Ninguém vai ferir você! Você sabe o quanto gosto de você e quero ser seu amigo. Seu fã!

— Se você é meu amigo, me deixe voltar pra casa agora! Em poucos dias, você aparece e lhe prometo que esqueço este inferno e ficaremos amigos pra sempre!

— Agora é tarde. Não dá mais!

— Por favor! Vocês serão presos! Estou com muito medo!

— Não precisa temer nada! Tudo acabará bem! Vou sair agora pra buscar o dinheiro.

— E o Paulo? — Especulei chorando. — Não quero morrer! Me deixe ir pra casa!

— Não precisa temer o que Paulo disse de manhã! Ninguém matará você! Era só pra assustá-lo!

Apavorado e chorando, continuei segurando a camisa de Luís. Sabia que aquele desfecho poderia ser muito drástico para mim. Sabia que seria morto naquela mesma noite, por Paulo... Sabe, Willian, o medo da morte é cruel. Tão cruel, que senti meu estômago revirar e de repente, me vi caindo de joelhos ao chão e passei a vomitar muito, um líquido amarelo e amargo como fel. Luís ajudou a me recompor. Depois me levantou, me colocando sentado sobre o sofá, dizendo;

— Você está apavorado sem motivo! Tudo ficará bem! Eu lhe garanto!

— Por favor! — pedi, ainda chorando muito e suando gelado. — Eu peço a meu pai, pra dar a vocês tudo o que eu tenho, mas por Deus, me deixe viver! Eu ainda sou muito pequeno pra morrer!

— Ouça menino, não tenha medo de Paulo! Ele nem mesmo verá mais você! Ele já se foi e não voltará mais aqui!

E se retirou pela porta de entrada, trancando-a por fora. Continuei chorando apavorado. Durante todo o período de cativeiro, não havia praticamente chorado.

Laura entrou na sala, sentou-se a meu lado e começou a acariciar-me.

— Fique calmo meu amorzinho. Hoje será o fim de tudo e você sairá daqui.

— Me deixe ir, por favor, antes que seja tarde demais! A polícia vem prender vocês!

Meu coração batia descompassado.

— Acalme-se, ou vai acabar tendo um infarto! Ninguém mais vai machucar você. Eu garanto!

Pegou em minha mão e me arrastou para uma suíte, a qual, até então não tinha entrado. Tirou toda minha roupa suja de vômito, me deixando ainda mais assustado:

— Por favor, não faça mais isso comigo! — pedi tristemente.

— Neste banheiro, tem sabonete, xampu, escova de dente, creme dental, desodorante e Cepacol. Vamos tomar um bom banho e escovar estes dentes, pra que você fique lindo, pra retornar à sua família.

Entrei com ela no banheiro e mais uma vez, sabia que teria que doar meu corpo quase infantil, como forma de pagar por aquela gentileza; mas até que não me importava, pois meu corpo estava fedendo e grudando de tanta sujeira, suor e vômito; meus poros, não respiravam mais, minha região genital tinha coceiras e alergias, por falta de higiene e meus dentes estavam grossos de gorduras, bactérias e milhões de outras coisas, que só quem ficar cinco dias iguais a mim, pode saber o que eu realmente sentia. Sei que já falei isso.

— Vai me usar? — perguntei triste. — Mesmo fedendo?

— Não vou te usar, menino! — negou ela. — Só quero vê-lo limpinho!

Por mais de meia hora permaneci sozinho no banho, inclusive escovando muito bem meus dentes, depois, fazendo gargarejo com o tal Cepacol. Depois, Laura me deu roupas limpas e então passei a me sentir como um príncipe. Foi como se tivessem me tirado do inferno e me levado diretamente ao Céu.

Quando voltei novamente com Laura à sala de estar, perguntei-lhe ainda assustado:

— É verdade que o Paulo não vai mais voltar?

— Não! Só o Luís Marcos voltará aqui e juntos vamos deixar você próximo à sua casa.

Permaneci sentado naquele sofá da sala por muito tempo, praticamente em silêncio, pensando milhões de coisas terríveis, com meu coração batendo apavorado, a mais do que o dobro do normal.

Acho que era quase oito horas da noite quando Luís Marcos entrou, batendo fortemente a porta e ao contrário do que de costume, me arrastou do sofá, me derrubando sobre o tapete da sala, com um punhal nas mãos, sentando sobre meu corpo e me ameaçando, gritando com muito ódio:

— Aqueles cretinos não amam realmente você, moleque! Eles tiveram a ousadia de nos fazer de palhaços e não pagaram o resgate. Vou acabar com sua vida e te mandar em pedacinhos pra eles.

Você não é capaz de imaginar o pavor que eu sentia, olhando firme para os olhos faiscantes de ódio daquele homem, que até então me protegia no cativeiro.

Ouvi pancadas fortes na porta. Depois disso não vi mais nada e o resto você já sabe.

©©©

Afastei-o. Minha camisa e seu rosto estavam molhados de tantas lágrimas. Acho que todas as lágrimas que não deixara correr no período de cativeiro, resolveu mostrar agora, pois chorou durante toda sua triste narrativa.

E eu... Confirmando mais uma vez nossa covardia, em não perceber seu sofrimento, chorava também.

— A polícia tentou localizar você — disse a ele. — Interceptou o telefone. Mas vocês ligavam cada hora de um lugar diferente. Como eles faziam pra te levar a tantos lugares?

— Nunca saímos de dentro do apartamento.

Sem ser detetive, mas por ter trabalhado na Telesp, entendi que a artimanha dos sequestradores, era exatamente a que eu já teria dito à polícia: eles com certeza grampeavam qualquer telefone, na caixa de distribuição do próprio prédio onde estavam e usava qualquer linha, para despistar a polícia. Cada vez que ligava para a casa dos pais do menino, substituía a linha por outra diferente.

Ainda soluçando, ele tornou a deitar a poltrona, puxou a manta leve sobre seu corpo e permaneceu olhando para o teto do ônibus, que cortava o espaço físico, a uma velocidade de cem quilômetros horário, pela Rodovia Marechal Rondon.

Não se passou mais do que cinco minutos e ele já estava dormindo.

O tempo passava lentamente e percebi que ele, diferente de todos os dias em Penápolis, estava dormindo tranquilamente. Realmente, seu desabafo, foi um excelente remédio para amenizar seu grande trauma.

Eu, porém, meditando sobre seu triste drama no cativeiro, passei a sofrer atrasado, o que ele sofreu nas mãos de criminosos cruéis, não me conformando com o ocorrido e por isto, somando às dificuldades que já enfrentava em dormir nas viagens, não consegui fechar os olhos um minuto sequer.

E também, apesar de não ser psicólogo, atribuo à coragem que o menino tinha em enfrentar as ameaças, principalmente de Paulo, no cativeiro, a seu grau de hiperatividade, onde, ele não aceita desaforos e retruca sempre. Era assim que ele agia comigo... era assim que ele agia com seu pai... era assim que ele agia com as gozações de João Batista. Mas na verdade, com certeza, aquilo tudo não significava coragem, mas sim, pavor.


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