O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 25
Pequeno pregador.




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Em treze de Janeiro, quinta-feira, seguia já com nosso micro-ônibus, para uma turnê de dez shows seguidos pelo estado do Rio Grande do Sul, começando pela capital e seguindo para o interior.

Dia 14 sexta-feira Porto Alegre 1100 km

Dia 15 sábado São Leopoldo 35 km

Dia 16 domingo Caxias do Sul 100 km

Dia 17 segunda Lajeado 106 km

Dia 18 terça-feira Getúlio Vargas 229 km

Dia 19 quarta-feira Pelotas 570 km

Dia 20 quinta-feira Uruguaiana 570 km

Dia 21 sexta-feira São Borja 80 km

Dia 22 sábado Santa Maria 300 km

Dia 23 domingo Campo Largo 820 km

Como o tempo hábil nos locais de apresentação acabavam se tornando curto, Toda a equipe aproveitava a viagem para seus costumeiros ensaios, principalmente quando haviam músicas novas, ou qualquer outro tipo de novidades.

Regis, geralmente tirava algumas horas da viagem, para estudar com o professor João Alberto, depois se reunia com a equipe para tais ensaios, usando apenas alguns instrumentos que não necessitavam uso de energia elétrica, tais como, violão, viola, acordeom, pandeiro, gaita e às vezes até uma bateria. Mas o menino mesmo, apesar de violão em punho, não levava os ensaios muito a sério, permanecendo brincando com tudo e deixando muitas vezes os músicos, de certa forma bravos.

— Regis — advertiu Daniel. — Você precisa levar os ensaios mais a sério!

— Ensaio pra quê!? — reclamou o menino.

— Regis — insisti. — Os ensaios são necessários, pra que não aconteça nenhum imprevisto nos shows.

— O show de hoje é ensaio pro show de amanhã! — deu de ombros o menino.

— Não é bem assim que funciona — reclamou Daniel. — Existem músicas diferentes e... Comentários que você inventa, diferentes!

— É isso mesmo, menino! — interferiu Pinduca. — Além de quê, suas surpresas nos shows, sempre nos pregam peças complicadas.

— Que isso meninos! — ironizou o menino, gesticulando as mãos — Tudo sob controle absoluto!

— Willian! — advertiu-me Jardel. — Esse guri precisa de responsabilidades!

— Venceram! — ironizou ainda o menino, dedilhando em seu violão um arranjo da música “O menino da porteira”. — Vamos ensaiar!

Enquanto eles ensaiavam, eu, que não entendia patavina dessa responsabilidade, permanecia organizando os utensílios diversos dentro do ônibus em movimento e foi então, que no meio da coleção de livros e gibis, percebi que acabou aparecendo dois exemplares da famosa revista Playboy.

Um pouco desapontado com tal irresponsabilidade de alguém, aproveitei uma pausa no ensaio para chamar a atenção do grupo, mostrando-lhes as revistas e pedindo:

— Não importa quem seja o dono destas revistas. Só peço que a partir de agora não as deixe junto com as outras. Quem quiser carregar, tudo bem, mas que carregue dentro da mala particular. Acho que todos sabem qual o motivo desta exigência.

— Eu sei! — prontificou-se Regis, em sorriso sarcástico. — Não se preocupe que eu vou carregá-las na mala!

Claro que todos riram.

— Tudo bem! — concordei sério. — Vou pedir permissão ao “boss”.

— Quem é... Boss!? — fez careta.

— O chefe! — expliquei.

— Que isso, Willian?! Você acha que eu não sei o que as mulheres têm por baixo da roupa?

— Pelo contrário! Acho que sabe até bem demais! Por mim, até não vejo grandes problemas em você folhear a revista. Mas existe um problema chamado Pedro Moura.

— Pois quando chegarmos de volta ao senhor Pedro Moura, ele vai lhe cantar uma musiquinha assim — insinuou com sarcasmo o menino, pontilhando o violão e cantando — “Por que será... que o Willian me engana, que só uma vez em duas semanas trás meu filhinho pra passear”.

Todos riram e Felipe especulou:

— De onde você tirou essa?

— Da infância do Willian! — caçoou Regis. — Época de Dilermando Reis... Vicente Celestino...

— Velho é a mamãezinha! — reclamei.

— Brincadeira — franziu o nariz. — Aprendi com o Waldomiro da Telesp. Lembra?

Viajando assim, com micro-ônibus próprio, Regis se divertia mais, pois levava consigo, além dos livros, diversos brinquedos, principalmente carrinhos de fricção e sentado ou mesmo deitado a meu lado, na poltrona da janelinha, seguia quase todo tempo ocioso do percurso ocupado, estudando… brincando…dormindo… conversando… falando com a família no radio PX... lendo livros, o qual ele adquiriu este dom, antes de se tornar famoso, o que era bom para seu desenvolvimento cultural, já que estava atrasado na escola.

Em vinte e um de Janeiro de madrugada, chegávamos a São Borja, na divisa com o Rio Uruguai na província de Corrientes da Argentina, onde naquela noite realizaríamos um show no ginásio de esportes.

Às dez horas daquela manhã, eu e Regis saímos do hotel, seguindo até a casa de Michael, um garotinho de dez anos de idade, cantor evangélico com já três discos gravados, de quem éramos amigos da família antes dele nascer, por correspondência e telefonemas. Inclusive, seu pai Vander cedeu músicas para Regis gravar em seus três discos. Aquela data seria a primeira vez que nos encontraríamos pessoalmente.

Poucos minutos depois, acionávamos a campainha no portão de entrada de uma grande e bela residência, ali no centro da cidade.

Em poucos segundos, uma mulher acompanhada pelo menino nos atendeu:

— Bom dia! — cumprimentou-me ela estendendo a mão. — A paz do senhor esteja com vocês!

— Obrigado! — agradeci.

— Meu filho Michael! — apresentou seu filho.

— Como vai o gauchinho mais famoso dos pampas? — estendi-lhe a mão.

— Muito bem Willian! — confirmou ele virando-se à Regis. — Ti és Regis?

— Como sabe que sou Willian?

— Baah! — balançou os ombros, o gauchinho. — Já sabia que tu virias! Acompanhado por um guri semelhante a Regis, só podes ser vós.

O menininho gaucho falava de um jeito bonito, com sua voz arrastada, falando sempre na segunda pessoa.

— Isso mesmo! — virei-me à Regis, apresentando-o. — Regis, esta é dona Martha e este é o cantor Michael, de quem lhe falei.

— Muito prazer! — cumprimentou-os Regis. — Willian fala muito em vocês.

— Bem ou mal? — perguntou Martha.

— Só fala bem! Ele tem todos os discos de Michael.

— Nós já sabemos — confirmou o gauchinho. — Tu farás show hoje à noite aqui em São Borja?

— Se Deus quiser! — confirmou Regis.

— Entrem pra tomar café conosco — convidou Martha.

Entramos naquela linda casa, daquele amiguinho que tanto almejava conhecer.

Ali, em conversas agradáveis permanecemos até o meio dia. Depois, embora mãe e filho insistissem para que almoçássemos com eles, saímos de volta ao hotel; porém, na porta de saída Regis convidou:

— Michael, por que você não vem com a gente pra conhecer nosso ônibus?

— Deixe-me ir com eles, mamãe! Eu volto à tarde. Hoje não terás à aula mesmo.

— Você vai atrapalhar. Eles têm que se preparar para o trabalho desta noite.

— Deixe-o vir com a gente dona Martha — pedi. — Ele não nos atrapalhará em nada! Ao contrário, será uma alegria.

— Está bem! Pode ir. Mas tenha cuidado, meu filho! Nada de artes!

— Que isso! — aleguei. — Michael é um bom menino.

— Como você sabe?

— Tenho plena convicção!

Andando a pé seguimos de volta ao hotel, aonde chegamos rápido, apanhamos a chave e descemos até o ônibus.

— Tu não estudas? — perguntou Michael a Regis.

— Claro! Todos precisam estudar! Só que não posso ir à escola, então tenho um professor que viaja conosco.

— Baah! Tu não vais à escola, a escola vem a ti! — riu Michael.

— Mais ou menos!

— Deve ser mais divertido do que ir à escola.

— É nada! — negou Regis, depois prosseguiu em voz baixa. — Meu professor é super chato.

— Todos eles são! — riu o outro menino. — Em que ano tu estás?

— Vou cursar a quarta série. Estou muito atrasado. Perdi muito tempo de escola.

— Quando crescerdes, ti pretendes ter outra profissão além de serdes artista?

— Pra falar a verdade ainda não pensei nisso.

— Regis disse que não quer crescer — interferi. — Vai ser sempre criança!

— Isso é impossível! — riu Michael.

— Eu vou crescer! É natural. Vou ser moço, adulto e até velhinho se não morrer antes, é claro! Mas confesso que não tenho pressa e também não pretendo morrer tão cedo!

— Eu acho que sou culpado de Regis não querer crescer — aleguei.

— Por quê? — admirou-se Michael.

— É que eu vivo dizendo a ele que é mais divertido ser criança e que se eu pudesse, queria ainda ter oito anos hoje!

— Se tu tivesses oito anos hoje não serias empresário de Regis. Talvez nem o conhecesse.

— Isso é verdade! — admiti. — O que seria uma pena!

— Que nada! — negou Regis. — Talvez aí, eu e Willian seríamos uma dupla de cantores sertanejos.

— Ainda bem que você é otimista! — admiti. — Mas seria muito difícil, pois sou péssimo cantor!

— É só ti estudardes canto! — aconselhou Michael.

— Sou bem desafinado.

— É só estudar e ter vontade! — concluiu Regis.

Acho que eles acreditavam ser fácil. Não conseguia entender como eles, sendo tão crianças sabiam diferenciar semitonação de entonação, sustenido, timbre de voz, graves, agudos, tom musical e sei lá mais o que.

Apresentamos todas as dependências do ônibus para Michael, depois seguimos ao encontro aos demais no hotel e fomos juntos almoçar.

Após o almoço deitamos um pouco para descansar, pois a noite anterior teria sido muito curta para nós. O show em Erechim terminara quase meia noite e nós acabamos nos deitando no ônibus após a uma hora da manhã, enquanto o motorista nos levava para São Borja.

Tal ônibus, embora moderno e até confortável, não era a mesma coisa do que uma cama de hotel.

Já naquela manhã, pensando em visitar o gauchinho, levantamos muito cedo.

Regis, logo adormeceu, mas eu e Michael não conseguimos dormir; então nos levantamos e fomos dar um novo passeio a pé.

Enquanto caminhávamos pela Praça Getúlio Vargas, meu amiguinho gaúcho falava:

— Vosso ônibus é muito legal!

— É muito útil — concordei. — Antes a gente sofria muito viajando de carro e Kombi.

— És muito luxuoso e confortável.

— Não quero ser convencido, mas admito que sim.

— Baah! Tens tudo dentro dele! Até cozinha e televisão!

— Tem mais! Tem até telefone!

— Telefone? Iguais aos da casa da gente?

— Nem tanto! Na verdade é um rádio PX.

— O que faz... um radio PX?

— Interliga, por exemplo, o ônibus com a casa de Regis. Isso é muito bom, pois faz com que ele fale com os pais e seu irmão Tony a todo o tempo.

— Regis és um guri muito feliz! Não achas?

— Com certeza! E você não é feliz?

— Claro que sim! Sou muito feliz! Deus me deste um boa casa e uma boa família.

— Regis é um excelente garoto. É um desses amigos que a gente sente orgulho em ter.

— Tu gostas muito dele. Não é mesmo?

— É como se ele fosse meu filho.

— Mas ti não tendes filhos!

— Tenho! Regis!

— Ele também parece gostar muito de ti.

— Não tenho motivos pra duvidar!

— Isso é muito bom! — insinuou Michael, sério.

— Eu, embora só tenha conhecido você hoje, tenho orgulho em ser seu amigo também. Apesar da distância não permitir que a gente se encontre sempre, sei que você é semelhante à Regis, tem um coração cheio de amor pra dar. Tenho certeza que qualquer pessoa tem orgulho em ser seu amigo.

— Obrigado! Jamais me esquecerei de vós. Podes crer.

— Eu acredito!

Regis acordou às dezesseis horas e foi imediatamente tomar banho. Pouco depois, estava brincando em cima da cama com o amiguinho Michael e seus carrinhos de fricção, enquanto eu assistia, mesmo sem interesse, um filme pela televisão.

De repente, me distraí da televisão e passei a observar os dois meninos brincando inocentemente. Foi então, que depois de muito tempo, percebi o quanto Regis ainda era apenas uma criança inocente. Como eu estava sendo injusto, fazendo dele um adulto antes da hora. Era certo que no palco, ele tinha tanta responsabilidade, que se portava realmente como adulto, onde, nem eu e nem ninguém precisava ficar pegando em seu pé para ensiná-lo o que fazer durante as apresentações. Muito pelo contrário: geralmente era ele quem nos orientava no que seria feito e apenas pedia nossa opinião. Mas ali fora do palco, com outro menino quase de sua idade, ele se portava como uma criança meiga, que gostava de carinho e de brincar.

Como eu amava aquele menino e que pena que seus pais e seu irmãozinho Tony, estavam perdendo aquele convívio saudável. E que pena, que Regis também estava perdendo o convívio com eles.

Naquela hora, eu meditava o quanto é bonito ser uma criança artista, assim como Regis, ou Michael, ou Michael Jackson e tantos outros, mas foi ali também que pude saber o quanto o preço que tais crianças pagam por esta fama é alto. Elas pagam com a infância por esta fama.

E assim sendo, pouco depois, os dois precisaram parar de ser criança, pois a organização de um bom evento demanda tempo e responsabilidades. Os shows eram preparados por profissionais contratados na própria cidade de tal evento, mas para que não houvesse surpresas desagradáveis, como a má qualidade de som, iluminação ou outros empecilhos, Regis fazia questão em visitar o local, com tempo hábil para que fossem reparadas tais circunstâncias prejudiciais.

— Michael, por que você não se apresenta hoje à noite junto comigo? — perguntou-lhe Regis, já em cima do palco quase pronto.

— Ora Regis, primeiramente porque o show és vosso; e depois, minha apresentação é bem diferente de ti. Eu só canto músicas evangélicas.

— Isso é bom! — afirmou Regis. — O povo está precisando de evangelho. Você faz a primeira parte e eu faço à segunda.

— Mesmo que eu quisesse papai não deixaria! — negou Michael.

— Eu peço a ele!

— Uma coisa é diferente da outra. A maioria das pessoas que irão a vosso show, é católica e não gostam de músicas evangélicas.

— Não é verdade! Willian é católico e gosta de suas músicas! Eu também!

— Mas ti e Willian são diferentes.

— Por favor, Michael, vai com a gente — pediu Regis. — Você vai gostar, eu garanto!

— Nem papai e nem mamãe deixarão — negou Michael.

— Vamos lá, Willian?

— Vamos lá, aonde? — estranhei.

— Na casa de Michael!

Uma vez, o local do evento aprovado por meu exigente astro mirim, segui com eles até a casa do gauchinho, onde encontramos os demais familiares: a irmã Maysa, os irmãos Carlos Augusto e Jonathan e os pai, Martha e Vander. Após o ritual de apresentação e sermos convidados a entrar, Regis pediu:

— Senhor Vander, eu queria pedir ao senhor pra deixar Michael se apresentar em meu show hoje à noite.

— Ainda bem que só querias pedir — alegou Vander, sério.

— Como assim? Eu ainda quero!

— Podem tirar essa ideia da cabeça!

— Por que papai?

— Michael, o show dele não é de música evangélica. Tu sabes disso!

— E o que tem isso? — insistiu Regis. — Michael cantará músicas de igreja, depois eu faço minha apresentação.

— Acha que posso permitir? Pra ouvir criticas!?

— Ninguém vai criticar nada! — negou sério, Regis. — Quem assiste meus shows são meus amigos! E quem é meu amigo é amigo de Michael!

— Muito boa vossa intenção, garoto! — alegou Vander. — Mas as coisas não podem se misturar.

— Não vamos misturar as coisas, papai! — negou Michael.

— Quer dizer que tu queres ir, meu filho?

— Só se vós permitir-me papai!

— Por que não perguntes a Deus se Ele o permite!

— Ele já permitiu, senhor Vander! — riu Regis. — O povo precisa de evangelho!

— E o que tu achas Willian? — perguntou-me Vander.

— Acho que eles têm razão — aleguei. — O senhor sabe mais do que eu! Além do mais, Michael pode cantar as músicas que estão nos discos de Regis.

— Pra isso precisamos reunir os músicos.

— Meus músicos servem! — insistiu Regis.

— Sem ensaio? — perguntou Martha.

— É só dar o tom! Os músicos já conhecem as músicas que estão em meus discos.

— Já que pareço vencido, tudo bem! — concordou Vander. — Mas ti só cantarás as músicas que estão nos discos de Regis!

— Obrigado papai! — agradeceu Michael abraçando o pai.


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Notas finais do capítulo

Devido questionamento de leitores, criei uma versão desta estória com a personagem Regis dois anos mais velho do que aparece nesta. Caso alguém queira ler a esta nova versão, não será postada aqui, mas avisando-me nos comentários, posso enviar em PDF por e-mail.



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