O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 2
O início de uma amizade




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Apesar de ter dito que terminaria o serviço até o almoço, houve atraso e precisamos retornar no período da tarde para conclusão do mesmo e foi aí, que ao descer do carro, na porta da loja encontrei um homem de uns trinta e cinco anos de idade.

— É você que é Willian? — Perguntou-me ele.

— Eu mesmo! Por quê?

— Meu filho me falou de você.

— Regis?

— É!

— Ah! O senhor é pai de Regis? Desculpe-me ter me aproximado dele, mas só estava admirado em vê-lo tocar.

— Ele me disse que você virá em minha casa à noite.

— De fato ele me convidou.

— E você aceitou?

— Desculpe-me senhor...

— Ele não tem nem sete anos de idade!

— Não tenho má intenção com o seu filho!

— Não tem má intenção, mas tem algum interesse! Qual?

— Nenhum! Gosto de crianças! Principalmente quando se tem dom musical... Pra mim é assim algo Divino. Acabamos nos tornando amigos... Sei que é esquisito. Não se aconselha criança, de repente ficar amigo de um adulto...

— E você sabe disso, mas nem se importou?

— Já pedi desculpas — atrapalhei-me. — Já estamos indo embora e Regis jamais nos verá.

— Está tudo bem! Creio que a culpa é mais dele do que sua. Meu filho é muito inocente e se Hitler aparecesse aqui acabaria ficando amigo dele.

— Que comparação! — Espantei-me. — Sou parecido a tal nazista?

— Regis me falou muito bem de você e seu parceiro de trabalho.

— Regis adora música!

— Só pensa nisso! A vida dele é falar que vai ser artista quando crescer.

— Por que o senhor não o deixa estudar violão em uma escola?

— Uma escola já é difícil de manter! Imagine duas!

— Como assim? Ele não estuda em escola estadual?

— Estuda! Mas o material não é estadual! O uniforme também não! E é caro!

— O senhor tem razão. Mas... Não dá pra pagar uma escola de violão a ele?

— Não! Não dá! Bem que eu gostaria! Mas ganho pouco e a vida é cara.

— O senhor acha que ele gostaria de entrar numa escola de violão?

— Tudo o que é bom pra ele aprender a ser artista ele gosta.

— E o senhor quer que ele seja artista?

— Se é vocação dele, seria um orgulho!

— Aceita que eu pague a escola de violão?

— Qual a intenção?

— Nenhuma! Na verdade tenho uma grande intenção. Quero ser... amigo de Regis. Caso o senhor permita.

— Não posso aceitar. Escola é caro.

— Nem tanto! Escola de violão não é caro!

— Não acho justo! — Negou ele. — Você mal conhece meu filho.

— Posso ajudá-lo!

— Mais uma vez, por que tanto interesse por meu filho?

— Gosto de música! E de criança! Como já disse.

— Esse tal gosto de criança... Pode ser bravo!

— Senhor... Eu gosto de crianças! Amo-as... E respeito-as.

— Você toca violão?

— Não sei nada de violão. Gosto de escrever e compor canções. Só que escrevo letras, sem auxílio de violão. Quando criança, apoiado por meus irmãos que tinha cavaquinho, achava que gostava de viola. Comprei uma... Fazia barulho. O som era bonito... Som de viola é bonito por si, mas não consegui aprender nada, então acabei por vender e julgando ser mais fácil por ter menos cordas, comprei um violão. Fracasso também! Ainda tenho o violão... Mas não sai do guarda-roupa.

— Então resolveu escrever músicas?

— Não é bem assim! Eu escrevo desde criança. Desde que aprendi a escrever, já venho escrevendo pequenos contos. É natural que com o passar do tempo vou aprendendo mais. E no mais, só escrevo por distração. Não tenho nada publicado.

— Aí resolveu fazer amizade com crianças?

— Não é bem assim! — Neguei chateado. — Conheci Regis por acaso. Não vejo mal algum!

— Você tem filhos?

— Terei um dia! Acredito.

— O que pensaria se de repente um estranho dissesse, vou pagar um curso de violão para seu filho?

— Não sei! — Dei de ombros. — Analisaria a situação. Talvez o senhor tenha razão.

— Talvez!? — Riu o homem. — É estranho! Desculpe-me a franqueza, mas você pode ser um anjo... mas pode também ser um crápula!

— Ok! Já entendi o recado! Vou torcer por Regis.

Já ia me retirando para o trabalho. O homem continuou.

— Dizem que os filhos seguem os passos dos pais. Regis é o contrário de mim. Também não sei fazer nada! E você? Seguiu os passos de seus pais?

— Não! Meu pai gostava mesmo era de acordeom e relógio tipo cuco. Eu só entendo “male má” é de escrever.

— Por que você diz gostava?

— Não sei se continua gostando! O que sei é que ele nunca teve dinheiro pra comprar um pra poder tocar.

— E agora você acha que pode pagar um curso a um menino que nem conhece?

— Como não conheço? Eu conheço Regis!

— Desde quando?

— Ontem!

— Isso é conhecer? Se fosse alguém da sua família! Mas não é nada!

— Como não? Amizade não é nada?

— O mundo é cercado por crápulas, meu caro... E a criança é como uma flor indefesa, a qual se compra com uma bala.

— Tudo bem senhor... Novamente peço desculpas em ter conhecido Regis.

— Você é solteiro?

— Tenho dezenove anos!

— Tem namorada?

— Digamos que... atualmente não!

— Mora com seus pais?

— Não senhor! Meus pais moram longe! Moro sozinho.

— E quer ter amizade com um menino de sete anos?

— Não tenha medo! Não sou gay! Não sou estúpido de querer abusar de uma criança inocente.

— Na verdade você também é quase uma criança! Não acha que criou asa muito cedo, abandonando os pais?

— Nunca abandonaria meus pais! — Neguei bravo. — Amo-os e sempre os protegerei. Moro longe deles. Sai cedo de meu ninho e ainda sinto falta disso! Mas foi exatamente por ser pobre e a vida ser dura.

— Desculpe ser duro com você — riu de leve o homem. — Amo meu filho e o protejo também. Na verdade, como já disse, acredito que a culpa da amizade de vocês, seja mais dele do que sua.

— Culpa!

— Regis é um menino hiperativo... Fala bastante e faz amizade fácil. Mas ele não é bobo e sabe distinguir crápulas.

Continuei calado.

— Você pode ser amigo de meu filho. Se ele te escolheu... acredite, é porque você merece. Ele jamais faria amizade com o tal Hitler.

— Posso dar o curso de violão de presente por esta amizade? Ou acha que estou querendo comprá-lo?

— Suponhamos que eu aceite, ele comece a estudar e não aprenda…

— A gente pode tentar ajudá-lo. Mas obrigá-lo não! Só que eu acredito que ele vai aprender... e muito!

— Eu também acredito muito no potencial de meu filho!

— Ele quer ser artista! Façamos o necessário pra que ele seja artista.

— Você se prontifica a pagar essa escola pra ele?

— Sei que não é lá muito certo, mas gosto de crianças e gostaria de proporcionar essa ajuda.

— Não é um empréstimo! Eu não posso pagar você! Se assim fosse, ele já estaria nessa escola.

— Digamos que seja uma bolsa.

— Ser artista não é tão simples. Não basta aprender o violão.

— Não! Não é simples! Mas se não o ajudar, será mais difícil ainda.

— Disso eu sei! Acontece que dinheiro a gente não acha no lixo.

— Arranjo o dinheiro pra ele fazer um ano de curso. Depois veremos o que acontece. Quem sabe no futuro ele até grave um disco e fique famoso.

— Pra você parece tudo fácil! Regis nem é cantor! Só gosta de tocar violão.

— Já disse que não é fácil! Mas juntos daremos uma forcinha.

— E se for só fogo de paia?

— O que é isso? — Admirei.

— Já pôs fogo em uma palha de milho seca?

— Queima em um segundo...

— Isso! E se ele não ir a lugar nenhum?

— Pelo menos o senhor não poderá dizer que não tentou.

— Como você se prontifica a ajudar e sabe que não terá seu dinheiro de volta…

— Então aceita que eu pague um ano de curso de violão pra que Regis estude?

— Se você quer... O que eu tenho a perder? Já interroguei sua índole! Só volto a avisar que isto não é um empréstimo! Não posso pagar!

— Isso! Uma bolsa!

Naquela noite, como havia prometido fui à sua casa, onde ele me recebeu como se eu fosse um ente querido, que estava ausente a mais de ano; depois, resolveu ensaiar um pouco. Pela sua pouca idade, no violão, já sabia posições suficientes para tocar diversas músicas. Só não sabia solos e ponteados, mas tocava muito bem. Realmente era dono de um poderoso dom Divino.

Só então seu pai lhe contou sobre a escola de violão, o que o deixou exuberante e eu fiquei feliz por ter conquistado sua amizade, além de seus pais, Pedro e Odete e seu maninho caçula Tony, de três anos de idade.

Na manhã seguinte, passei em sua casa e juntamente com sua mãe fomos a uma escola de música, onde, com muito apoio de Marlene, a professorinha de seus vinte anos de idade, ele foi matriculado.

Em poucas aulas, Marlene foi percebendo o verdadeiro dom que o menino tinha. Com isto, já mais íntimo de toda a família, em um sábado de manhã fui com ele na escola de Marlene, que depois de pedir que fizesse alguns acordes, lhe questionou:

— Você não quer cantar um pouquinho pra eu ouvir? Só um pedacinho de qualquer música.

Ele ajeitou o violão no peito e cantou com sua vozinha ainda muito verde (de Fernando Mendes, Cadeira de Rodas).

Sentada na porta em sua cadeira de rodas ficava,

Seus olhos tão lindos sem ter alegria tão triste choravam

Mas quando eu passava a sua tristeza chegava ao fim,

Sua boca pequena no mesmo instante sorria pra mim

Aquela menina era a felicidade

Que eu tanto esperei, mas não tive a coragem.

E não te falei do meu grande amor

Agora por onde ela anda eu não sei.

Hoje eu vivo sofrendo e sem alegria

Não tive coragem bastante pra me decidir,

Aquela menina em sua cadeira de rodas,

Tudo eu daria pra ver novamente sorrir.

— Bonito, Regis! — elogiou-o Marlene, rindo. — Como você quer ser um artista, eu tenho uma amiga que dá aulas de canto. Acho que valeria a pena você fazer algumas aulas com ela.

— Estou ruim assim? — entristeceu-se ele.

— Não! — sorriu ela. — Você está lindo! Canta afinadinho e dentro do tom! Mas acho que algumas aulas de canto lhe ajudariam muito mais!

Eu estava encantado. Fora a primeira vez que ouvira meu jovem amiguinho cantando e percebi o quanto ele fazia com amor. Embora eu fosse um ignorante no assunto de música, dava para perceber o quanto ele tinha chance de se tornar um grande artista.

Seguindo o conselho de Marlene, procurei com Regis a outra professora de arte: Marisa, de vinte e dois anos, que por um preço bem acessível, daria duas aulas semanais de canto ao menino, as terças e sextas-feiras, enquanto as aulas de violão eram as quartas e sábados, sempre no horário das nove até às dez horas da manhã.

No primeiro dia desta nova aula, pedi autorização à professora para acompanhá-los.

Já em sua sala especial de treinamento, com diversos aparelhos esquisitos, inclusive um de som, com microfones e outro parecido com equipamento de audiometria, enquanto eu permanecia em uma cadeira estofada à certa distância, ela sentou-se em outra de frente ao menino e pediu:

— Preciso conhecer sua voz. Cante um pedacinho pra que eu te ouça.

— Qual música?

— Qualquer uma — pensou um pouco e emendou. — Qualquer uma não! Cante o Hino Nacional Brasileiro.

— Cadê o violão?

— Não quero ouvir o violão! — protestou ela. — Quero ouvir sua voz! E quero que cante em um ritmo lendo, imaginando cada uma das palavras.

E assim, como ela pediu o pequeno Regis levantou-se e com a mão direita sobre o coração, começou a cantar em um tom alto, porém pausadamente:

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da liberdade em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da pátria nesse instante.

Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!

Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve!

— Esta bem! — interrompeu Marisa. — Já basta.

Tomou-o pelas mãos sentando-o à sua frente e prosseguiu:

— Parabéns duas vezes!

— Duas!? — riu o menino. — Obrigado! Mas... por que duas?

— Primeiro por ter cantado muito bem! Medindo cada letra de cada palavra. Sua dicção é perfeita, a gente entende perfeitamente cada palavra que você canta! E canta com o coração... com a alma! Você canta porque gosta, porque tem uma dádiva aqui... — colocou o dedo indicador no peito do menino e elevou-o até sua testa. —... e aqui!

— E qual meu segundo parabéns? — exigiu Regis.

— Tão pequeno e sabe a letra do “Hino Nacional de seu país”! A maioria dos adultos não sabe nem o primeiro refrão.

— A gente canta o hino nacional toda semana na escola.

— Agora faremos alguns exercícios — insinuou ela tomando dois microfones, um para ela e outro para o menino e ligando seus aparelhos de som e audiometria. — Vamos começar aprendendo a respirar corretamente. Quero que você assopre aqui no microfone, devagar e pelo tempo que conseguir, sem parar.

Assim o menino fez, durante ao menos trinta segundos.

— Muito bem! Agora quero que também devagar, somente pela boca inspire o ar o máximo que conseguir e depois expire-o só pelo nariz.

Regis obedeceu em silêncio, o que durou outros trinta segundos.

— Agora o inverso, inspire pelo nariz e expire pela boca.

Depois de uma sessão de pelo menos cinco minutos de inspira e expira, que eu acabava imitando-o em meu canto, ela, mexendo nas aparelhagens, pediu-lhe:

— Agora você vai imitar-me.

E começou com o microfone próximo à boca:

— Oh, o...o...o...owh.

— Oh, o...o...o...owh.

Quase um minuto depois, mudou para:

— Uh, u...u...u...uwh.

Depois:

— Oh, oh, oh, oh, owh…

E assim foi repetindo as mesmas sequências em diferentes tons e às vezes, movimentando a cabeça. Mudando depois para, na mesma cadência, assoprando o microfone em sopros curtos, lentos... rápidos...

©©©

O tempo se passou muito rápido e nossa amizade cresceu bastante; já era considerado como um membro de sua família. Como se Tony e Regis fossem meus irmãozinhos; o que era muito bom para mim, pois meus verdadeiros cinco irmãozinhos viviam por causa de certo destino, muito distantes.

Dois meses depois de tê-lo conhecido, consegui conquistar a confiança de seu pai e então, às vezes nos finais de semana, Regis resolvia por si mesmo dormir em meu apartamento no centro da cidade. Com isto, aproveitando este convívio, o instruía sempre aos cuidados que ele deveria ter com sua voz, já que ela seria instrumento de sua almejada profissão, muito embora, naquela época cantor não era considerado uma verdadeira profissão.

Quando ele ia beber água, o que já sabia fazer durante muitas vezes ao dia, eu lhe exigia que a bebesse em pequenos goles, como estivesse degustando-a e que jamais fosse gelada. Deveria se alimentar sempre de alimentos saudáveis, em pequenas quantidades, dando preferência às frutas e legumes, também várias vezes ao dia, mastigando muito bem, o que, aliás, o ajudava a fazer exercícios faciais. Evitar ao máximo pigarrear ou tossir; quando sentisse essa necessidade deveria procurar tomar água natural. Sempre fazer gargarejo, utilizando água morna e pequena pitada de sal. Procurar se espreguiçar e bocejar ao acordar pela manhã. Evitar gritar, principalmente na escola, tentando competir com outros colegas, já que crianças só sabem falar gritando. Fazer bastante exercício com os ombros e boca, durante o banho embaixo da água, que deveria ser preferencialmente morna (jamais banho quente), se banho frio melhor ainda, mesmo no inverno.

Ainda, mesmo estando em meu apartamento, nunca deixava de ensaiar; a princípio utilizando meu violão, mas depois, como o seu era de tamanho menor, mais apropriado à sua idade, ele sempre o carregava consigo e então, convivendo mais durante seus ensaios e embora percebesse naquele menino um verdadeiro gênio, percebi que as aulas de canto, lhe estava sendo muito útil, para que aprendesse realmente a utilizar suas cordas vocais, mesmo porque, sendo ele ainda muito criança, seria preciso ter cuidado com sua laringe, que certamente estava em desenvolvimento.


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Notas finais do capítulo

Ainda estamos no início. Será que vou conseguir conquistar você com este drama/amizade?



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