O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 13
A luta pelo disco.




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Já se passara um ano desde que o conheci. Regis agora já executava com precisão qualquer tipo de música em seu violão, inclusive se exibindo com belíssimos acordes e ponteados, além de cantar muito bonito, com uma facilidade incrível e perfeita entonação na voz; não apenas em casa para nós, mas também em emissoras de rádio, festas de amigos, alguns shows de artistas famosos, onde ele fazia a primeira parte e algumas disputas de calouros. Bastava que ele ouvisse a música apenas uma vez e ele já gravava em sua memória privilegiada, depois a executava com tamanha precisão que eu, talvez por minha fiel admiração a ele, julgava que cantava melhor do que o artista original.

Apesar de gostar de todos os locais no qual ele sempre se apresentava, o local que realmente o cativou e se destacou, foi algumas apresentações no “Gran Circus Real Americano”, que estivera instalado em São João no mês de Abril do ano setenta e nove.

Agora já se tornara dono de três troféus, oito medalhas e quatro diplomas de honra ao mérito, além de uma viola, que foi premio de um festival de música sertaneja raiz na cidade de Americana, estado de São Paulo.

Após este tempo, ele decidiu por si próprio que pararia de estudar violão em escola. Julgava não mais ser necessário, porque como gostava de tocar de ouvido, o resto aprenderia por si mesmo; mas continuaria fazendo aula de canto, que era excelente, principalmente para que, com controle de quem sabe, não prejudicasse suas cordas vocais, infantil e sensível.

Em nossa cidade todos conheciam o pequeno Regis de Assis Moura. Ele participava quase todos os domingos em programa de auditório, na rádio Piratininga de nossa cidade, ou rádio Alvorada de Poços de Caldas e rádio Cidade, de Vargem Grande do Sul.

Mas isso não bastava para ele. Queria ser conhecido no Brasil inteiro e então, em dezesseis de Junho de setenta e nove, sábado à tarde, estando em meu apartamento ele me perguntou:

— Quando eu poderei gravar um disco?

— Calma, menino! Você ainda é muito novo pra pensar nisso.

— Pensar!... Eu já penso há muitos anos!

— Sua voz ainda é muito infantil!

— Tantas crianças gravam com menos de oito anos!

— Pode até ser — concordei. — Mas não é lá muito bom! O certo é esperar afirmar mais a voz.

— Isso só acontece depois dos quatorze anos, Willian! Eu não vou esperar tudo isso!

— Podíamos esperar pelo menos até os doze.

— Tá louco? Ainda faltam quatro anos!

— No mínimo dez. Não!?

— Tem certeza? — desanimou ele.

— Esperar sua voz ficar mais estável.

— Acha que canto mal? — desanimou ele.

— Está certo. Creio que poderemos tentar... alguma coisa.

— Poderíamos ir até São Paulo conversar em alguma gravadora.

— Você tem dinheiro? — perguntei-lhe.

Ouvindo aquilo ele ficou triste e me perguntou:

— Dinheiro pra que?

— Pagar a gravação.

— E precisa?

— Claro que precisa! Sem dinheiro os produtores não querem nem nos ver.

— E é muito dinheiro?

— Como posso saber? Nunca fui artista!

— Com dinheiro nada feito! — entristeceu-se ele. — Nunca poderei pagar uma gravação. Por que tem que existir pobreza? Todos deveriam ser ricos. Você não acha?

— Se todos fossem ricos a gente passaria fome.

— Como assim?

— Quem plantaria arroz e feijão pra comprarmos?

Ele permaneceu quieto por alguns segundos, depois triste insinuou:

— Será que o homem da gravadora não grava a gente, fiado?

— Infelizmente não.

— Dinheiro é uma droga! Se não fosse ele eu poderia ser artista.

— O dinheiro não faz o artista, Regis. Você já é um artista.

— Artista sem disco é o mesmo que boiadeiro sem cavalo.

— Onde você aprendeu isto?

— No filme “O menino da porteira”.

— Não desanime tão cedo, amigão! Semana que vem vou tirar um dia de folga no trabalho e iremos à São Paulo conversar em uma gravadora.

— Sem dinheiro?

— Pra passagem eu tenho! Pode deixar.

— E você vai me levar junto?

— É claro! Afinal o boiadeiro sem cavalo... aliás, o artista sem disco é você.

— Papai irá também?

— Se ele quiser e a firma permitir será bom.

— Obrigado Willian! Você é um amigão!

— E você é um amiguinho muito bom! Você me dá orgulho. Sabia?

— Se Deus ajudar que eu seja um artista com disco você será meu empresário! Tudo bem?

— E vou ganhar um disco autografado.

— Um monte deles!

Apanhei um lápis entregando a ele.

— Morda-o entre os dentes — pedi-lhe.

— Pra quê?

— Artista tem que exercitar a voz.

— Mais do que eu já faço!? Ovo cru! Gargarejo com água e sal! Fazer careta cantando diante do espelho! Mastigar mil vezes a comida! Não beber refrigerante...

— Quer ser artista? — brinquei. — Tem sacrifícios! Mas não lhe dou ovo cru!

— Mamãe dá! — pensou um pouco e concluiu: — Ieco!

— Não é bom tomar ovo cru todos os dias!

— Ela só me dá de vez em quando. Mas eu não quero nunca!

— Gostaria de ter uma filmadora, só pra lhe filmar cantando, fazendo careta diante do espelho.

— Pra quê?

— Montar um arquivo confidencial!

— Que que é isso? — especulou fazendo careta.

— Meras recordações! Morda o lápis entre os dentes.

— O que vou fazer agora?

Apanhei um papel que tinha guardado na escrivaninha da máquina de escrever e lhe entreguei dizendo:

— Morda o lápis e leia isto em voz alta.

— Willian, eu male má sei ler! Estou no segundo ano! Lembra?

— Vai devagar e decore.

O gato cruel... cravou as garras... no cangote... do camundongo... que comia crosta de cará... na cumbuca quebrada. O cão que cochilava... acordou com o conflito e correu com o gato.

Depois de algumas tentativas e muitos erros, acabou por decorar o pequeno texto e falava engraçado com o lápis por entre os dentes.

— Realmente eu precisava ter uma filmadora — aleguei.

— Eu não deixaria!

— Até você iria gostar de ver tal vídeo!

E lhe entreguei outro.

— Acho que nem você consegue ler isto! — reclamou ele.

Então o li para ele.

O prestidigitador prestativo e prestatário está prestes a prestar a prestidigitação prodigiosa e prestigiosa.

Mas confesso que me embaralhei mesmo e ele riu. Então o ajudei nas palavras, que saiam engraçadas. Por fim me perguntou:

— Pra que isso, Willian?

— Exercitar os músculos da face e a dicção das palavras.

— Ãh!

— Dicção! Falar corretamente!

— Tenho oito anos! Lembra?

— Quer mais?

— O rato Regis roeu a roupa do rei de Roma — emendou-o rindo exageradamente.

— Rato Regis! Essa é boa. Mas é fácil. Quer outra difícil?

— São engraçadas, mas agora chega.

— Legal! Mas não se esqueça de adquirir o hábito de ler muito e de preferência em voz alta. Ler sempre um bom livro, além de fazer você exercitar a voz, lhe trará muita cultura e conhecimento.

— Por que quer falar difícil comigo?

— Como assim? — estranhei.

— Não sei o que é hábito, nem cultura e nem adqu...

Fui até a cozinha, quebrei um ovo, despejando apenas a clara em um prato e bati com um garfo até atingir ponto de suspiro, acrescentei a gema e bati novamente até formar uma cor amarela homogenia, adicionei apenas açúcar, mexi bem e lhe entreguei.

— Tome isto!

— O que é isso? — perguntou-me fazendo careta.

— Ovo cru! — brinquei.

— Não quero!

— Tome! Fará bem à sua voz.

— Você disse que não me dá ovo cru!

— Este é diferente. Tome.

Experimentou com má vontade, depois, achando de gosto agradável passou a tomar com certo prazer.

— Gostou? — brinquei.

— Melhor que o da mamãe!

— É gemada! Quando a mamãe quiser lhe dar ovo cru, peça pra fazer gemada que tem o mesmo valor nutritivo e não embrulha seu estômago. Se preferir pode acrescentar um pouco de canela em pó.

©©©

Na quinta-feira seguinte, dia vinte e um, acompanhado por seu pai, seguimos para São Paulo, à procura de um produtor musical para nosso artista sem disco. Conosco levamos duas fitas cassetes gravadas e o violão. Primeiramente fomos à Continental Disco. Ao chegarmos à portaria e cumprimentar o segurança, lhe pedi:

— Gostaríamos de falar com um dos produtores musicais.

— Agora é impossível! — negou tal homem, todo vestido em preto. — Não tem nenhum deles no prédio.

— E quando a gente poderá encontrá-los?

— Não se sabe! Às vezes aparece alguém ainda hoje. Às vezes só na semana que vem.

— É?! O que se pode fazer?

— Mas tem uma coisa — alegou o segurança. — Se vocês estão pretendendo gravação, acho que não vai adiantar, pois aqui está tudo parado. Mesmo os artistas já consagrados não estão gravando nada por enquanto.

— Tudo bem! — concordei, embora com certo desapontamento. — De qualquer forma a gente agradece muito.

Seguimos nosso caminho de andarilho, em busca de outra gravadora, que talvez se interessasse em gravar uma criança de voz ainda muito verde e que não tinha nenhum sucesso.

Naquela quinta-feira, conseguimos visitar outras quatro gravadoras, sendo que em nenhuma delas tivemos palavras de esperança. Uma pediu para que Regis cantasse para o produtor verificar, então pediu para que deixássemos uma fita e voltássemos em uma semana; outra disse que agora não era hora de investir em discos novos; outra nos pediu duzentos mil cruzeiros, o que assustou Regis e a mim também; a última nem nos atendeu.

Passamos a noite na casa de minha tia, na zona sul da capital e na manhã seguinte, fomos a uma gravadora denominada etiqueta, ou seja: é só uma intermediária entre o artista e os produtores musicais. Esta, de propriedade de um de meus tios, nos recebeu muito bem, pediu para que Regis cantasse e se mostrou muito surpreso.

— Se souber trabalhar com este menino ele vai ser um grande artista — confirmou meu tio.

— É! Mas o souber que estamos precisando agora é o disco — aleguei.

— Eu sei disso! — Concordou ele. — Mas pra isso precisa de dinheiro. O que sei que vocês não têm. Eu sinceramente também não tenho.

— Não dá pra se dar um jeito, tio? Quanto o senhor acha que se gasta pra fazer um disco do menino?

— O estilo dele não compensa fazer um compacto (Disco em vinil com apenas duas faixas de músicas, uma de cada lado da mídia). Tem que ser um long-play (Normalmente com doze faixas gravadas: seis de cada lado da mídia), mesmo que seja de oito ou dez faixas. Pra isto se gasta pelo menos uns cem mil cruzeiros.

E quem disse a ele que queríamos fazer um compacto? Falar aquilo me parecia até uma ofensa. Acho que compacto, que só cabe duas ou quatro músicas, serve bem para algum artista distribuir gratuitamente, a título de divulgação.

— É muito dinheiro pra nós — desanimei.

— Pra mim também! Sinceramente eu não tenho condições de investir nesse menino. Se pudesse eu faria e teria retorno rápido. Mas a gente também é pobre.

— Ontem teve uma gravadora que nos pediu duzentos mil.

— Se não fosse o dinheiro tudo seria mais fácil — protestou Regis, desanimado.

— Pode ser verdade, garoto — concordou meu tio. — Mas infelizmente, hoje em dia tudo o que manda, nem é o dinheiro, mas sim o petróleo. Antigamente, só se gravava se fosse bom mesmo. Naquele tempo a gravadora investia sozinha no artista. Por isso ela só queria se fosse bom mesmo. Agora não, o petróleo subiu de uma tal maneira que não se dá mais pra uma gravadora investir sozinha. O resultado disso é que às vezes quem é bom não tem dinheiro pra investir e quem tem dinheiro nem sabe cantar. Com certeza, no futuro vai ter um monte de porcaria gravada e os que são bons de fato vão cantar só nos botequins.

Nem com meu tio conseguimos gravar, mas tinha uma explicação: a gravadora dele depende de outras e ele é pobre igual a nós. Porém, ele nos enviou com recomendações, à potente WSA.


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