O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 12
O violão


Notas iniciais do capítulo

A partir deste capítulo a narrativa volta a ser de "Willian Gustavo"



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Segunda-feira, dia quatorze de Maio, por estar quase no final de minhas longas férias, retornei da casa de meus pais, onde passara os últimos quarenta dias. Como saíra de Penápolis de ônibus, na noite de domingo, cheguei a São João às nove e meia da manhã, indo direto para o apartamento onde morava na Rua Benjamim Constant, no centro, a quinhentos metros da estação rodoviária.

Minha viagem a passeio tinha sido ótima e suficiente para matar as saudades que sentia de meus familiares, demais parentes e amigos distantes, além de ser útil para descansar de meu emprego na Telesp, onde cumpria uma tarefa de viagens diária pela empresa, cinco dias por semana.

Mas agora estava de volta e confesso, sentia mesmo saudades de meu apartamento modesto, com pequena cozinha, grande sala de estar e jantar no mesmo ambiente, único dormitório grande, pequena lavanderia e só um banheiro. E claro, saudades também de minha belíssima cidade adotiva, meu trabalho um pouco cansativo, porém divertido e principalmente de meu irmãozinho adotivo. Isso mesmo gostava de Regis e o admirava muito. Para mim era como se ele fosse meu irmão caçula, adotivo.

Naquela mesma tarde, fui até a saída de sua escola no bairro do Rosário, localizada a menos de mil metros de meu apartamento e permaneci encostado na parede da igreja do Rosário, aguardando ansioso, a hora de sua saída.

Às dezesseis horas e trinta minutos, um aglomerado de meninos e meninas deixou a escola, seguindo tal qual enxame de abelhas, em busca de flores para colherem pólen. Mas neste caso, seguiam em retorno para suas casas e aos poucos o bando se dispersava.

Regis, como todos, saiu e seguiu no meio de todos, atravessando pela frente da igreja e aos poucos acabou seguindo apenas com uma coleguinha (Era Diana, mas eu não a conhecia), atravessando à Praça do Rosário e eu os acompanhei, não mais do que cinco metros de distância.

Conforme atravessava a praça sem olhar para trás, resolvi chamar seu nome. Ele sentiu um pequeno susto, virou-se e a me ver, voltou correndo, quase atropelando outro de seus colegas e pulando sobre meu pescoço, disse admirado:

— Willian! Que bom que você voltou!

— Estava com saudades — abracei-o.

Cinco segundos depois o deixei e ele me apresentou:

— Minha amiguinha Diana!

— Oi! — disse-me ela sorridente. — Regis me fala de você!

— É meu irmãozinho caçula — afirmei.

Recomeçamos a caminhar.

— Ele sempre me diz.

— Tenho tantas novidades! — disse Regis. — Mas só vou contar em casa. Você vai até lá. Não?

— Se você me convidar! — concordei.

— Lógico que vai! — exclamou ele. — Você se divertiu muito em Penápolis?

— Passeei muito. Matei a saudade de meus pais, meus irmãos, meus avôs, meus tios, amigos… fui visitar as cachoeiras do salto...

— Penápolis é cidade boa? — Perguntou Diana.

— Minha cidade preferida! — afirmei. — É muito bonita e onde nasci. Mas São João também é ótima! De clima saudável e beleza inigualável!

Em poucos minutos, Diana se despediu, pois chegara à sua casa situada no bairro São Lázaro. Eu e Regis continuamos, onde passamos defronte ao terreno vazio.

— Aqui esteve montado o circo — disse-me ele.

— Um circo em minha ausência? E você veio aqui?

— Lógico! Em casa eu te conto!

— Por que tanto mistério?

Ele apenas sorriu e continuamos.

Chegando à sua casa, cumprimentei dona Odete e abracei a Tony, irmão real de Regis, a quem eu também admirava por sua simplicidade e amizade sincera. Ele tinha apenas quatro anos de idade.

Estando então em sua sala de estar, Regis, muito feliz me revelou sua surpresa:

— Apesar de você não estar presente, realizei minha estreia de artista.

— Verdade!? — surpreendi mesmo. — Onde?

— No circo! — disse ele em tom forte.

— Você cantou lá?

— Várias vezes! Dona Sandra me fez até um uniforme de cantor!

Correu à seu quarto e em menos de trinta segundos me apresentou seu uniforme.

— Que lindo! Depois você o coloque pra eu ver?

— Vou vestir agora! — entusiasmou, se despindo ali mesmo na sala.

— Como você se saiu na estreia? — questionei-lhe, enquanto se vestia.

— Muito bem! As pessoas gostaram e eu cantava duas músicas por noite.

— Quer dizer que eu perdi essa?

— Mas tive problemas — disse-me em tom triste.

— O que aconteceu?

Ele começou a chorar.

— Papai vendeu meu violão…

— Seu violão!? — estranhei muito.

Quase disse: “Só se você matou alguém”, mas não sabendo os fatos reais, resolvi me conter.

— Não quero contar mais! — disse ele ainda chorando.

— Descanse um pouco — pedi. — Depois você me conta.

Ele acenou que não e concluiu:

— Mamãe conta. Eu fico no quarto.

Foi decisão certa dele. Estando já de calça do uniforme de artista, porém sem camisa, seguiu para o quarto com Tony e dona Odete se sentou comigo na sala, contando todos os detalhes, dos últimos trinta e cinco dias na vida de seu filho inocente.

Conforme ela me contava, eu sentia lágrimas e também sentia culpado, por não estar presente neste período, que achava ele mais precisar de uma mão verdadeiramente amiga. Tinha certeza de que, se eu estivesse presente nada daquilo teria acontecido, principalmente porque, ao contrário de um pai desleixado, eu o ajudaria a escolher suas músicas, que foi o estopim de todo este trauma.

— Vou falar com o senhor Pedro — decidi. — Onde se viu vender o violão do filho! Isso é malvadeza pura! Está certo que não foi o mais grave na vida do menino, mas é o que se tem solução fácil.

— Pedro é muito turrão nisso! — concordou dona Odete.

— E Regis? Não sente nenhum trauma?

— Até que… talvez pela idade… Não percebe a gravidade do que lhe aconteceu.

— Felizmente.

— Mas ele vive triste. Realmente foi traumática a estreia que ele tanto almejara. Acho que até sua falta foi ruim, pois ele sonhava com essa estreia junto com você.

— Isso me dá orgulho. Se eu soubesse do circo, acho que teria voltado antes.

— Pra ele você é mais do eu um amigo. É um parceiro.

Meia hora depois, na saída da rua encontrei o senhor Pedro e após cumprimentá-lo perguntei-lhe:

— E o violão de Regis?

— Você já deve estar sabendo que eu vendi. E nem adianta me criticar porque já sei que não deveria; mas vendi e não tem outro jeito a não ser comprar outro.

— Regis gostava daquele violão mais do que…

— Mais do que de mim! — interrompeu-me o senhor Pedro.

— Nem tanto — neguei. — Mas diria que chegava perto!

Ele enfiou a mão no bolso, pegou uma quantia de dinheiro e me entregou dizendo:

— É o dinheiro do violão. Compre outro!

— Outro não é igual! — neguei.

— O que posso fazer?

— Desfazer a venda!

— Não existe isso! — negou ele, rindo com ironia.

— Quem sabe, se a gente conversar.

— Vai lá! Ele se chama Marcio e trabalha comigo. Mora perto da Lamesa — Fábrica de fios de cobre para eletricidade.

— O senhor vem comigo.

— Nem pensar!

— Sabia que seu filho passou por situação traumática?

— Uma surra não traumatiza ninguém!

— Não foi no senhor!

— Não preciso de criticas suas de como devo tratar meu filho!

— A recuperação do violão pode ser fator relevante na solução de tal problema, evitando sequelas.

— E você precisa ter cuidado nas músicas que manda meu filho cantar. Pra não deixar sequelas também!

— Aquela tal música que o senhor se refere, Regis só ouviu meu amigo José Fernandes cantando uma vez. Ninguém pediu pra ele cantar! Nem sei como ele decorou a letra.

— Tome cuidado.

— Mas não sei por que o senhor fez tanto drama. A música é bonita e não fala nada de mais.

— Não, né! — riu ele com ironia. — Beijar a sua boca... Deixar o meu suor... Nunca fiz greve de cama... Tudo isto é inocente para um homem de oito anos de idade!

— Regis decorou esta canção ouvindo apenas uma vez! — insinuei com entusiasmo. — Ele é um gênio!

— Cuidado como você trata meu gênio! — resmungou o senhor Pedro. — Vou pegar o endereço de Marcio e você soluciona isso pra mim.

— O que levou o senhor a duvidar de seu filho e acreditar em estranhos?

— O quê?

— O que levou o senhor a surrar seu filho, sem piedade, como se ele fosse um cachorrinho vira latas?

— Já disse que não quero receber indiretas, vinda principalmente de você!

— Já pediu perdão a ele?

— Você tá querendo que eu lhe proíba de ter amizade com meu filho?

— Não! Quero continuar amigo de seu filho e do senhor também!

— Então não me venha com lição de moral!

— Jura que o senhor nem se arrependeu de tê-lo espancado inocentemente?

Ele não respondeu.

Meia hora depois, estava na casa do homem que comprou o violão de Regis. Bati palmas e ele mesmo me atendeu no portão:

— Boa noite! — cumprimentei-o. — Senhor Marcio?

— Sou eu!

— O senhor comprou um violão do senhor Pedro, que trabalha com o senhor. Certo?

— Comprei! — admirou-se ele. — Alguma coisa errada?

— Errada não! A única coisa é que ele se precipitou. Não poderia ter vendido aquele violão.

— Como?

— O violão era de estimação do filho dele.

— Como ele pode ter vendido?

— Na verdade, eu gostaria de negociar este violão de volta.

— Ah não! — negou o homem. — Meu menininho adorou o violão. Ele é de tamanho exato pro meu filho.

— O senhor compra outro na loja.

— Compre você outro na loja!

— Não é a mesma coisa. Seu filho ainda não pegou amor ao violão. Regis já! Ele tem esse violão faz mais de dois anos!

— Olha meu rapaz, sem querer te ofender; não vou devolver não!

— O senhor pagou trezentos nele. Foi?

— Exatamente!

— Lhe dou quatrocentos!

— Este violão está muito novo e com quatrocentos eu não compro outro igual.

— Pode ser. Dou quinhentos! Tenho certeza que com quinhentos o senhor compra um bom violão.

— Prefiro ficar com este. Meu menino gostou.

— Vou lhe confessar algo. Regis tem só oito anos de idade e acabou de passar por situação traumática. Esse violão pode ser útil na recuperação real do menino.

— Ele sabe tocar? — perguntou Marcio, com jeito de compreensão.

— Muito bem!

— Você me dá os quinhentos?

Acenei que sim.

Ele entrou na casa, voltando a seguir com o violão guardado na capa e me entregou dizendo:

— Como ele será útil, eu concordo em devolver.

Entreguei-lhe o dinheiro, ele me devolveu o violão e ainda me disse:

— Se você preferir, eu lhe devolvo o dinheiro e você deixa o violão.

— Agora ele já é meu novamente. Não te vendo nem por mil!

— Seu?! — estranhou o homem.

— Modo de dizer — aleguei rindo. — Este violão vai voltar pras mãos do seu verdadeiro dono ainda hoje. Pode ficar tranquilo que o senhor está colaborando por uma boa causa. Amanhã o senhor pode perguntar ao senhor Pedro, pai de Regis.

Sete e meia daquela noite, com muita ansiedade, estava novamente na casa da família Moura. Chamei no portão e fui atendido por dona Odete, que encantada, me mandou entrar e na sala de estar o senhor Pedro perguntou:

— Conseguiu fácil?

Balancei os ombros.

— Pode levar pra ele — disse o senhor Pedro, até contente. — Ele está deitado.

— Faço questão que o senhor seja o portador desta benevolência.

Seguimos os três ao quarto de Regis. Ele, novamente de short, ainda sem camisa, estava deitado de bruços no chão, fazendo sua tarefa escolar. Tony estava brincando a seu lado. Quando eles perceberam a presença de pessoas, levantou os olhos e ao nos ver com o violão, bradou muito contente num pulo incrível:

— Meu violão!

Este gritinho de felicidade me fez cair lágrimas dos olhos.

Acho que aquilo foi o suficiente para apagar todas as lembranças traumáticas, que poderiam estar impregnadas na memória daquele menino incrível, de apenas oito anos de idade.


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Notas finais do capítulo

Que bom! Poder trazer de volta a felicidade com algo tão simples:- Apenas um violão.



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