Doutrinas Fatais escrita por J R Mamede, Klariza, Celso Innocente, Pedro Henrique Sales, Jean Pereira Lourenço


Capítulo 4
Infância ultrajada


Notas iniciais do capítulo

Em uma época em que o estatuto da criança e do adolescente não estava em pauta o trabalho infantil era usado pelos empresários como forma de obter lucros maiores, devido os baixos salários com que as crianças percebiam.
O maior sofrimento dessas crianças porém, nem era devido tal trabalho precoce, que lhes roubava a infância, mas sim o cruel convívio com adultos de má índole que lhes roubava a inocência.



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— Ei menino! O que há?

— Ãh! — Espantei-me ao ouvir tal advertência.

— Você parece que tá no mundo do faz de contas!

— Está tudo bem!

Era o senhor Pedro quem me advertia. Ele, de pele escura (mas não negra) quase sessenta anos de idade, era o único adulto a trabalhar conosco ali na seção de classificação de garrafas, naquela fábrica, onde a faixa etária de seus funcionários era de dez a sessenta anos.

Eu terminava de classificar as últimas dezenas de garrafas de vidros, conservando as de boa qualidade e mandando as com defeito para o vidro reciclável que então retornaria ao forno para ser novamente derretido, como em círculo virtuoso.

Aquela manhã de verão do ano de um mil novecentos e setenta já havia chovido bastante de madrugada, às cinco horas da manhã, justo tal horário de irmos para o trabalho com nossos meio de transporte comum, a bicicleta e por isso mesmo muito dos funcionários adultos que trabalhavam na produção teriam faltado, fazendo com que nosso trabalho ali naquele setor se tornasse pouco. Por isso os quatro demais pré-adolescentes que trabalhavam conosco já haviam depositado sobre tal mesa de classificação as últimas unidades que saíam da estufa, portanto, sem trabalhos a fazer, tais parceiros “crianças” teriam saído do setor para caminhar por entre a fábrica. Já o senhor Pedro, sentindo um pouco do cansaço da idade avançada, preferia usar destes tempos ociosos para sentar-se sobre a mesa de concreto e ficar “a toa”, ou neste caso, aproveitar para conversar.

Adultos são bichos que existem de todas as espécies. A espécie do senhor Pedro era tal qual não tão rara: Um homem muito bom, que adorava conversar e... talvez por idade um pouco (bastante) acima da nossa, adorava contar suas aventuras e desventuras na vida. Eu adorava ouvi-lo. Não importava que, a mesma coisa que ele contava em determinado dia, talvez repetisse tudo no dia seguinte. E ele gostava... e respeitava nós as crianças, tendo seu carinho especial para conosco. Para ele era como se fossemos “bichinhos indefesos” e talvez quisesse nos manter sobre suas “asas protetoras”.

— Não parece tudo bem com você! — retrucou-o. — Parece um tanto distante.

— Não se preocupe — pedi com falso sorriso. — Acho que estava pensando em... nada!

— Eu acho que você não deveria trabalhar aqui.

— Que isso, senhor Pedro! — espantei-me. — Tá querendo que eu vá embora?!

— Acho que nenhum de vocês deveriam trabalhar aqui!

— Por quê? O que há? — continuei sem entendê-lo. — Preciso ganhar dinheiro pra ajudar minha mãe!

— Dinheiro! — riu ele com seu jeito doce. — Oito horas por dia, seis dias por semana, em troco de meio salário mínimo!? Valeria mais a pena continuar seu mundo inocente no mundo protegido.

— O que o senhor quer dizer? — acho que eu sabia. Mas fingia não.

— Isto aqui não é um mundo pra crianças!

— A fábrica precisa de nós! — claro! Com um salário quatro vezes menor do que o de um adulto.

— O que os adultos fazem com vocês, menino? — ele só me chamava de menino. Talvez devido meu apelido “muito feio” que conquistei na fábrica e... não vou revelar aqui. Além do mais, provavelmente ele nem sabia meu verdadeiro nome.

— Não fazem nada! — neguei inseguro.

— Não!? — ele era mais vivido do que todos naquela fábrica inteira (não só no nosso setor).

— Pelo menos não comigo! — neguei convicto. — Não sou tão idiota!

— Será?! O que o Maurício faz contigo?

— Ah! Ele é só um moleque grande!

— Não! Ele é um adulto que se faz de moleque grande! O que ele faz com você?

— Ele não é como os outros! Aliás, alguns são mesmo perigosos, só que a maioria são bons.

— Pra ele, desde o primeiro dia em que você entrou nesta fábrica você é um brinquedinho dele!

— Não sou! — neguei chateado.

— Cada um deles é pior do que os outros. É claro que existem exceções. O que ele faz com você? Beija! Abraça-te... morde... te belisca... O que mais? Mexe em seu pênis?

— O que é pênis? — aos doze anos ainda era ignorante.

Ele apontou sua própria região genital para tentar explicar.

— Ele não faz isso!

— E na sua bunda? Ele acaricia?

— Não! — neguei de cara feia. — Se fizer isso... dou um chute no saco dele!

— E com os outros meninos? O que se passa? O que você acha que fazem com o Betinho?

— O Rosival gosta de fazer brincadeiras bestas com o Betinho — salientei triste. — Ele tem só dez anos de idade e o cretino gosta de abraçá-lo, morder seu pescoço, beijá-lo... morder seu peito... Ele é o menino mais bonito de toda a fábrica e tão indefeso também. Outro dia eu vi ele chorando sozinho no banheiro. Se eu pudesse, juro que faria alguma coisa contra aquele... demônio.

— Por isso que eu ainda acho que aqui nem se deveria trabalhar crianças! Engraçado como os tempos mudam. Quanto eu tinha a sua idade, os adultos, mesmo desconhecidos, ajudavam a proteger a nós e por isso mesmo nós os respeitávamos. Hoje os adultos pensam que crianças são brinquedinhos. Imagine quando você for adulto, o que será das crianças?

— Juro pro senhor que eu as amarei e as respeitarei. E se puder, as protegerei.

— Eu acredito em você — riu ele. — Porque eu conheço sua índole.

— Senhor Pedro — ri franzindo os lábios. — o senhor fala complicado. O que é índole?

— Seu interior. O que você é de verdade. Isso é índole! Vem de berço.

— Criança é um bichinho especial — concordei. — Já não sou mais criança! Mas queria ser.

— Você ainda é criança sim! E como todas, também tem momentos de perigo aqui na fábrica. Talvez como nesse setor só trabalham crianças, devesse ser proibido a entrada de adultos.

— Mas aí, senhor Pedro, o senhor não estaria aqui! E nós gostamos do senhor.

— Eu estaria sim! — falou gritado, em tom de raiva. — Ninguém tira vocês de mim! Se eu fosse encarregado desta espelunca eu faria isso.

— E as outras crianças? As que trabalham na fábrica?

— Eu não sei! Só se as demitissem e as trocassem por... rapazes mais velhos.

— Obrigado por gostar da gente — insinuei com voz embargada. — O senhor é nosso anjo.

— Anjo?! — Riu ele com jeito de quem gostou. — Quem me dera!

— Anjos não tem asas como todos pensam — arrisquei. — Anjos se disfarçam de vovôs... Ou de bebês!

— Claro que não sou anjo! — exclamou ele sério. — Mesmo assim fico triste em ver o mundo que cerca vocês. O mundo em que seus pais deixaram vocês entrar.

— Talvez seja apenas uma aula de vida pra gente, senhor Pedro.

— Aula?! Que aulas você tem com o Odair?

— Nunca aceitei droga dele! — Neguei convicto.

— Mas ele vive insistindo!

— E eu vivo negando!

— Quantas vezes ele te ofereceu bolinhas?

— Sei lá! — os ombros ajudaram-me a negar. — É minha aula. Sei que não devo... não pego.

— E os outros indefesos? E o Antonio? Qual brincadeira idiota faz com você?

— Ele não é mau! — neguei convicto. — É só um adulto bobo! Acho que quer puxar assunto e então vive com brincadeiras bestas!

Um segundo de silêncio e ele insistiu:

— Continue.

— Ah! A única brincadeira boba dele é perguntar “e o passarinho? Já começou a empenar”? Parece que não sabe outra coisa. Será que ele não sabe que ainda tenho doze anos! E se está empenando ou não, o que interessa pra ele?

— Um mundo pervertido em que vocês deveriam estar fora.

— Se saíssemos desta fábrica, senhor Pedro, outros entrariam aqui! Depois, a maioria dos adultos são bons e até nos protegem.

— Quem?

— O senhor, por exemplo! E o senhor Hélio que é tão criança que até vai com a gente assistir aos filmes de Tarzan na matine de Domingo.

— Acredito. Uma exceção.

— Não! O João Alemão adora brincar conosco. Com respeito! O Zé Alemão também! Ele é muito sério, respeita a gente e chama a atenção dos que tentam algo contra crianças! O Orcival... O Santo adora nos contar histórias! — pensei um pouco. — Vê. A maioria são bons! Além do mais, não sou tão bobo assim! Já tive outras aulas!

— Quê?! — espantou-se ele.

— Quando eu era criança...

— Quando você era o quê? — interrompeu-me.

— Quando eu era mais criança... trabalhei na fábrica de tijolos. Olaria. Lá também tinha um anjo especial que gostava de eu. Um não! Dois! Senhor Manoel e dona Josefina Leite. Os dois tinham a idade do senhor... mais ou menos. — gesticulei as mãos. — E me adoravam como se eu fosse netinho deles.

— Você já trabalhou em outro lugar antes daqui? — não acreditou tal homem. — Quantos anos tinham tal trabalhador?

— Comecei lá com oito anos e fiquei até os onze. Foi quando entrei aqui.

Pensei um pouco e salientei:

— Sabia que naquele dia eu trabalhei das cinco até às onze horas na olaria e depois vim pra cá? Entrei a uma hora da tarde e fiquei até as dez e meia! No primeiro dia meu pai veio me buscar, pois eu estava a pé e moro longe.

— E quando vai à escola?

— Já terminei a escola!

— Já!? — retrucou-o — É formado em quê?

— Já terminei o quarto ano.

— Puxa! Que grande! — ironizou ele. — Vai ser o que quando crescer?

Dei de ombros sem entender realmente o que ele queria dizer com aquilo.

— Analfabeto como eu?! — o completou. — E o que aconteceu com o casal de vovôs?

— Às vezes à tarde, depois do trabalho, o senhor Manoel me convidava e juntos íamos em sua carroça, bem longe, lá na rodovia, onde ele cortava capim colonião para sua égua Estrela.

— Só vocês dois!? — acho que meu anjo era bem desconfiado.

— Às vezes dona Josefina ia com a gente. Tinha dia que ia eu, outro dia ele levava Fiíca, seu verdadeiro neto, um ano a menos do que eu. Ele tinha outro neto, o Fábio, mas acho que não gostava muito dele, pois nunca o levava consigo.

— O que ele fazia com você?

— Calma, senhor Pedro! — ri entendendo sua preocupação. — O senhor acha que todos os adultos são malvados? O Senhor Manoel e sua mulher gostavam de eu mais do que de seus próprios netos. Não do Fiíca! Eles adoravam o Fiíca, que por sinal era bem arteiro.

— Amavam você?

— Sei lá este tal de amava! — dei de ombros. — Não entendo direito o que quer dizer isso. Gostavam bastante de eu. Como o senhor! Sei que o senhor gosta de eu mais do que gosta dos outros meninos.

— Quem te disse?! — ironizou ele. — Gosto de todos vocês! Acho especiais e indefesos. Gosto de cada um, igualmente.

— O senhor reparte sua mistura do almoço com os outros? Reparte seu café de manhã com mais alguém? Quem mais o senhor já fez comer carne de tatu peba?

Apesar de meus meros doze anos de idade não era assim tão inocente. Era realmente o mais querido daquele senhor que poderia sim ser meu avô e me sentia orgulhoso por isso. Acho que tinha o dom de cativar adultos, embora alguns deles fosse preferível não ter tal dom.

— Você é esperto, menino — riu ele de certa forma emocionado. — Gosto mesmo muito de você. Acho que você é o que mais me entende, mais me escuta. Os outros, quando tem uma chance... como agora, desaparecem daqui como pássaros livres. Eles querem apenas... Ser crianças! Não liga tanto pra um velho bobo igual a mim.

Eu sabia disso e os outros estavam certos: eram crianças!

E então... — continuou senhor Pedro. — o senhor Manoel e dona Josefina também tinham esse carisma especial por você?

— Sim! Eu até ia muito a casa deles. Geralmente à noite.

Pensei um pouco e completei em tom triste:

— Mas eles tinham um filho — nova pausa. — Quer dizer... Tinham vários filhos. Mas um deles, apesar de ainda solteiro morava sozinho em uma casa da olaria.

— Veja lá o que você quer falar! — o senhor Pedro era desconfiado e nem um pouco tolo.

— Naquela época, não sei por que, mas não usava cuecas...

— Menino!

Meu coração bateu assustado.

— Quando eu ia pro trabalho, de madrugada, vestia um short e uma calça comprida. Quando o dia surgia e o Sol ficava quente, tirava a calça e... — longa pausa, preocupado. — ...ele as vezes passava a mão em meu corpo e sempre dizia, “você está in jejun?” Sei lá o que significava aquilo.

— Ele passava a mão na sua... bunda?

— Não na bunda!

— No pênis?

Acenei tristemente que sim.

— Menino! — calou-se por um instante. — Sempre?

Acenei que sim.

— E com os sobrinhos dele? O Fiíca por exemplo?

— Não! — dei de ombros. — Pelo menos que eu saiba.

— E você nunca contava pra ninguém!?

— Acho que eu até gostava...

Ele me olhou triste e eu comecei a chorar.

— Eu era muito pequeno! Como podia entender? Não quero mais falar disso!

O senhor Pedro, que já estava de pé ao lado da mesa de concreto, sem saber o que dizer, só me abraçou e eu ainda chorando, senti conforto naquele abraço fraternal.


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Notas finais do capítulo

Peço desculpas a meus parceiros deste projeto por ter postado aqui minha segunda one-shot.
E a você leitor, espero que tenha gostado e que, se possível, faça um breve comentário.



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