Entre Amários escrita por Pedro Fukae


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/601169/chapter/1

Todos os dias antes de dormir, enquanto ainda estou deitado na minha cama, esperando por alguns longos minutos até adormecer, faço um balanço do meu dia. Lembro dos acontecimentos, das pessoas e até mesmo de algumas interações. Então surge o que realmente é importante: os pensamentos aleatórios, as incertezas, os sentimentos. Sabe, as vezes penso que é algo fácil guardar um segredo de toda a sua família, ou grande parte dela, mas será que é isso mesmo? Então eu deito ao escurecer e começo a pensar. Não, com certeza não é nada fácil, principalmente quando você escuta algo e não pode discutir, por medo do segredo ser exposto. As consequências disso seriam enormes e seria um problema a mais para lidar.

Sim, eu tenho um segredo relativamente importante, algo que pode me pôr para fora de casa e me tornar odiado por, praticamente, todos os meus familiares. O engraçado é que quando digo isso, sem dizer qual é o tão guardado segredo, as pessoas tendem a pensar que seja algo relacionado a um escândalo, um homicídio talvez. Antes fosse. Acontece que o grande segredo na verdade é algo muito simples: eu sou viado, bicha, baitola. Eu sou gay.

Se você acha que isso não é algo extraordinário, que não é algo que as pessoas realmente deveriam se importar, você é uma pessoa sensata, parabéns por isso. Acontece que minha família é um tanto, digamos, conservadora. Aliás, essa não é exatamente a palavra certa, porque não creio que eles sejam realmente conservadores em si, mas também não consigo encontrar outro adjetivo que possa lhes descrever. O ponto é, se a bíblia “abomina”, devemos abominar da mesma maneira, caso contrário, estamos errados. Claro que há aquela pitada de hipocrisia, pois só seguem ao pé da letra o que lhes for de interesse, obviamente. Então sim, caso esteja morando aqui e soltar uma bomba dessa para todos, provavelmente serei lançado para fora de casa e não terei contato com todos eles por um bom tempo, isso pra não dizer para sempre.

Sabe, ainda não encontrei um motivo específico para estar escrevendo essa carta... talvez seja algo bom botar pra fora, expor algo que não sou capaz de conversar com alguma pessoa. As vezes o melhor a se fazer é simplesmente escrever o que vocês está pensando em determinado momento... E é exatamente o que estou fazendo. Poderia dizer que não me importo com quem irá ler tais palavras, mas estaria me enganando. Então na verdade escrevo isso pra alguém consciente, livre de preconceito. Aliás, escrevo para aquela pessoa que reconhece seus próprios preconceitos e tenta desconstruí-lo.

Os piores momentos são aqueles quando escuto algum comentário preconceituoso sobre homossexuais. Sei que eles não possuem nenhuma intenção de me machucar (diretamente), até porque não sabem sobre mim, mas as palavras machucam. Acontece que eu passo a maior parte do tempo na sala, onde o computador central fica localizado, o qual passo todo o meu tempo livre, ou seja, grande parte do meu dia. Mas acontece que esse local também é o mesmo lugar onde as pessoas se reúnem para conversar ou para assistir algum filme, novela ou o que quer que esteja passando na televisão. É quando o ataque indireto, a tortura indireta é iniciada.

“Você viu a nova novela que vai passar? Que ridículo isso de duas mulheres se casarem.” “É o cúmulo mesmo. Onde esse mundo vai parar?!” “Essa emissora ta forçando demais, fica mostrando isso como se fosse normal.” “Isso só acontece em novela mesmo, onde um homem depois de casar e ter filhos decide ser gay? Eles não têm mais o que inventar!” ”Podre, simplesmente podre tudo isso.” “O pior é que ta cheio de viadinho por aí mesmo. Eu nem vou mais no shopping, porque tem pra todo lado. Aqueles bando de viado e sapatão se beijando. É um absurdo isso.” "E ainda vem com essa ideologia de gênero, querendo fazer uma lavagem cerebral na cabeça das crianças pra elas serem gays também."

...

Acredite, eu escuto isso tudo (até um pouco mais) em apenas uma noite. Eu queria, um dia, ter a oportunidade de reunir toda a família e falar como me sinto sobre tudo. Como cada vez que eles discutem sobre isso é como se tivessem me dando um tapa atrás do outro. Como cada vez que escuto que viado deveria se esconder, que não deveria existir, é como se estivessem dando um soco na boca do estômago. Ou quando falam que essa raça deveria morrer, que é simplesmente como se estivessem enfiando uma faca diretamente em meu coração. Acontece que eles me matam um pouco todos os dias e ainda fazem piadas com isso.

Já tentei desenvolver uma audição especial, onde filtraria todas as baboseiras que falam, mas simplesmente não consigo, pois o efeito é exatamente o contrário. Quando eu escuto algum comentário, o meu foco é aquele. E o mais difícil é que eu não posso nem mesmo rebater ideias. Não posso discutir, dizer que estão errados e sendo preconceituosos, dizer que tal pensamento é responsável pela violência contra a comunidade lgbtq+, dizer que é por pessoas como eles que inocentes se matam. O problema é que não posso nem mesmo chorar, não na frente deles. Estou cansado, exausto, completamente derrotado. Porém tenho que agir como se nada estivesse acontecendo, afinal, não podem saber sobre a minha orientação. Não agora.

Tenho apenas que guardar tudo dentro do armário, ali, do meu lado. Esconder por entre as roupas e passar a chave, me trancar. Fingir que nada está acontecendo, que eu estou apenas usando o computador e não dando a mínima para o que estão falando. Tenho apenas que esperar a hora certa para pensar sobre isso. A hora de me deitar, relaxar o corpo, deixar as lágrimas escorrerem e simplesmente fechar os olhos. Dormir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!