Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 48
Véspera de Natal


Notas iniciais do capítulo

Feliz Natal para todos vocês, caros leitores! E como sempre, muitíssimo obrigada por acompanhar essa minha humilde estória.



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A noite de véspera de natal chegou sem que eu percebesse. Eu e Johnny vestíamos nossos suéteres natalinos tricotados como se fosse nosso unforme tradicional da data. O pinheiro piscava na nossa sala de jantar, enquanto papai trazia orgulhoso o peru da cozinha em uma bandeija ainda vestindo seu avental vermelho. Eu e Johnny, famintos há horas, comemoramos batendo os talheres na mesa: havíamos apostado que nada ficaria pronto antes da meia noite, mas felizmente ainda era dez horas.

Zac também estava sentado à mesa, eu havia convencido papai a deixá-lo passar o natal conosco, pois "sua família viajaria". Meu irmão fez Zac vestir seu antigo suéter desbotado de renas, que ficava um pouco curto nele e nos fazia rir. Descobri que ele e meu irmão se davam muito bem. Os dois cantavam todas as canções natalinas do antigo cd de papai que tocava ao fundo, alterando algumas palavras e rindo do resultado - em geral obceno. Meu pai revirava os olhos enquanto servia o peru, e eu enchia nossas taças com vinho tinto sorrateiramente. Zac não bebia, alcool não tinha efeito algum sobre os mortos. Mas isso não era necessário para que ele aprontasse e passasse a noite rindo comigo e Jonathan - já um pouco alegres.

Depois da janta, nos sentamos em frente à lareira na sala e começamos a jogar truco. Era a nossa clássica noite de natal, com comida e jogos em família. Zac se sentiu nostálgico, e me contou que gostava de fazer isso na infância quando o entreterimento não envolvia tecnologia. Na época seu objeto de desejo era um Gameboy novo. Ele sentia muito a falta de uma família, embora nunca fosse admitir isso.

Entre jogadas e goles de vinho, o relógio soou meia noite. Meu pai então pediu licença, e subiu as escadas.

—O que ele vai fazer? - perguntei.

—Não sei, vamos aproveitar e olhar as cartas dele - respondeu meu irmão rindo, indo até o grupo de cartas de papai sobre o tapete.

Segurei sua mão para que ele parasse, e então ele começou a me empurrar para que eu o soltasse, e iniciou-se uma pequena luta digna de doze anos. Durante nosso pequeno embate, Zac sem que percebessemos pegou o maço de cartas da mão de Johnny e anunciou sem muita emoção:

Ás de paus, Coringa e dois Três de Copas. É, acho que ele ganhou da gente.

Johnny o olhou incrédulo, depois se virou para mim e disse com ar de vitória:

—É por isso que eu gosto desse cara.

Ouvimos então os passos de meu pai descendo a escada, e voltamos todos aos nossos lugares colocando suas cartas como ele havia deixado. Meu irmão deu um gole em sua taça segurando o riso. Quando papai surgiu, ele trazia consigo um grande saco vermelho.

—Crianças, papai noel chegou - ele anunciou animado.

Houve uma comemoração geral. Dali ele retirou diversas embalagens, presentes que nós mesmos havíamos comprado um para o outro em segredo. Sempre fazíamos isso, colocando apenas o nome do presenteado. Cabia a este adivinhar quem o presenteou, mas não era muito difícil de se acertar desde que éramos apenas três. Zac observava tudo, surpreso quando percebeu que haviam embalagens para ele.

—Não iríamos esquecer do nosso convidado - meu pai disse ao entregá-lo dois pacotes.

Ele sorriu grato, mas um pouco sem graça. Abriu a primeira embalagem, e nela havia um kit de tinta spray e papel de estêncil.

—Para suas próximas pichagens, Banksy— disse Johnny, fazendo Zac rir.

—Vandalismo não é uma boa atividade, garotos - meu pai quem disse agora - mas bom ver que você é um artista - ele completou para Zac, que não se conteve e soltou um risinho.

Johnny então mudou o assunto abrindo suas próprias embalagens:

Ahn, vejamos o que tenho aqui - disse rasgando rapidamente um dos pacotes - uma camisa nova, uau você realmente inovou esse ano pai - disse forjando animação, mas meu pai ignorou enquanto abria seus próprios pacotes.

Então ele abriu seu outro presente, e em seguida seus olhos se voltaram para mim.

—Oh J, você é um amor! - exclamou levando as mãos ao peito teatralmente ao ver que lhe comprei um livro-guia sobre Como não ser um Babaca.

Ainda rindo, abri os meus pacotes: meu pai havia me dado um colar e Johnny um sketchbook novo, onde se lia na capa - escrito em sua própria caligrafia - "devaneios de uma mente perturbada".

Quando me virei para Zac novamente, ele já havia aberto e estava com meu presente em suas mãos. Era um livro de poesias de Allen Ginsberg, pois ele havia me dito que adorava a geração beat. Ele lia a dedicatória que eu havia escrito na contracapa, e quando percebeu que eu o fitava, levantou seu olhar azul para mim e sorriu. Eu havia grifado os melhores trechos dos poemas também, mas isso ele ainda iria descobrir.

No começo da madrugada, fomos os três para o telhado sob minha janela. Eu e Johnny compartilhávamos a sobra de vinho de uma das garrafas da janta, e Zac fitava as estrelas.

—Vocês têm sorte - ele disse olhando para mim e meu irmão.

Fumaça de frio saia de sua boca com suas palavras, mas a baixa temperatura não era empecilho suficiente para nos tirar dali.

—O que quer dizer com isso, estimado convidado? - perguntou um Johnny risonho, talvez pelo vinho.

—É que vocês têm uma família - e dizendo isso, deitou-se fitando o céu. - eu nunca tive uma de verdade.

—Nossa família já foi mais completa - eu disse, lembrando-me de minha mãe. - Mas tentamos seguir em frente mesmo assim.

Meu irmão encostou a cabeça em meus ombros.

—Eu sinto falta dela - ele disse baixinho, dando o último gole no gargalo da garrafa - mas não acho que ela sinta a minha.

—Vocês têm ideia de onde ela esteja? - perguntou Zac ainda deitado em nossa frente.

—Achamos que foi para o sul - eu disse - ela amava o litoral.

—Ou talvez tenha ido para outro país, nunca soubemos ao certo - Johnny completou.

—E nem queremos saber - eu concluí.

Seguiu-se um silêncio.

Fale por você— meu irmão sussurrou.

Outra longa pausa se seguiu.

—Gente, por favor, não vamos ficar com essas caras agora né? - eu disse afim de eliminar o clima pesado do ar.

—Tarde demais J, a bad já se instaurou - meu irmão ecretou se deitando ao lado de Zac.

Estreitei os olhos para os dois. Subitamente dei um empurrão em Johnny, que empurrou Zac com seu corpo num efeito cascata e os dois começaram a escorregar pelo telhado nevado.

—Sua louca! - gritava Johnny, que se apavorou para se segurar logo em algum ponto antes de chegar até a calha.

Zac e eu rimos, sabendo que não haveria chance de Johnny cair com ele ali. Então meu irmão assumiu uma expressão travessa e veio em minha direção. Entrei rapidamente em meu quarto, e ele me seguiu com as mãos cheias de neve prontas para jogar em mim.

"O que vocês tão aprontando à essa hora?"

A voz de meu pai veio do corredor em tom repreensivo.

—Nada, pai - respondeu Johnny próximo à porta, em seguida jogando mais bolas de neve em mim.

Zachary se sentou na janela e observou-nos, ocasionalmente jogando neve em Johnny e tornando-se também um alvo. Não demorou muito para que a neve formasse poças em meu quarto, o que nos fez correr atrás de panos para secar tudo antes que o chão de madeira ficasse manchado - causando um ataque em meu pai.

x x x x

Quatro horas da manhã. Johnny havia ido para seu quarto, e Zachary e eu estávamos deitados em minha cama sem sono, conversando sobre lembranças e fitando o teto.

—J, tenho algo para você - ele disse de repente.

O observei curiosa. Ele se levantou e foi até um ponto específico debaixo da minha escrivaninha. Bateu algumas vezes no chão, até que encontrou uma parte que emitia um som diferente. Estreitei os olhos.

Ele então levantou uma tábua dessa parte, que para minha surpresa revelava uma espécie de compartimento secreto. De lá ele tirou uma caixa média de ferro, e recolocou a tábua em seu lugar novamente.

—Zac... o que é isto? - perguntei devagar.

Ele soprou o pó de cima dela e a abriu com dificuldade, pois a tranca estava um pouco emperrada.

—Estas, J, são as minhas lembranças.

E então me entregou a caixa. Cuidadosamente, comecei a tirar os objetos de dentro dela, admirada e assombrada por aquilo repousar ali todo esse tempo sem que eu soubesse.

Havia envelopes com cartas endereçadas de Bloomfield, envelopes com fotos de polaroid, alguns cds e diversos blocos rabiscados. Com as mãos trêmulas, peguei um pouco das fotos.

Elas mostravam um Zac rodeado de amigos, todos com rostos felizes de um tempo provavelmente despreocupado. Na borda de baixo, lia-se "verão de 1991" escrito à mão. As paisagens atrás deles ia de campinas ensolaradas à quartos bagunçados. Havia skates em ruas vazias de subúrbio, cabelos longos, roupas largas e peles douradas - ou vermelhas - de sol.

Uma das fotos em específico tinha assinaturas atrás. Nela, Zac aparecia sentado em uma calçada com mais três garotos e uma garota ruiva. Na legenda, lia-se "nunca se esqueça do verão '91", dessa vez numa caligrafia feminina. Toda aquela atmosfera contrastava perturbadoramente com a realidade pálida e fria de Blue Falls.

Dei um sorriso agridoce.

—Você sabe por onde eles andam? - eu perguntei.

—Não - ele respondeu olhando para baixo. - Hoje devem ter a idade de seu pai, e os filhos deles a nossa. Talvez nem se lembrem mais de mim... As vezes me pergunto o que cada um se tornou, eu espero realmente que estejam bem.

—Você nunca pensou em procurá-los? - perguntei baixinho.

—Pra quê, J? Para ver que o tempo nunca vai passar para mim? Que nunca poderei ter filhos, ou olhar para trás e me orgulhar de minhas realizações, ou com o rumo de minha vida? Não, obrigado. Só posso sair de Blue Falls no Samhain, e tenho preferência que esse dia seja no mínimo bom.

Olhei para Zachary. Sua felicidade naquelas imagens não condizia com o garoto angustiado à minha frente. Os anos talvez não tenham afetado sua eterna juventude, mas seus olhos eram de quem já havia visto muito em comparação à despreocupação do Zac das fotografias, com seu olhar vívido. Agora, nos seus olhos azuis só havia morte. Uma alma antiga aprisionada em uma mente inconstante e jovem.

Fui até ele e o abracei. Ele retribuiu o abraço com força, aninhando-se em meus braços como uma criança. Passamos algum tempo assim, até que ele me soltou e me olhou com uma ponta de alegria.

—Espera, acho que tem algo interessante aqui.

Ele foi até a caixa e remexeu os cds, e tirou do fundo uma sacola, onde havia uma máquina de tatuagem e tinta nanquim preta.

—Oh não, não me diga que... - comecei a dizer.

—Sim, lhe digo sim - ele me respondeu animado, ligando a máquina e comemorando quando percebeu que funcionava.

—Não acredito nisso - eu dizia, sorrindo incrédula.

Zac, com os olhos brilhando, colocou a agulha no seu pulso, sem tinta, soltando um risinho ao sentir a conhecida dor e tirando em seguida. Ele então ameaçou colocar no meu braço, que tirei antes que ele alcançasse.

—Ah, vai J, só uma picadinha - dizia em tom de súplica.

Ponderei a possibilidade, até que renunciei e estendi meu braço para ele, que encostou a agulha em meu pulso. Reclamei de dor puxando meu braço de volta, mas ele o segurou com força e continuou, desenhando rapidamente um coração na minha pele. Como estava sem a tinta, o resultado era uma espécie de arranhão. Conforme ele desenhava, a dor foi parando e se tornando algo - arrisco dizer - meio prazeroso.

—Viu só, não é tão ruim - disse ele vitorioso.

Não respondi, anda observando minha pele ficando vermelha.

—Olha, eu tenho tinta aqui... - ele começou.

—Ah não, Zac - respondi o cortando imediatamente, e ele começou de novo a fazer seu olhar de súplica.

O encarei séria, e ele então cruzou as mãos em posição de prece. Aos poucos fui soltando um sorriso contra minha vontade, o que ele interpretou como um veredito positivo. Rapidamente colocou tinta na agulha e a testou em si mesmo antes, para ver se ainda levava jeito, segundo ele. Zac tatuou uma lápide na parte interna do antebraço, uma verdadeira ironia à sua situação atual.

—Acho que isso não vai ser uma boa ideia... - comecei a dizer.

E ao dizer isso, seus olhos se iluminaram como se eu tivesse lhe dado uma inspiração. Ele apontou para mim e disse:

Isso sim é uma boa ideia - e em seguida começou a escrever dentro da lápide "más ideias".

Revirei os olhos.

—Sua vez - ele disse. - O que é que vai ser, hein?

Franzi o cenho.

—Eu vou mesmo fazer isso?

—Claro que vai - seu olhar era desafiador e pretensioso.

Ele então segurou a parte interna do meu antebraço.

—No mesmo lugar? Quero o mesmo que você se é assim - desafiei.

E então - antes que eu mudasse de ideia - eu tinha uma pequena lápide tatuada em meu braço, com os dizeres de aquilo não era uma boa ideia - o que acabou sendo. Zac sentou-se no tapete em minha frente, e contemplou seu trabalho satisfeito.

—Essa pode ser nossa versão de aliança - ele sorriu.

A luz pálida do amanhecer começou a surgir pela janela. Sorri de volta.

—É - eu disse observando minha pele vermelha em torno do desenho contornado, ainda sem crer direito no meu ato impulsivo. - Pode ser mesmo.


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