Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 47
Despedidas




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–O sangue sobre a terra é um importante símbolo Tenebris, Johanna. Representa poder e união com a natureza. Assim são feitos e desfeitos nossos pactos. E é assim que o garoto Wingfield padecerá. E nós dois assistiremos à isso. - Leonard dizia tranquiliamente enquanto se afastava e limpava sua lâmina.

Oliver tossia sangue, enquanto lutava para respirar. Eu ainda não me movia. Sentia meus batimentos em meus ouvidos, e minha pulsação parecia doer dentro de minhas veias.

Era o fim de uma tragédia grega.

Oliver fechou os olhos lentamente.

Eu me sentia impotente, tudo parecia perdido.

Parecia.

Foi então que um farfalhar na entrada da clareira chamou a minha atenção e a de Mordrake. Ele parecia ter entendido antes de mim do que se tratava: imediatamente se levantou com expressão preocupada.

Por entre as folhas, a silhueta de Laurie surgiu na clareira seguida por uma mulher mais velha com longos cabelos brancos: Aileen, da lojinha do Beco de Odin. As duas estavam ofegantes, como se tivessem vindo correndo. Foi tudo muito rápido; Laurie tinha aquele seu olhar desfocado de quando entrava em seus transes, e parecia obstinada. Ela foi até Leonard, que estava ainda sem reação, e parou bem em sua frente.

Então o que se seguiu não poderia me deixar mais surpresa.

Laurie começou a recitar palavras em um idioma que eu jamais havia escutado, e quando ela o fez, pela primeira vez vi desespero real nos olhos de Leonard. Ela repetia o mesmo verso incansávelmente como em um ritual de exorcismo, sua voz em fúria, seus olhos se reviravam e seu corpo tremia. Mordrake apertou os olhos e urrou em angústia, como quem fazia força para resistir, aparentemente em vão. Laurie agora gritava fora de si aqueles versos, sua voz na clareira parecia ensurdecedora, foi quando o último grito de horror de Leonard Mordrake foi ouvido ecoando por todo o bosque:

Em um piscar de olhos, seu espectro havia desaparecido.

Exausta, Laurie caiu de joelhos na neve enquanto Aileen se apressava na direção de Oliver. Aos poucos voltei a sentir meus membros, como se tivesse acabado de sair de uma paralisia do sono, mas mover qualquer coisa parecia requerer um esforço enorme, e quando tentei correr até Oli, minha cabeça doeu e minhas pernas vacilaram, fazendo-me cair.

Em torno da árvore onde Oliver estava encostado e desacordado, Aileen traçou um círculo mágico sussurrando alguma coisa. Dentro dele, ela tirou de sua bolsa diversas ervas e frascos. Com rapidez, ela amassou algumas ervas junto ao líquido de um desses frascos em um pequeno pote, sempre sussurrando coisas que eu não conseguia ouvir. Cuidadosamente, ela tirou o casaco e o suéter de Oliver, revelando seu peito pálido tingido com seu sangue. Aileen limpou o ferimento com o líquido recém feito de ervas, e quando o corte estava limpo, tirou de sua bolsa uma agulha cirurgica junto à uma espécie de linha de atar pontos. Ela então começou a costurar o corte com agilidade e precisão.

Nesse meio tempo Laurie se recuperou um pouco da exaustão que passara, embora ainda visivelmente atordoada. Ela tirou uma vela de sua bolsa e colocou sob um dos bancos da clareira, e após acendê-la começou a recitar preces de olhos fechados como se rezasse.

Tudo se passou muito rápido. Eu não ousei dizer uma palavra. Quando Aileen terminou de tecer os pontos, ela fechou os olhos e colocou as mãos em torno da cabeça de Oliver, proclamando palavras no mesmo idioma que Laurie havia falado antes.

Tentei levantar-me novamente, mas dessa vez minha visão escureceu gradativamente junto com a tontura que surgiu em minha cabeça. A última coisa que vi foi Laurie e Aileen em torno de Oliver, proclamando o idioma desconhecido.

x x x x

Ao abrir os olhos, não entendi onde estava em um primeiro momento. Havia uma janela no teto revelando o céu escuro estrelado, e o ambiente estava semi-iluminado por velas e uma luminária com luz amarelada. O quarto era repleto de plantas pendentes, prateleiras com livros e frascos, além de que havia um cheiro de insenso no ar. Ao meu lado havia um criado mudo com um abajur, e sob este o retrato de uma garotinha de cabelos longos vestida de bruxa. Os grandes olhos negros eram inconfundíveis, se tratava de uma pequena Laurie. Eu estava em seu quarto.

Sentadas no chão à minha frente, Aileen e Laurie estavam uma de frente à outra conversando baixinho. Entre as duas, Oliver estava deitado sobre um tapete felpudo com o peito enfaixado. Senti uma calmaria súbita. Sentei-me na cama onde eu estava deitada, cuja estrutura de bambu estralou com meu movimento. As duas imediatamente se viraram para mim. Laurie sorriu.

–Você passou por bastante coisa hoje, J - ela disse com um sorriso confortante.

Ao me dar conta de tudo que havia acontecido, comecei a chorar. Um choro compulsivo, de angústia e dor acumulada ou reprimida. Ela se levantou e veio até mim, me dando um abraço terno e acariciando meus cabelos, dizendo que estava tudo bem.

–Eu pensei que Oliver estava morto! - eu dizia com a voz embargada.

–Ele poderia estar, meu anjo - disse Aileen vindo em minha direção. - Se não fosse a clarividência da sacerdotisa Laurie, nosso garoto não estaria aqui. E quem sabe nem você, afinal.

–O que aconteceu? - perguntei secando minhas lágrimas.

–Eu vi J, não me pergunte como. Eu acordei com uma dor horrível no peito, e me veio a imagem de Oliver sangrando na clareira, como um relance, não sei explicar minhas visões. Vi Leonard e você na mesma clareira, e senti que algo terrível iria acontecer. Aileen tem o dom da cura, então a chamei para que me acompanhasse. Ela o salvou.

Eu me virei para Aileen, mas não tinha as palavras certas e suficientes para lhe agradecer. Como se ela visse isso em meus olhos, segurou minhas mãos e me retribuiu o longo olhar.

–Você disse... sacerdotisa? - perguntei confusa.

–Sim - confirmou Laurie, explicando em seguida: - eu sou uma sacerdotisa wiccana. É uma vertente recente da bruxaria celta, mas a essência da magia é sempre a mesma em qualquer tradição. O que muda são os meios em que você a obtém.

–E o que você fez com Leonard? - perguntei, já incapaz de me surpreender com alguma coisa.

–O que eu usei nele foi um poderoso feitiço de banimento celta J, mas ele não está extinto. Apenas o neutralizei por algum tempo, não sei o quanto. Só que não acho que ele virá atrás de Oliver, pois seu verdadeiro interesse é Zac. Sempre foi.

De repente, o som da tosse de Oliver nos chamou a atenção.

–Ele acordou! - exclamou Aileen.

Subitamente me levantei e fui até ele. Ele contraiu as sobrancelhas ao tossir, e depois abriu os olhos lentamente, piscando repentinas vezes, até que eles pareceram me focar. Eu estava ajoelhada ao seu lado.

–J-Johanna? - ele pronunciou lentamente.

–Oliver - eu respondi.

Seus olhos então pareceram enxergar a mais completa paz:

–Eu estou morto? Eu estou em alguma espécie de paraíso? - perguntou ele levando as mãos ao meu rosto.

–Não, seu idiota, você não morreu! - eu exclamei sorrindo, mas algumas lágrimas escaparam sem que eu notasse.

Ele piscou mais vezes e tentou se sentar, mas imediatamente levou a mão ao peito reclamando de dor, e deitou-se novamente.

–Calma aí garotão, você precisa de descanso - Aileen disse com olhar severo.

Ele fez uma expressão confusa e pareceu refletir um pouco, a dor lhe trouxe de volta ao corpo físico. A luz trêmula da vela perto de nós dava a pele de Oli uma coloração dourada. Acariciei seu maxilar. Ele então pareceu compreender.

–Era para Leonard ter me matado... o que aconteceu? - perguntava ele com a voz falha.

–Nós salvamos a sua vida - Laurie quem falou se aproximando, e ajoelhando-se em seu outro lado.

Ele pareceu surpreso ao vê-la. Os dois sempre tiveram suas desavenças por seguirem caminhos na magia os quais consideravam divergentes, quando na verdade eram caminhos paralelos.

–Então quer dizer que você não é apenas uma pagã de feira - ele disse ainda devagar, sorrindo com a voz rouca e olhando para o teto.

Laurie também sorriu, e olhou para mim ao dizer:

–Não se acostume, fiz isso pela J.

x x x x

Narrei todo o ocorrido para Zac, que me esperava preocupado em meu quarto escuro quando cheguei de volta naquela noite. A história só serviu para que ele ficasse ainda mais atordoado, se considerando o causador de tudo isso e irresponsável por não estar ali para me socorrer no momento. Eu o disse que eram coisas além do controle dele, mas ele estava irredutível.

Oliver ficou na casa de Laurie sob os cuidados de Aileen durante uma semana. Sempre que me via aparecer na porta do quarto de Laurie, abria um sorriso. Seus olhos cinza iam ficando cada vez mais vivos conforme os dias passavam, e ele parecia finalmente ter criado certa empatia com Laurie. No dia do solstício de inverno fizemos uma pequena celebração de Yule dentro do quarto, mesclando ritos Tenebris aos Wiccanos. No terceiro dia li para ele poemas de Rimbaud, pois ele amava os simbolistas. No quinto, passei na lojinha de discos do centro antes e levei um vinil de Schubert, seu compositor favorito, que ouvimos durante o entardecer. No sétimo dia ele se levantou, e para comemorar arriscou valsar comigo alguns compassos do mesmo vinil.

Então chegou o dia em que ele finalmente voltou para sua casa. Já poderia cuidar do ferimento sozinho, e Aileen havia lhe dado uma dose do líquido de ervas para que ele aplicasse diariamente. A primeira coisa que ele fez ao chegar em seu loft foi sentar-se ao piano. Ele abriu seu livro de partituras e escolheu Adieu au Piano, de Beethoven, para tocar naquele momento. Sentei-me na cama ao seu lado, observando seus dedos longos movendo-se delicadamente pelas teclas formando a melodia doce e triste.

Quando a peça chegou ao fim, aplaudi. Ele sorriu ainda olhando para seus dedos. Seu sorriso morreu aos poucos, e ele tornou a ficar sério.

–Está tudo bem? - perguntei, algo que havia se tornado recorrente desde seu ferimento.

–Fisicamente sim - ele sorriu. - Mas não é isso que me incomoda agora.

Franzi o cenho. Ele tirou a mecha negra que insistia em cair sobre sua testa, e se acomodou na banqueta do piano virando-se para mim.

–Sabe, essa música que acabei de tocar significa uma despedida. Ela é doce, porque nem todo adeus é eterno, mas é melancólica, porque todo adeus envolve uma perda, e isso dói na alma.

Continuei olhando para ele, não entendendo ao certo a que ponto ele queria chegar.

–Essa semana você foi incrível comigo - ele continuou. - Você fez com que eu enxergasse razões para lutar por sobreviver. Você me deu alegrias, J.

Seu sorriso agridoce invadia seu rosto enquanto ele falava olhando para baixo. Oliver costumava ser confiante, mas era a primeira vez em que eu o via com a guarda baixa.

–E você não precisava fazer nada disso - ele continuou. - Isto é, eu te contei toda a minha história suja, e você por algum motivo não me atirou pedras.

–Aonde quer chegar, Oliver? - perguntei, com medo de ouvir a resposta.
Ele endireitou a postura e fitou meus olhos.

–Eu estou tentando lhe dizendo adeus, Johanna. Eu fiz as piores coisas para conseguir algo que não me pertence, e isso quase custou minha vida. Eu ganhei uma nova chance, seja lá quais sejam as intenções dos Deuses com isso, e dessa vez quero fazer as coisas certas, encontrar um novo sentido ao meu caminho. Não é um adeus eterno, eu pertenço à Blue Falls, você ainda vai me ver. Mas eu compreendi que o verdadeiro amor é libertário. Não se deve pretender a posse do outro, entende? Pois o amor genuíno apenas deseja o melhor para o seu ser amado. Então eu parto e lhe deixo seguir seu caminho.

–Oli... - eu começava a dizer com olhos úmidos, mas as palavras não vinham.

Ele segurou minhas mãos. Seus olhos brilhavam.

–Eu quero viajar o mundo J, eu sinto que tenho tanto a ver! Eu quero ir para África como Rimbaud, quero ir para Macchu Picchu sentir o que os Incas sentiram, quero ver as cerejeiras florescerem na primavera Japonesa, quero viver a magia em todos esses lugares.

Dei um sorriso triste, e uma lágrima escapou dos olhos dele. Sequei-a com a ponta dos dedos, e ele me deu um abraço forte.

–Para os Românticos, este era o melhor tipo de amor, sabia? - sussurou ele em meus ouvidos. - O amor platônico, do sofrimento, idealizado. Nosso amor só existe no campo das minhas ideias J, o que nos torna potencialmente perfeitos. Nós somos infinitos.

–Já ouviu falar que não se deve confiar em poetas? - sussurei de volta ainda em seu abraço, e ele me apertou ainda mais.

–Eu te amo, Johanna, nisso você pode confiar.

–Oliver, eu também... - comecei a dizer, mas ele colocou um dedo sobre meus lábios em gesto de silêncio, e em seguida me deu um beijo doce e gentil.

–Adeus Johanna - sussurou ele quando nossos lábios se separaram.


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Notas finais do capítulo

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