Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 46
Redenção




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Na manhã seguinte, acordei sozinha enrolada em minha coberta. Na tela inicial de meu celular, a data indicava ser 20 de dezembro, véspera do solstício de inverno. Tudo parecia ter passado tão rápido... Eu ainda me lembrava do dia Samhain, poucos meses atrás, como se tivesse sido um sonho recente. Dia o qual meu mundo fora virado ao contrário e transformado para todo o sempre. Dia em que eu finalmente abri os olhos para o que me cercava, e ainda assim eu me sentia completamente distante de entender por completo tudo aquilo que via.

A janela estava entreaberta, e dela soprava um vento gélido. Levantei-me para fechá-la, e quando o fiz, vi no bosque branco um pouco depois do portão de meu jardim dos fundos duas silhuetas trajando casacos pretos seguindo floresta à dentro. Eu já sabia de quem se tratava. E eu sentia que precisava fazer alguma coisa.

Sem pensar muito troquei de roupa, desci correndo as escadas e vesti meu casaco pendurado proximo à porta. Eu era a única desperta na casa silenciosa, o dia mal havia amanhecido. Agi pela emoção, descartando a razão por alguns minutos de insanidade. Coisas deveriam ser esclarecidas. Zac estava estranho, Oliver estava estranho. Leonard continuava distante, e pela primeira vez eu compreendia sobre ser mais seguro manter os inimigos mais perto ainda.

Meus passos deixavam pegadas fundas na neve, e minha respiração fazia fumaça. A neblina do amanhecer se dissipava, o dia iria ser claro. Quando finalmente alcancei o bosque, apressei o passo e minha respiração ficou mais ofegante. Senti minhas mãos suarem, apesar do frio. Eu já sabia onde deveria encontrá-los.

Eu era como um lobo em uma caçada, cega para todo o resto de instinto que não fosse seguir o rastro de sua presa - muito embora eu não estivesse bem certa sobre eu ser o predador ou a caça. Ao me aproximar da clareira, já podia sentir a presença deles. A fala baixa, o característico sotaque carregado e antigo. Cheguei então em frente à parede de folhas que unia as árvores, antes verde, agora salpicada de branco. Eles perceberiam minha presença de qualquer jeito, não fazia diferença em que momento eu interrompesse aquela reunião às encobertas. Ainda movida pela emoção, pulei agilmente na árvore que continha a passagem, com uma ajuda da adrenalina em minha circulação. Pulei do outro lado ruidosamente, embora a neve abafasse meu peso, o farfalhar de folhas fez com que Oliver e Leonard me dirigissem olhares surpresos de onde estavam. Enfim, eu havia chegado.

Os dois estavam em pé no meio da clareira, e me olhavam ainda sem reação. Eu estava na mesma situação, só então me dei conta que não havia planejado muito o que fazer a seguir. Estava tão aflita em chegar até eles, tinha tantas coisas para cuspir em cada um, mas naquela hora um sentimento de que eu era pequena e indefesa começou a surgir dentro de mim conforme eu fitava os olhares a minha frente, ambos com uma atmosfera ameaçadora. Fechei os punhos. Não iria deixar que aquilo me dominasse. Fui até Oliver, e falei pausadamente, apontando o dedo contra seu peito:

–Você me deve muitas explicações.

O olhar ameaçador dele pareceu se desfazer por completo com o meu toque. Era como se eu tivesse quebrado o feitiço que lhe tornava impassível, e então eu notei um traço de sentimento passar por sua feição. Eu havia mergulhado meus olhos no dele, era o meu magnetismo o dominante agora.

–Eu sabia que você traria problemas, garoto amaldiçoado - disse Leonard ao nosso lado rispidamente, como se eu fosse o problema, e a responsabilidade fosse de Oli.

–Johanna... - ele começou baixinho, vi seus olhos úmidos.

Leonard se sentou em um dos troncos encobertos de neve, seu grosso casaco negro parecia isolar o frio, que eu ainda tinha dúvidas se ele sentia. Então, gesticulando teatralmente, ele disse:

Voilà, este é o seu grande momento, Wingfield. Vamos ver se você honra a tradição, ou se entrega às suas fraquezas.

–Sinceramente Mordrake, não tenho mais certeza de que o que você defende seja de fato a Tradição - ele disse com voz embargada virando-se para Leonard, ainda em minha frente.

Ainda sentado, ele tirou a cartola como se indicasse para que o outro prosseguisse.

Oliver se virou para mim, e deu um passo para trás.

–Johanna, eu errei. Eu não deveria ter lhe omitido as coisas. Não espero que me desculpe.

–Oliver, eu só preciso que me conte a verdade - eu disse, colocando as mãos no bolso do casaco.

–Vamos Oliver, conte a verdade a ela - desafiou Leonard de onde estava. - Conte-a sua história recheada de rancor e inveja. Descarregue suas frustrações, exiba suas fraquezas. Faça-a encarar seu repugnante eu.

Oliver tinha os punhos fechados, e olhava para baixo.

As palavras de Leonard por muito lhe pareceram intimidar e dominar, mas agora eu assistia a uma reviravolta: o vassalo se rebelaria contra o seu suserano. Ainda olhando para baixo, disse entredentes:

–Mordrake, não tente jogar para mim os seus próprios defeitos repugnantes.

E então Oli se virou para o outro, completando com raiva:

–Eu nunca me igualarei a você.

–Mas oh, querido - disse Mordrake em um tom dramático - você já se igualou.

–Nunca é tarde para se voltar atrás - eu disse.

–Há coisas que não podem ser desfeitas, minha cara - Leonard me respondeu.

Oliver relaxou os ombros e olhou para mim com os olhos muito puros, sua expressão sem nenhuma máscara. Apenas ele mesmo. E então começou a dizer, como um criminoso que confessa seus crimes:

–Johanna, eu menti quando disse que não lhe escondia nada. Ou quando disse que não tinha nada com Leonard, ou não sabia nada sobre Zac além do que você sabia. Como eu já disse, não espero que me perdoe. Mas eu preciso te contar, é uma dívida que preciso sanar comigo mesmo.

"Eu sempre fui tido como amaldiçoado, isso você já sabe. Sempre fui visto com desconfiança pelos Tenebris, pois a maioria dos feiticeiros que se aproximavam de mim não tinham boas intenções. Chegou um certo ponto em que eu não sabia mais se as intenções más eram dos outros ou minhas. E então elas acabaram se tornando parte de mim sem que eu percebesse. Não me veja como uma vítima, apenas como alguém que encontrou as companhias erradas e gostou delas"

–Mas meu passado não é relevante agora, o que lhe devo é o que lhe interessa. Anos atrás, Zachary apareceu. Ele era um bom amigo, mas eu nunca fui totalmente franco com ele, porque eu sabia quem ele era, estava na profecia. Bem, existe uma profecia Tenebris medieval, que foi encontrada em latim no livro das sombras de um dos antigos mestres originais, os primeiros Tenebris conhecidos...

E então Oliver começou a recitar:

"Haverá um dia sepulcral
Aonde o sol não chegue por total
Uma criatura lúgubre enfim transpassará os limites entre o céu e a terra"

Mordrake interrompeu se levantando, colocando a cartola e concluindo-a com entonação de poeta:

"E então haverão apenas duas escolhas para os feiticeiros desta era:
Dominá-la, e contemplar a volúpia do poder e glória;
Ou ser dominado, caindo no sofrimento tumular e na dor eterna"

Seguiram-se alguns instantes de silêncio. Oliver continuou:

–Eu mantive Zac próximo para meu interesse, mas ele também era manipulador e astuto, não demorou muito para que eu perdesse o controle da situação. E então você apareceu, para completar minha desventura.

Senti Leonard se sentar novamente e cruzar as pernas em seu banco, atento a tudo. Seu olhar era muito sério, mas quando o relato chegou nesse ponto ele esboçou um sorriso maldoso. Oliver respirou fundo e abriu os braços em sinal de redenção quando continuou:

"E me desculpe, eu acho que me apaixonei por você no mesmo segundo que você entrou por essa clareira, naquela noite em que nos conhecemos. Esse lugar sempre significou muito para mim. Era um antigo local ritualístico celta, então a Tradição sempre o considerou sagrado. As coisas que aconteciam aqui sempre me tiveram um significado maior, e você sendo apresentada a mim aqui não foi diferente. Eu gostei de você. E eu percebi o jeito que você olhava para Zachary. E eu não gostei disso."

Ele agora colocou as mãos dentro de seus bolsos, e continuou olhando nos meus olhos:

"Muito me envergonha lhe confessar isso Johanna, mas eu me torno obsessivo pelas coisas que desejo. Zachary que já era um empecilho antes, agora passava a ser um ainda maior. Eu precisava tirar ele do caminho, eu precisava te fazer minha. Além de que ele não fazia bem para ninguém. Bem, Mordrake era um feiticeiro conhecido entre minhas más companhias, embora a maioria dos Tenebris de bem o repudiem. Então, naquela noite de Samhain, nós fomos até a sua casa, o invocamos e o libertamos do outro lado do véu, fazendo um pacto. Leonard já havia tentado eliminar Zac quando vivo, mas falhou. E agora tentaríamos todos eliminá-lo em morte, era um objetivo comum a mim e a ele, e a todos os Tenebris de certa forma, pois o garoto representa uma ameaça. Se obtivéssemos sucesso, alcançaríamos uma glória imensurável. E era isso que nos unia até então."

Eu estava perplexa, tanto com a história quanto com a tranquilidade e redenção com que Oliver a narrava.

Leonard então se pronunciou:

–Oh, é muito bonito, mas há uma correção, garoto. Na verdade isso nos une pela eternidade.

–Não se eu não permitir. Leonard Mordrake, eu não serei mais seu cúmplice. Eu estou traindo o pacto.

Leonard fez uma expressão de ultraje, muito embora todas as suas expressões parecessem mais com uma atuação em um teatro satírico.

–Você não pode - ele disse com um sorriso de Coringa nos lábios. - Você sabe as consequências... Pactos Tenebris são feitos com a alma.

–Eu posso e estou fazendo isso, Mordrake - Oli também sorria, mas era um sorriso de liberdade.

Sua tranquilidade subitamente me despertou um terrível pressentimento de que o que se seguiria não seria bom.

Oliver então retirou a pedra negra de um anel que usava no dedo indicador, revelando que ali se escondia uma pequena lâmina. Ele afastou as mangas do casaco e a passou delicadamente na parte interna de seu braço não tatuado. Aos poucos, o líquido vermelho começou a jorrar do corte, contrastado com sua pele pálida. O sangue tocou o chão pintando a neve de vermelho, e Oliver pronunciou palavras em latim.

O sorriso de Leonard morreu aos poucos em seus lábios enquanto observávamos a cena.

–Você me traiu, Wingfield...

Os olhos de Oliver se demoraram um pouco nos meus, segundos antes das mãos de Leonard voarem em torno de seu pescoço. Oli fechou os olhos e não reagiu, em um ato de total entrega.

Entrei em desespero.

–Oliver! - gritei correndo em sua direção.

Leonard Mordrake então esticou a palma da mão virada para mim, e como se ele tivesse criado um escudo, não consegui mais me mover.

Já no chão, Oli estava encostado em uma árvore. Em torno de seu pescoço haviam marcas arroxeadas de mãos. Leonard estava diante dele segurando um punhal que ele havia tirado de dentro do casaco. Ele começou a manusear a lâmina lustrando-a, enquanto dizia:

–De que maneira eu deveria encerrar sua existência... de um jeito poético, digno de Wingfield, talvez. Poderia até publicar suas valsas póstumas, só não garanto que lhe avisaria caso você venha a fazer sucesso.

–Oliver, me escute! - eu gritava desesperada, mas ele não parecia me ouvir.

Leonard então segurou firme a lâmina e se agaixou na frente de Oliver. Tudo estava em silêncio. A luz do dia entrava na clareira e refletia na neve branca ao chão.

–Quem diria que chegaríamos a isto... Garoto Wingfield, um traidor - sussurou Mordrake com os lábios nos ouvidos de Oliver.

E então, ainda com seu rosto muito próximo do dele e fitando-o nos olhos o tempo todo, Leonard pressionou com força o punhal contra seu tórax, retirando em seguida a lâmina agora vermelha.

Os olhos acinzentados de Oliver começaram a perder o foco aos poucos.

Meus ouvidos começaram a zumbir, e tudo em minha volta começou a girar enquanto eu gritava em profunda angústia e desespero.


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