Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 45
Tormento




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Passaram-se alguns dias, que se transformaram em semanas, as quais pareciam ser uma vida toda. Eu passava a maior parte de meu tempo na companhia de Zachary. Meu quarto - que um dia fora dele - nos servia como um lar, e a vista da janela era tudo o que precisávamos além daquele espaço para nos entreter. Desperdiçávamos longas tardes pálidas jogando cartas, rabiscando desenhos para minha parede e ouvindo discos. Em uma dessas roubamos o violão de Johnny e Zac improvisou-me as melhores versões do seu repertório grunge. Eu lhe ensinei a usar meu notebook, e ele achou muito estranho poder ver videoclipes a hora que quisesse, sem sua amada Mtv. Em algumas noites fugimos pelo telhado, a neve amortecia nossos pulos até o jardim de trás. Como ele não sentia frio, se divertia muito mais do que eu quando se jogava na camada branca sobre o chão para fazer anjos de neve. Ele sempre acabava me puxando para junto dele, e após seu sorriso caloroso que enrugava o canto dos olhos em resposta às minhas reclamações, terminávamos nos beijando sob as estrelas.

Todas as contracapas de meus livros continham a caligrafia dele. Ele se divertia me observando e escrevendo poemas nelas. Muito embora eu ache que contenham mais de suas ideias bizarras do que a minha pessoa, seus rabiscos frequentemente me faziam sorrir. Ele dizia que tinha medo de ficar tão feliz comigo a ponto de se tornar um cara chato. Eu lhe assegurei que ele sempre seria neurótico o suficiente para suas esquisitices.

Em uma das últimas manhãs antes do recesso no colégio, Stan me alertou algo sobre olheiras profundas em meus olhos. Mas eu sinceramente não me importei. Lembrei da conversa com Laurie, mas não havia muito o que ser feito no final de contas. Comecei a passar uma camada mais forte de base no rosto.

As férias de inverno chegaram e o Natal se aproximava. Haveria o festival celta de Yule na praça central em breve, comemorando o solstício de inverno. Meu pai e Johnny decoraram a casa com coisas encontradas no porão, havia alguns enfeites antigos e um pinheiro artificial dobrado repleto de pó. Naquele dia Johnny tentou roubar as luzinhas de meu quarto para uma festa que ele queria dar no seu - sim, no seu quarto - mas não foi um roubo bem sucedido. Ele deu sua festinha mesmo assim. Meu pai se trancou em seu quarto durante aquela noite inteira. A festa se espalhou para a sala, e no começo da madrugada já havia gente desmaiada na varanda da frente. Zachary se misturou com os convidados sentados ao redor da lareira, e aparentemente se divertiu muito observando o estado de cada um. Ele se entretia de maneira doentia em frente ao caos e sofrimento alheio, coisa que se eu não lhe conhecesse tão bem, me assustaria.

Durante essa festa, uma coisa estranha aconteceu. Por volta das três horas da manhã, a campainha tocou suavemente. Alguns dormiam na sala, outros, ainda acordados, contavam histórias entre um copo de bebida e outro. Meu irmão estava há minutos fitando a parede, e em volta dele alguns outros garotos riam e lhe perguntavam coisas. Suas respostas eram desconexas, o que fazia os garotos rirem ainda mais. Decidi ir eu mesma abrir a porta, e quando o fiz, não poderia ficar mais surpresa:

–Olá Johanna.

Do outro lado, Oliver me fitava com uma expressão presunçosa e distante. Ele estava estranho desde nossa última conversa, no cemitério.

–Oli - eu disse, pega de surpresa. - o que faz aqui?

–É uma festa, certo? - disse ele entrando, muito seguro de si. - Me chamaram, e então eu vim.

Dois garotos entre os que contavam histórias se levantaram imediatamente e vieram cumprimentar Oliver. Eles eram altos como ele, um deles tinha a pele um pouco morena e os olhos selvagens levemente puxados, traços indígenas. Seus cabelos, muito pretos, estavam presos em um coque.

Comecei a ligar os pontos lentamente. Quando meu irmão se virou para Oliver, por alguns minutos pareceu mais são:

–Ei cara, quem te convidou? - ele perguntou rispidamente.

Johnny nunca tinha ido muito com a cara dele.

Oliver entreabriu a boca como quem ia dizer algo, mas desistiu. Em vez disso lançou um olhar sorrateiro para o garoto-índio, que olhou bem fundo nos olhos de meu irmão e disse com uma voz grave:

–Eu quem o chamei.

Johnny, como se hipnotizado, concordou em silêncio lentamente, virando-se novamente para a parede e ignorando todo o resto. Oli e os dois garotos então se dirigiram para Zac, que ria e se divertia com o grupo à sua frente parecendo ignorar o restante. Ele não deu muita atenção para Oliver e seus amigos, o que os deixou irritados. Um deles pigarreou, e só então os olhos de Zachary se voltaram para eles, sem nenhuma surpresa.

–Precisamos falar com você, Walker - o outro garoto quem disse.

Ele era magro e usava uma armação retrô de óculos, que combinada ao seu cabelo com franja - muito preto - lhe dava a aparência de um beatnick dos anos quarenta.

Eu observava aquilo atônita. Segui o trio assim que eles começaram a seguir Zac até a porta dos fundos. Era uma situação muito estranha, mas naquela confusão ninguém parecia notar. Já no jardim, Zac, que segurava um copo vazio, se virou para eles e abriu os braços como quem pergunta o que ia ser. Ele usava seu suéter listrado favorito, alguns números maior que ele. Os três garotos parados diante dele estavam todos vestidos com roupas escuras. Nenhum pareceu notar que eu os observava da porta.

Oliver então tomou a frente, e com as mãos no bolso e postura impassível começou a dizer muitas coisas para Zac. Eu não conseguia ouvir nada. Ao ouvir suas palavras, Zac abriu seu sorriso de impertinência. Era certo que ele iria aprontar alguma coisa em seguida. Percebi os dois garotos ficando tensos.

Então Zac ficou sério, e gritou:

–Então quer dizer que o garoto Wingfield– pronunciou satirizando um sotaque antigo - está aqui para cumprir ordens?

E em seguida, abriu seu sorriso novamente, com um tom ameaçador. Percebi certa hesitação em Oliver.

–Zachary, eu acho melhor você colaborar - ouvi ele dizer.

–Ou o que, vai me empurrar com sua telecinese? - Zac devolveu chegando mais perto de Oli, cuspindo as palavras e mergulhando os olhos azuis nos cinzas dele.

–Posso fazer mais do que isso - ele disse em seu último momento de compostura.

O que se seguiu foi inacreditável. Oliver se atirou para cima de Zachary, e a força do impacto fez os dois pararem alguns metros depois. Oliver, por cima de Zac, lhe dirigia socos em seu rosto, enquanto dizia entre dentes:
–Sabe a melhor parte disso? Logo essas cicatrizes irão desaparecer em seu rosto, e eu poderei fazê-las uma por uma novamente.

Eu corri na direção deles gritando que parassem, e meus gritos pareceram despertar a atenção das pessoas da sala. Em poucos minutos, todo mundo estava no jardim gritando "briga". Os dois garotos de Oliver me seguraram, enquanto eu continuava gritando. Ninguém ousava intervir, a força dos impactos era claramente sobrehumana. Zac rolou no chão com Oliver e quando ficou por cima, segurou-o pelo casaco e o lançou com força contra a grade dos fundos. Ali caído, Oli tinha seus olhos em cólera. Ele tentou se levantar, mas seu casaco havia ficado preso na grade.

Zac foi até ele lentamente, parando em sua frente. O nariz de Zac sangrava, mas ele ainda sorria. O olhar de Oliver continha o mais profundo desprezo, os nós de seus dedos pálidos estavam roxos, e sua respiração era ofegante. Seus dois amigos estávam imóveis ainda segurando-me firme, e o grupo de pessoas ao redor se silenciou, talvez percebendo a gravidade da situação. Zac pareceu então se preparar para dirigir um golpe final segurando Oliver com uma das mãos, mas em uma fração de segundos, enquanto minha voz clamava um desesperado "não", Oli começou a proferir algumas palavras em latim, numa velocidade assustadora. Quando ele terminou, Zac pareceu sentir uma horrível dor no peito, e soltou Oli, se afastando e caindo no chão. Aproveitando a deixa, em poucos segundos Oliver e seus amigos pularam a grade e desapareceram pelo bosque.

x x x x

Desde esse episódio Zachary havia ficado estranho. Ele disse que aquele tipo de magia que Oliver havia usado não era algo Tenebris, caso contrário não teria feito o menor efeito nele. Eu pedia para que ele esquecesse aquilo, mas Zac insistia que eles o caçariam até o fim.

–Eu não sei ao certo o porquê de me quererem, sei que tem uma profecia envolvida - ele me dizia sentado do outro lado de minha cama. - E eu não estou mais seguro, nem você. Leonard não pode entrar aqui, mas Oliver pode. E aqueles dois amigos dele também.

–Aqueles dois garotos também são Tenebris? - perguntei.

–São, e eu tenho suspeitas de que sejam algo maior que isso também. Acho que mechem com magia negra. Se a Tradição souber disso expulsa Oliver e os outros dois no mesmo instante.

–Há algum controle sobre isso?

–É como se houvesse uma comunidade Tenebris, sabe, você tem que manter sua reputação. Muito embora a dos Tenebris em geral já não seja muito boa. Eles são vistos com certa disconfiança sabe, você nunca entende qual é a intenção deles. Nem de que lado estão, dos vivos ou dos mortos.

Fitei-o por alguns instantes, perguntando-me quando foi que ele adquiriu todo aquele conhecimento sobre a Tradição. Deve ser o tipo de coisa que se estuda nas longas horas vagas da morte. Subitamente, um mau pressentimento me preencheu. Olhei Zac ali, embora presente com mente distante, e senti medo.

–Zachary, tá tudo bem mesmo ou algo a mais te perturba?

–Eu não sei J - ele disse, fitando a paisagem da janela. - Eu sinto que estou me enganando. Não posso fingir viver uma vida normal quando na verdade o meu tempo já acabou. Eu convivi bem com isso nos anos de Abby, na verdade eu nem me importava se ela estava bem ou não. Mas eu não quero isso para você.

Senti um frio na espinha. Percebi que a possibilidade de perdê-lo me assombrava.

–Zac, eu estou bem, não me compare a Abby por favor.

–Não é questão de comparar, quer dizer, olha só para você! Quando foi a última vez que se divertiu fora do seu quarto? E essas olheiras em seu rosto? Eu lhe tiro energia constantemente Johanna, e eu sei disso. E eu aceito isso. Não é egoísmo para você?

Eu não disse nada. Apenas fiquei mirando sua silhueta pálida, enquanto ele falava gesticulando agonizantemente.

–Sabe, muitos já me chamaram de psicopata, em vida ou nessa espécie de vida que tenho agora, e eu sinceramente ponderava se estavam certos - dizia ele com convicção e lágrimas nos olhos. - Mas desde que eu te conheci, comecei a agir com mais cautela. E agora eu sinto pela primeira vez, o que um psicopata jamais seria capaz de sentir: a culpa.

–Psicopatas sabem mentir muito bem também - eu disse séria, em desafio.

Ele endireitou a postura, quase como se estivesse ofendido.

–Sinceramente acha que minto para você? Que outro motivo eu teria para me sentir mal? Os dias que passamos juntos fizeram com que eu me sentisse novamente vivo, Johanna! Nem em vida experimentei essa felicidade que sinto com você! - ele dizia em um tom crescente de voz segurando minhas mãos, e eu percebi que ele estava a beira de um ataque Zachary.

–Zachary, calma...

–Não me peça para ficar calmo! - ele agora gritava. - A vida toda eu tive que ouvir isso, as pessoas acham que eu não consigo me controlar, que eu tenho algum tipo de problema - ele agora perdia a razão e o foco da conversa, e estava de pé andando em círculos enquanto cuspia seus traumas.

–Zachary, para com isso! - gritei em tom firme, e ele se calou e virou-se para mim. - Estávamos falando sobre você se sentir culpado. Pare com isso também.

Ele então veio até mim e me deu um abraço desesperado, e senti suas lágrimas correrem pelos meus ombros. O abracei com mais força, sentindo-me subitamente fraca.

Adormecemos ali abraçados naquela tarde.


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