Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 42
Memórias Póstumas: parte I




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–J, me responda - sua voz falhou, como se muitas emoções lutassem dentro dele decidindo qual iria ser expressada.

–Oi Zac - consegui dizer com voz trêmula.

Ele estava sentado com as pernas cruzadas de índio, ressaltando os rasgos no joelho de sua velha calça jeans surrada. Ele se levantou apressadamente, revelando seu rosto das sombras e me fitando com seus olhos profundamente azuis. Zac então veio até mim timidamente, parando diante de onde eu estava. Ele esfregava os dedos uns nos outros como quem não sabia onde colocar as mãos, muito menos o que fazer em seguida.

Eu me encontrava encostada na parede ao lado da porta, ainda sem uma atitude seguinte planejada. Meu corpo vibrava e meus dedos pareciam estar adormecidos, a informação parecia ser aos poucos assimilada pelos meus sentidos que gradativamente retomavam. A luz estava apagada, apenas a luz pálida da janela iluminava parcialmente o quarto. Me aproximei em silêncio e toquei - hesitante- seu rosto, indo dos ossos de sua maçã do rosto até seu queixo triangular. Em seguida passei os dedos por seus cabelos bagunçados, que terminavam em seus ombros irregularmente.

E então, como se ambos soubessem que fosse o certo a se fazer, nós dois corremos para o abraço um do outro desesperadamente. Não sei o quanto durou, mas enquanto ele me apertava em seus braços era como se uma energia há muito reprimida emanasse de nossos corpos. Como recuperar um membro há muito perdido, era como se sentir completa. O abraço, inicialmente desesperado e angustiado, se transformou aos poucos em terno. Era como se tivéssemos nos livrado de todo o peso da terra sob nossos ombros.

Os olhos dele refletiam enquanto mergulhavam nos meus. Permanecemos em silêncio o tempo todo. Havia algo de sagrado nele, que explicava mais do que mil palavras. Zac afagou meus cabelos e percorreu os dedos pelo meu rosto, terminando em meu pescoço.

–Johanna... - disse finalmente.

–Por onde você esteve? - perguntei, a voz ainda aflita denunciando o estado de torpor.

–É complicado - ele disse. - Mas eu prometo responder todas as suas dúvidas J. Sei que devem ser muitas. Eu senti tanto a sua falta!

–Por que você nunca me disse... - comecei a dizer baixinho.

–Que estou morto? Acho que não seria uma boa maneira de começar uma amizade - ele disse com um sorriso triste, me fazendo sorrir também, e em seguida lágrimas tímidas ousaram percorrer meu rosto.

Seus dedos as secaram imediatamente com as mangas de seu suéter. Ele me contemplava como se eu fosse sagrada.

–Zac, como isso pode ser possível? – perguntei, as lágrimas ainda descendo promiscuamente.

–Eu também não sei, Deus, eu sou tão perdido quanto você está agora! – agora os olhos dele que se enchiam de lágrimas, e suas mãos se fecharam em punhos.

–Me conte o que te ocorreu, Zac. Preciso saber a verdade, vinda de você. Não me esconda nada – pedi.

Nós nos sentamos no tapete do meu quarto como costumavámos fazer nas tardes em que ele chegava sorrateiro pela minha janela. Havia certa nostalgia no ar, como se aquilo tivesse ocorrido há séculos. Ele respirou fundo, secou as lágrimas e começou a contar, numa expressão impassível, olhando em meus olhos:

"Em 1992 eu e minha família nos mudamos de Bloomfield para cá, para essa mesma casa. Meu pai era um psiquiatra e foi transferido para o hospital daqui, na época estava dando muitos surtos de pessoas que viam coisas ou algo assim na região. Foi uma breve vida em Blue Falls, o início da minha decadência. Eu não tinha muito o que fazer, e não conhecia ninguém, bem, mente vazia, você conhece o ditado."

Seu olhar, antes focado em meu rosto, agora começava a visualizar lembranças enquanto descrevia:

"Meu pai trabalhava muito, e minha mãe estava tão sozinha aqui quanto eu. Conhecíamos os vizinhos, para quem ela fazia questão de manter a imagem de famíia perfeita. Eu fiz um amigo, Andrew Parks, você conheceu o pai dele naquela noite de Halloween. Nós dois gostávamos de descer as ladeiras de skate e pichar muros, não demorou muito para eu ser taxado como a má influência. Mas eu era um bom garoto. Tudo o que eu queria era viver aventuras e escutar Nirvana no fim do dia."

Ele então estalou alguns dedos e baixou o olhar.

"Mas bem, a situação em casa foi ficando cada vez mais crítica. A relação de meus pais ia de mal à pior isso não ajudava na dinâmica familiar, embora por fora tudo fosse às mil maravilhas. Eu ia para a escola, mas eu odiava todo mundo. Ensino médio é terrivelmente cruel, J. Você é jogado em um cárcere diário e obrigado a conviver com pessoas as quais a única coisa que vocês têm em comum é a idade. Uma angústia começou a preencher meus dias, e mesmo com Andrew, eu me sentia terrivelmente sozinho. Eu me refugiava nos bosques, o unico lugar que me fazia sair de todo aquele caos. Nos bosques eu me sentia livre. E um pouco depois eu descobri a cocaína, que passou de diversão casual para uma boa companheira."

Uma pausa se seguiu. Ele se levantou, escolheu Unknown Pleasures entre os meus discos e colocou para tocar. Encostou-se em minha prateleira batendo as mãos nas pernas no ritmo da música, e sua expressão era de quem buscava as palavras certas para continuar:

–Bem, então minha percepção do mundo foi ficando mais limitada. Era como se eu só visse o que estava ao meu redor. Ignorava meus pais, o colégio - o qual reprovei por falta - e fui me afastando de Andrew, muito embora continuássemos amigos. Ele tinha o basquete e um futuro brilhante, e tinha noção de que não podia desperdiçar isso. Eu não tinha nada, J. Eu não tinha nada.

A primeira faixa do disco terminou, e ele se sentou em minha frente de novo. Colocou os cabelos para trás e de volta fitando-me nos olhos, retomou a narrativa, falando cada vez mais rápido:

"Meus dias eram compostos por ócio e eu me via frequentemente entediado. Pichar coisas ou a cocaína em si já não tinham mais tanta graça. Eu sempre escrevi muito, escrevia pelas paredes, escrevia nos meus diários; mas as palavras simplesmente me abandonaram aos poucos. Aconteceu então que certa vez, em uma euforia repentina, decidi ir até o porão da casa em busca de algo. Era como se eu estivesse sendo guiado, foi uma sensação entorpecente. Eu achei ser apenas mais um efeito químico em meu cérebro, só mais tarde eu entenderia o que se passou naquele dia. Como se soubesse onde encontrar, eu levantei uma das tábuas do assoalho e encontrei uma caixa enferrujada repleta de fotos de antigos moradores e o que me chamou mais atenção no dia: um kit de morfina do século XIX."

Meus olhos se atentaram nessa parte. Sem o interromper, fui até a gaveta de minha escrivaninha e peguei a caixinha encontrada por Johnny em seu armário. Eu a entreguei a ele, sem dizer nada. Zac a pegou, percorreu-a suavemente com os dedos e a abriu, analisando-a com nostalgia.

–Então você sabe do que eu estou falando - disse sério.

–Meu irmão encontrou faz um tempo e me deu - respondi, dando os ombros.

–Ela quem encontrou você, na verdade - ele comentou baixo enquanto a manuseava.

–O que quer dizer com isso?

Zac fechou-a repentinamente, e continuou sua história:

"Dentro dela havia agulhas e morfina aparentemente intactas. Eu nunca havia me injetado, mas naquele momento, durante a euforia, pareceu ser a melhor coisa a se fazer. Eu estava tendo uma epifania, as palavras há muito ausentes me escorriam pelo cérebro como o sangue de uma veia livrando-se de um aneurisma, era finalmente o meu Nirvana. Eu me sentia vivo."

Ele sorria com as lembranças, enquanto eu estava mais séria do que nunca. Seu olhar se tornou sombrio, e a alegria nos seus lábios desaparecera gradativamente quando ele continuou:

"Aquela então foi a minha porta de entrada para Leonard. Não demorou muito para que ele se revelasse para mim. De início, achei ser mais uma alucinação, coisa que havia se tornado rotineira durante as madrugadas. Mas ele conseguiu se provar bem real, e me trazia as mais diversas substâncias me fazendo experimentar sensações extraordinárias. Ele parecia se alimentar de minha dor e angústia, e sabia que estava me tornando dependente de tudo aquilo, e consequentemente, me tornando dependente dele."

Ele acelerou o ritmo, cortando os detalhes, sua fala inflamada:

"Eu me tornei violento. Brigava com meus pais, briguei no colégio quando finalmente o abandonei por definitivo. Leonard se tornou minha melhor companhia. Ele alimentava meus devaneios psicóticos, os quais eu sempre tive certa tendência, digamos. Ele incentivava, sem eu perceber, a minha auto destruição. Coloquei fogo em meu quarto, só pelo prazer de ver as coisas queimarem. Fui expulso de casa. Fiquei um tempo com Andrew, mas briguei com ele e sr. Parks na época, que já não ia com minha cara. Os bosques, sempre libertadores, não eram mais suficientes para fugir de todo aquele caos. Ele estava dentro de mim."

Seus olhos se encheram de lágrimas. Estendi minha mão para ele e segurei a sua, trêmula.

–Você já sabe como isso termina - decretou sério.

Concordei em silencio, mas esperando que ele prosseguisse. Vendo que não ocorreu, perguntei suavemente como aconteceu.

–No jardim de trás. Eu pulava as grades pela noite, sem que meus pais me vissem, e me recostava sobre a árvore turva para só então me sentir protegido e fingir que tinha um lar. Numa dessas noites Leonard surgiu. Ele também havia me abandonado, fazendo-me ter as piores crises de abstinência que você possa imaginar. Naquele dia ele estava assustadoramente calmo e pacífico. Sem dizer uma palavra, estendeu-me uma agulha e um elástico, eu sabia o que fazer. Foi a última vez que eu me injetei. Foi a última vez que eu fiz qualquer coisa.


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Notas finais do capítulo

Tenho uma notícia interessante: Blue Falls ganhará um Spin-off focado na vida de Zac! (ou seja, uma fic curtinha derivada de Blue Falls inteiramente dedicada a nos contar a vida e morte de nosso querido garoto Walker). Não sei se irei postar após concluir essa história ou paralelo à ela, porque pode acontecer essa nova narrativa dar spoilers e tudo mais. Mas me digam o que vocês acham da ideia. Mas já está sendo escrita, isso adianto à vocês hehe



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