Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 37
Beco de Odin




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A sala de jantar de minha casa estava movimentada, com um ar fresco de verão entrando pelas janelas. Do forno, saía uma forma de waffles quentinhos e recém-feitos, o qual uma senhora loira muito bonita tirava rapidamente servindo-os na mesa feita do café da manhã. Na mesa, um homem aparentemente apressado servia-se e comentava algo sobre a economia atual olhando por cima dos óculos, enquanto lia o jornal. Eu tentei perguntar quem eles eram ou o que faziam ali, mas era como se eles não me ouvissem ou eu estivesse invisível. Da sala ouvia-se uma transmissão acompanhada de chiado, e a tv que ocupava o móvel não era a tela plana finíssima que temos na nossa sala, mas sim daquelas antigas quadradas e enormes.

–Ah, você está aí – disse a mulher, olhando para um ponto atrás de mim.

Me virei, e meu corpo inteiro congelou onde estava. Atrás de mim havia um Zac vestido apenas com samba-canção, cabelo todo bagunçado e olhos vermelhos.

– Finalmente garoto, estou te chamando pra descer há horas – ela disse baixo com certa amargura implícita, enquanto servia café em uma caneca. – Mais uma manhã em que você não vai pra aula por que se atrasou. Acha que nunca terá responsabilidades na vida?

–Você é patética – Zac disse, com a fala misturada. – Sempre me enchendo, me apressando, todo dia o mesmo blablabla

Zachary, por favor, tome seu café – ela continuava como se não tivesse ouvido, mas suas mãos estavam trêmulas segurando a xícara.

–Eu não quero porcaria nenhuma de café! – disse ele, agora gritando enquanto esfregava os olhos, parecia um tanto quanto fora de si.

O homem então olhou seu relógio de pulso e fechou o jornal bruscamente ao se levantar.

–Drogado de novo, eu suponho – disse com um olhar reprovador para a mulher, que olhava para as mãos com a expressão de quem iria começar a chorar. – Isso é culpa sua, sempre fez todas as vontades dele, tá aí seu resultado. Aí está seu filho perfeito, o único, o prodígio.

E dito isso seguiu até a porta da frente, e colocou seu casaco com movimentos bruscos.

–Cala a boca seu hipócrita, você acha que não tem papel nenhum nisso? – Gritou Zachary para ele, ainda com a fala arrastada.

O homem saiu sem olhar para trás, batendo a porta. Zac então foi até a janela e começou a gritar ofensas para o pai, e sua mãe apressou-se para segurá-lo e afastá-lo dali aos prantos.

–Você não quer que os outros ouçam, não é? – ele dizia agora para ela, ainda no mesmo tom - Não quer que os outros vejam que sua família não é perfeita! Não quer que eles sintam algo aqui além de cheiro de waffles em uma manhã ensolarada, oh que lindo dia não é mesmo Sra. Walker?

–Zachary, o que está acontecendo com você? – ela dizia aos soluços, enquanto o filho continuava gritando:

–Você é outra hipócrita sabia? Ah sim é isso que você é. Vive numa mentira, que você mesma inventou!

E então Sra. Walker deu um tapa no rosto de Zac, que encostado na parede sentou e começou a choramingar. Ela levou as mãos a boca, enquanto chorava, e a imagem começava a ficar borrada diante dos meus olhos.

Acordei com todos os músculos retraídos.

Ainda confusa vesti meu suéter vermelho, e enquanto enfiava as pernas da calça repassava o sonho repetidamente, me perguntando ainda se havia sido de fato sonho, pois tudo me pareceu muito real. Sem perceber eu já estava a caminho do Masefield, e então me dei conta de quanto tempo não fazia aquilo. Me assustei com a ideia de como poderia ser minha recepção. Subindo as escadas, adentrando no imenso corredor, lendo a placa indicativa: 212. Torcendo para não ser notada. Mas assim que dei o primeiro passo para dentro da sala, senti os olhos de todos sobre mim. Em especial Stanley, que conversava com alguém e interrompeu quase que de imediato e gritou:

Santa Maria Antonieta, seria isso uma miragem?

Soltei um riso, e senti meu rosto enrubescer. Ouvi um riso baixinho mútuo da sala e então o gelo que pairava o ar foi quebrado. Quando percebi já estava sentada em minha mesa. Stan se debruçou sobre a sua, atrás de mim, e começou a tocar meu cabelo. Percebi alguns olhares aleatórios sobre mim, e então me lembrei que da última vez que estivera ali ainda tinha meus longos fios. Soltei um suspiro.

–Então? – Stan questionou com um olhar perdido de quem tinha perguntas demais e não sabia por qual começar. Por algum motivo o ‘então’ parecia resumi-las.

–Então que aconteceram muitas coisas. Laurie não disse nada? – Perguntei surpresa.

Achei que a última coisa que eu precisaria fazer seria atualizá-los.

–Como se você não a conhecesse – disse Stan revirando os olhos. – Aquela é um túmulo, literalmente.

Resumi tudo oprimindo os fatos que saíam da normalidade. Falei que meu pai havia sido sequestrado – achei melhor colocar desta forma – e que eu tinha sofrido uma espécie de estado de choque e tudo mais. E o cabelo? Bem, estava na hora de mudar.

A aula começou e seguiu sem mais problemas, com alguns professores me cumprimentando ocasionalmente surpresos. No intervalo, encontramos com Izzy e Nathan no terraço, onde Laurie também estava. Tive de repetir a historinha toda, enquanto Laurie acompanhava com um olhar travesso. Ela me puxou num canto momentos depois, e eu contei a ela do meu sonho.

–Que estranho – ela dizia, franzindo o cenho com uma expressão pensativa – Isso parece... uma memória não é? Memórias são como fantasmas...

Ela então levantou as sobrancelhas como se lembrasse de algo subitamente, e continuou:

–Mas é claro, você está recebendo fragmentos de memória dele, J. Você não viveu aquilo, não teria como saber. E convenhamos, você não é mais aquela cética que conheci, também suspeita de que não foi uma simples invenção de sua mente, não é?

Não respondi, esperando que ela continuasse.

–Isso quer dizer que ele está por perto. E está te sondando pelo visto. É como se você tivesse recebido a vibração dele de alguma forma. E bem, você já sabe o que fazer quanto a isso.

O feitiço. Sim, eu sabia o que era necessário fazer.

–Ei Laurie, olha só – alguém chamou de longe, interrompendo-nos. Virei e era Stan, segurando um celular com a tela virada para nós.

–Faz seu tipo? – perguntou com uma expressão provocativa, enquanto os outros davam risinhos baixos.

Percebi que na tela havia uma foto de uma garota com cabelos escuros, e parecia usar uma fantasia de bruxa diretamente saída de uma sex-shop.

Laurie apertou os olhos a fim de ver a foto, e riu ao entender do que se tratava.

–Caro Stan, de bruxa já basta eu em um relacionamento, não acha?

Como assim?

–Como assim? – Verbalizei meu pensamento.

–Ah J, como se você não soubesse – Stan disse com um desdém teatral, ainda rindo.

–Saber do que? – eu ainda não estava entendendo nada.

–Que Laurie gosta de garotas, J – Nathan quem disse, fazendo minha boca se abrir involuntariamente.

Olhei para Laurie, que acendia um de seus cigarros orgânicos e ria enquanto observava a cena.

x x x x

Descendo as escadas do Masefield no fim da aula, tirei do bolso da calça o pedaço de papel amassado onde estava o famoso feitiço. Mas dessa vez, percebi uma pequena anotação de canto de folha, aparentemente à lápis, em uma caligrafia diferente:

“Rua de Odin, 1001, centro. Procure por Aileen.”

Eu não fazia a mínima ideia de onde isso iria ficar, mas nunca fui do tipo de memorizar endereços. Dei os ombros e continuei caminhando, porém procurando involuntariamente o nome da tal rua em cada placa. Já estava quase perto de meu bairro quando, do outro lado da avenida, uma ruela entre um barzinho com mesas na calçada e um prédio antigo e mofado me chamou a atenção. Para minha surpresa, o nome da plaquinha da esquina coincidia com o nome da rua em meu pedaço de papel. Apertei os punhos enquanto fazia o dilema ir ou não ir mentalmente, mas quando me dei conta já estava atravessando a estrada. O barzinho mais lembrava um pub, e nas mesinhas da calçada havia uns caras barbudos conversando e fumando, o que reforçava essa imagem. Um deles ficou me olhando por cima dos óculos até eu sair de seu campo de visão. A lateral do prédio mofado era repleta de trepadeiras, dando um ar verde ao local. Atrás do restaurante havia uma pequena praça com um gazebo e dois bancos, e entre eles havia um caminho ladrilhado que seguia por entre as árvores. A ruazinha terminava no portão enferrujado de um terreno abandonado, e percebi então que se tratava de um beco.

Olhei em volta, procurando o número que constava na folha e nada. O endereço poderia ter mudado, quem sabe? Voltei e me sentei num dos bancos da pracinha. “Deve ter sido um engano” pensei, mesmo sabendo no fundo que não era. Já estava pensando no que eu iria fazer quando avistei algo inesperado na lateral o gazebo: havia uma pequena tábua em sua lateral com uma flecha rabiscada apontando para o caminho entre as árvores. Dei os ombros. Já tinha ido até ali não é mesmo? Me levantei e segui a trilha ladrilhada ignorando o fato de eu estar seguindo uma flecha anônima rabiscada. Onde eu achava que estava, na era medieval ou algo do tipo? Mas não, no momento a estranheza daquilo tudo nem me passou em mente. Conforme caminhava as árvores iam ficando mais densas dificultando a passagem, quando ao final o ladrilho desapareceu e alguns galhos obstruíam a passagem. Os afastei, e para minha surpresa, uma clareira revelou-se do outro lado. Nela ficava uma casinha de dois andares de madeira, com uma varanda repleta de sinos do vento pendurados e outros objetos estranhos. Um pouco adiante de onde eu estava, duas colunas de pedras demarcavam a entrada, elas eram repletas de desenhos em vermelho que lembravam hieróglifos. Logo após elas, uma plaquinha indicava: 1001.

Fui até a porta e dei algumas batidas. Um pouco depois a pequena janelinha corrediça que ficava no centro da porta abriu se e do outro lado o rosto de uma mulher apareceu através da grade:

–Sim?

–Oi, eu gostaria de falar com Aileen... – falei insegura me perguntando se havia pronunciado certo.

Os olhos da mulher esboçaram surpresa, e logo em seguida se estreitaram.

–Quem é você? – ela perguntou, como se estivesse receosa em abrir.

–Meu nome é Johanna, me indicaram vir aqui – comecei, me dando conta de que nem eu sabia ao certo o que fazia ali.

A mulher continuou me fitando desconfiada, quando comecei a dizer que não era nada e dar meia volta para ir embora achando aquilo tudo muito estranho. Então senti um ruído de trancas sendo destrancadas e ao me virar, a porta se abriu.

–Entre – a voz da mulher veio de dentro.

Olhei em volta. Não havia ninguém ali, apenas o céu e o vento frio nas copas das árvores. Respirei fundo e entrei, o chão rangendo aos meus pés. Por dentro a casa parecia uma lojinha. Tirei meu casaco e o pendurei ao lado da porta, o ar ali dentro era quente e acolhedor. Havia uma lareira acesa, prateleiras empoeiradas com livros e outras com pequenos artefatos e objetos, um balcão com pedras e ervas além de muitos, mas muitos objetos pendurados no teto no mesmo estilo da varanda de fora. Observando melhor notei que a maioria eram ossos e coisas do tipo, parecendo amuletos ou talismãs. Comecei a entender em que tipo de lugar eu estava.

–O que lhe traz aqui, Johanna? – a mulher perguntou, sua voz repentina me dando um susto.

Ela havia surgido sem que eu percebesse de pé atrás do balcão. Aparentava ter meia idade, seus cabelos grisalhos eram ondulados e muito compridos. Usava um vestido longo estampado e tinha um ar imponente, assim como sua voz. Levei até o balcão o pequeno papel dobrado já amassado que trazia em minhas mãos, e a mulher colocou um par de óculos finos e arredondados sob o nariz pontudo e o analisou cuidadosamente. Quando leu e pareceu entender do que se tratava, levantou os olhos para mim.

–Aonde arranjou isso? – perguntou preocupada.

–Você pode me ajudar? – rebati com outra pergunta.

Ela pareceu pensar um pouco, ainda fitando o papel, quando finalmente soltou a respiração e começou a andar pelo cômodo enquanto ia dizendo consigo mesma:

–Bem, vejamos o que você irá precisar... verbena, sálvia, acácia, alfazema... por onde anda o ginseng?

Dizia enquanto pegava erva por erva, algumas no balcão, outras dentro de algum livro específico na prateleira.

–Você é Aileen? – perguntei, encostada no balcão observando-a pra lá e pra cá.

–Pra você sim, mas não espalhe. – ela disse em tirar os olhos da prateleira na qual procurava o ginseng.

–Como assim? - perguntei enquanto tentava alcançar um pequeno crânio pendurado, afastando rapidamente minha mão ao sentir que ele era real.

–Digamos que eu não seja Aileen pra todo mundo. Ah! Aqui está.

E pegou um vidrinho ao fundo da estante concluindo a lista. Ela guardou tudo em uma sacolinha de pano vermelha e me entregou.

–Espero que você saiba de onde isso veio – disse referindo-se ao feitiço, devolvendo-me o papel.

–Quando que fica? – Perguntei guardando as ervas e pegando a carteira.

–Oh, não se preocupe. Já haviam me avisado que você viria. Digamos que seja um favor.

Franzi o cenho. Só podia ser Laurie. Ela teria deixado tudo pago para mim? Como ela sabia que eu realmente iria até lá?

–Acho que você desconhece quem é sua amiga, afinal – Aileen disse ao ver minha provável expressão confusa. – Mas não se preocupe, minha cara. Em geral as Sumas Sacerdotisas não costumam dar muita explicação mesmo.


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