Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 36
Família Castenmiller: Parte II




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O vento tornava-se violento lá fora. A copa das árvores e os arbustos balançavam-se violentamente e as nuvens tinham uma tonalidade cinza que gradativamente ficava mais escura. Sra Castenmiller usava um chapéu o qual precisou segurar para que não voasse, enquanto seus cabelos loiros iam conturbadamente para todos os lados. Rapidamente entrou, seguida por seu marido.

–Eles chegaram – eu disse virando-me para Laurie, que se apressou a terminar seu chá.

Sentei-me ao seu lado, perguntando-me porque mesmo eu estava ali. Peguei a outra xícara sob a mesinha e levemente soprei a fumaça que se formava do líquido fervente. Aproveitei o calor da xícara para esquentar minhas mãos, sempre geladas. Vozes se aproximaram e ouvi passos subindo as escadas, enquanto balançava minha perna inconscientemente. Até que a senhora que nos atendeu apareceu novamente à porta, acompanhada pela mãe de Abby.

–Temos visitas – ela disse olhando para nós, com um olhar terno.

–Olha só quem temos aqui! – exclamou a senhora Castenmiller, que tirou o chapéu, entregando-o a senhora. Em seguida ela veio até Laurie e a abraçou de uma maneira contida, falando algo sobre como ela não havia mudado.

–Esta é Johanna – Laurie me apresentou, quebrando o gelo. Imediatamente coloquei a xícara sob a bandeja e me levantei para cumprimenta-la, deslocada.

–Que bela moça – ela disse com um sorriso implícito nos lábios.

Ela se sentou na poltrona à nossa frente e começou uma conversa superficial com Laurie, sobre assuntos mundanos. Ela tinha uma maneira autoritária de conversa, do tipo que não dá muita opção ao ouvinte a não ser sorrir e concordar. Seus cabelos louros dourados batiam nos ombros, formando ondas no final. As raízes escuras denunciavam sua cor natural, e seus olhos, castanhos, transmitiam um ar severo.

–Margot, traga-me uma xícara de chá, sim? – Dirigiu-se de repente à senhora, que assentiu ao sair da sala. – Então – disse voltando-se à nós novamente – A que devo a honra da visita?

–Bem – Laurie começou. – estamos preocupadas com Abby, e imaginamos que a senhora também...

–Ah – ela interrompeu. – Abigail tem se tornado o fardo de minha vida. Cristo, como essa garota me decepciona – disse apoiando a testa nas costas da mão, com um ar cansado. – Não é a primeira vez que ela foge, mas é a mais significativa. Já vai fazer duas semanas.

Enquanto isso, dona Margot entrou novamente trazendo o chá, deixando-o na mesinha no centro das poltronas e saindo novamente.

–Abigail se tornou uma menina difícil, você sabe – dizia olhando para Laurie, e ocasionalmente para mim, como quem pede uma concordância. – E desde que surgiu aquele rapaz, a situação piorou de vez.

Ela se levantou, foi até uma mesinha de canto da sala onde ficavam algumas garrafas aparentemente antigas de Whiskey e levou uma delas até a mesinha onde sua xícara estava, completando-a com a bebida para só então toma-la.

–Ela era uma menina tão boa... – disse com o olhar vazio, entre um gole ou outro. – Sempre fora solitária, mas não arrumava problemas. E de repente, toda essa rebeldia, sem aparente causa...

Laurie ia concordando e reagindo nas horas determinadas conforme a mãe de Abby falava, como uma boa ouvinte.

–Ela levou alguma coisa? – Perguntou em certo momento.

–Ah sim, venham ver.

E com isso levantou-se, indicando para seguirmos. Subimos dois lances de escada chegando ao último andar, onde havia apenas um cômodo central com uma porta de cada lado. Ela seguiu para a da esquerda, onde entramos. As paredes do quarto eram cobertas com papel de parede rosa chá, e uma delas com um floral vintage. A cama tinha uma cabeceira branca de ferro adornada com rosas, e dois ursinhos descansavam sobre ela. Abajures estampados de cada lado, uma penteadeira, um tapete central, escrivaninha, prateleiras com livros e decorações delicadas: o quarto de Abby. Aquilo realmente não parecia condizer muito com ela. Estava mais para uma versão oposta.

–Vejam – disse a mãe dela, abrindo a porta dos armários e as gavetas: tudo vazio.

–Poxa vida – Laurie comentou, observando tudo minuciosamente com seus pensamentos provavelmente já muito à frente dos meus, que ainda estavam tentando conciliar a Abby que eu conhecia com a Abby que sua mãe provavelmente achava ter.

–Não sei quando ela teve tempo de pegar tudo, as janelas estavam trancadas como sempre deixamos – comentou ela, encostada na porta. – Eu falei para Margot, ela não vigia direito essa garota. Desde que ela parou de ir para o colégio fica aqui dias e dias, mas de que adianta – disse dando outro gole em sua xícara – ainda se isso a mantivesse longe de encrenca.

–Não acha que ela fica muito tempo sozinha? – Laurie questionou, séria.

–Bem, eu tenho mais o que fazer do que ficar atrás dos dramas de Abigail. Até tentei entender o que estava acontecendo quando ela começou a ficar assim difícil, mas visto que não adiantava, deixei estar. Ela tinha o terapeuta para lidar com isso. Já faço muito por ela deixando-a viver conosco. Poderia muito bem coloca-la em um colégio interno, como tantos já me sugeriram. Alguns anos de disciplina a fariam bem. Ainda tive a bondade de deixa-la ficar, veja só – dito isso, deu o gole final na bebida em xícara.

Seu discurso parecia-me inacreditável. Não era muito difícil entender porque Abby fugira daquele lugar.

–Marie? Cadê você? – Uma voz chamou vinda da escada, dispersando nosso assunto.

De repente, o Sr. Castenmiller surgiu, ignorando o fato de estarmos ali.

–Ah, você está aí. Veja, chegaram nossos documentos da procuração – disse entregando um envelope para a mãe de Abby, que agora eu conhecera seu nome: Marie.

Ele tinha os cabelos grisalhos e a pele muito alva, assim como Abby. Seus olhos escuros, profundos, lembravam os da filha. Ele vestia um suéter verde escuro e tinha uma expressão imparcial. Laurie havia me dito que os dois eram advogados, ou algo do tipo do ramo da justiça. Ele lhe deu um leve aceno de cabeça, como se ambos já soubessem o que aquilo significava, e desceu as escadas com ar de imponência.

–Meninas, tenho alguns assuntos para resolver agora – ela nos disse, e imediatamente Laurie deu a entender que já estávamos de partida. Dona Margot apareceu e nos acompanhou até a entrada, com sua aura gentil que tornava aquele lugar enorme levemente acolhedor. Na saída, quando me virei para dar uma última olhada no casarão Castenmiller, vi a silhueta de Sra. Marie na janela do quarto de Abby, acompanhando-nos com o olhar severo.

x x x x

–O que foi isso? – Perguntei para Laurie quando já havíamos nos afastado, caminhando nas ruas arborizadas em direção a algum ponto de ônibus.

–Sempre foi uma família meio doida – disse olhando para frente. – Abby fazia de tudo para chamar a atenção dos pais, que sempre estavam muito ocupados com negócios e seus próprios egos – disse cuspindo as palavras, como se tomasse a indignação de Abby para si. - Ela foi praticamente criada por dona Margot, a governanta da casa. De uma alma muito boa, coitada, ter de se submeter a patrões tão desprezíveis.

Seguimos em silêncio, e quando me dei conta já estávamos passando na frente do cemitério. Ao perceber meu olhar, Laurie riu e respondeu como se lesse meus pensamentos:

–Sim, estamos voltando a pé. É bem melhor sentir a brisa em seu rosto do que pegar ônibus não é?

Bufei teatralmente. Eu gostava de caminhar, mas digamos que já havia sido um longo dia.

–Já que estamos aqui, vamos dar uma volta no cemitério – Laurie disse subitamente, puxando-me e virando em direção à praça que levava até ele.

–Um passeio no cemitério? – Perguntei começando a rir. Por essa eu não esperava, mas o que esperar de Laurie afinal?

Atravessamos o portão de ferro negro na lateral da catedral gótica e seguimos por entre os túmulos. O céu estava naquela sua transição entre dia e noite e o vento continuava a soprar como se fosse o prelúdio de uma chuva, que pelo visto não viria tão cedo. Laurie caminhava na direção norte, onde ficava o túmulo de Zac. Involuntariamente comecei a procurar seu nome nas plaquinhas das lápides, quando enfim avistei o vaso de papoulas vermelhas, algumas já começando a secar. Me aproximei e sentei-me em frente da lápide, tirando as flores secas do vaso enquanto fitava o mármore escuro diante de mim. Sem que eu percebesse de imediato, Laurie estava de pé atrás de mim observando-me. Ela então tirou uma vela da bolsa e acendeu-a com seu isqueiro. Em seguida pingou algumas gotas da parafina derretida no topo da lápide, onde colocou a vela. Nós duas ficamos ali sentadas por algum tempo, sem conversar ou olhar para nada em específico, ambas com a mente distante. Os lampadários começaram a acender conforme escurecia, e a vela queimava silenciosamente.

–Johanna, eu tentei evitar o assunto o dia todo, mas tem algo que ficou pendente – A voz rouca de Laurie irrompeu o silêncio, e ela estava com aquele olhar distante misterioso. -Precisamos falar sobre Leonard Mordrake – ela completou.

Ao contar a história do que havia ocorrido, cortei muitas partes sobre Leonard temendo alguma reação ou preocupação da parte dela, mas pelo visto eu ainda não tinha aprendido que para Laurie não era realmente necessário contar as coisas para que ela as soubesse.

–Lembra do feitiço que eu lhe passei naquele dia do ouija? – Ela perguntou.

Fiz que sim com a cabeça, já imaginando o que viria a seguir.

–Então, amanhã será uma noite de Lua Negra. E você precisa fazê-lo urgentemente, a presença de Leonard perambulando na sua casa não é nada boa. Você e sua família definitivamente não estão seguros.

Refleti um pouco antes de responder. O feitiço significava nada de espíritos na minha casa. Nada de espíritos, significava nada de Zac. Laurie me devia algumas explicações sobre esse feitiço, então não achei errado levantar essas questões para protelar um pouco esse assunto:

–Onde você conseguiu aquele feitiço, Laurie?

Ela me olhou como se eu tivesse feito ela perder o foco de algum pensamento.

–Como assim? – Ela perguntou num tom natural, mas no fundo era como se estivesse ultrajada. Foi então que percebi como eu nunca a contrariava ou perguntava coisas além o que devia.

–Aquele pedaço de folha rasgada, com uma caligrafia que não é a sua... fiquei curiosa.

–Não minta para mim, J – ela disse enquanto inclinava um pouco a cabeça para o lado, como se me vendo de outro ângulo fosse capaz de ler meus pensamentos.

–Tudo bem, tudo bem – levantei os braços em sinal de rendição – eu sei de onde aquele papel veio, e sei que ele não deveria ter saído de onde saiu.

Laurie estreitou os olhos, e endireitou a postura. Só então relaxou a expressão e seus lábios reprimiram um certo sorriso.

–Já sei, Oliver, não é? – Disse olhando para baixo, em um sorriso amargo. – Deve tomar cuidado com ele J, não compre tudo o que ele te fala. Deveria saber que Tenebris não são confiáveis.

–Ninguém é confiável, pelo visto – disse bufando.

–Neste mundo não mesmo – disse com uma sobrancelha erguida. - Mas os Tenebris estão longe de ser. Desde os primórdios sua tradição está intimamente ligada às forças ocultas e energias negras. Eles são famosos por trabalhar com os mortos e deter o conhecimento sobre o elo entre os dois mundos. Claro que existem os bons, que levam a fama dos que não têm boas intenções. Mas reputação existe, e a deles não é a melhor.

–Então por que você pegou aquele feitiço? Se não são confiáveis, não deveria querer algo da sabedoria deles, não é?

–Eu disse que eles não são confiáveis, não sua magia. Que a sabedoria milenar deles é valiosa, não posso contrariar. E que eles são os melhores lidando com mortos, também. Mas independentemente do quão grande é seu poder, o que importa é o que você faz com ele. E historicamente os feitos Tenebris não foram o que se chamaria de bons.

A vela tremulou um pouco em cima da lápide, e senti um calafrio, como se algo estivesse passando por ali ou nos vigiando. Laurie também pareceu sentir, pois começou a observar em volta com um olhar preocupado, embora severo. Já estava escuro, não era possível ver muito fora da iluminação dos lampadários. A vela continuava a tremular violentamente, embora o vento tivesse cessado.

–O que foi isso? – Perguntei.

Laurie não respondeu. Ao invés disso, ela segurou seu pentagrama preso no pescoço, e fechou os olhos por alguns segundos e sussurrou como se conjurasse alguma coisa. Só então ela tornou a olhar para mim, embora seus olhos não parecessem me focar. Nesse instante, a vela tornou-se novamente pacífica.

–Alguma presença estranha – ela disse baixinho, ainda séria.

Senti certo medo, aquele que você costuma sentir por coisas que não sentiria se estivesse na claridade do dia. A noite sempre coloca o instinto no comando ao invés da razão, faz a fantasia fazer sentido, nos torna sensitivos. Talvez por isso eu sempre tive certa atração pela noite, pois ela instiga. Ela nos faz focar no que realmente importa. Imóvel, Laurie parecia um felino tentando ouvir algum ruído além da audição humana. Provavelmente não ouviu nada, então tornou a me olhar, dessa vez de verdade.

–Cemitérios... tantas energias e memórias reunidas, e paradoxalmente o lugar mais livre da presença e dos problemas fúteis dos vivos. Os locais mais conturbados em um plano são os mais pacíficos no outro. Veja só, se você fechar os olhos por alguns segundos, pode sentir o silêncio, a paz física deste lugar. Mas se fechar por muito tempo, acaba por sentir o caos, os gritos que existem em sua própria mente, e o medo, nosso instinto mais primitivo. Talvez por isso nós vivos gostemos tanto do caos, do barulho. Nele não prestamos atenção na nossa própria bagunça, a que existe dentro de nós.

Assenti silenciosamente, começando a relaxar os músculos tensos de meu corpo.

–Laurie, o que você é? – perguntei baixinho.

Ela pareceu rir com minha pergunta, embora não surpresa.

–O que eu sou? Eu sou como você, J. Sou apenas alguém que se interessa pelas coisas do mundo, e que sente muito. Alguém que vê uma semente se transformar em árvore e crê que só pode haver magia nisto.

–Oliver me disse que não é qualquer um que conseguiria arrancar aquela página do livro dele, aquela que você me deu. – comentei, com cuidado.

–Bem, Oliver precisa aprender que nascer em uma tradição para ostentar uma sabedoria específica não é tudo – ela respondeu no mesmo tom.

Naquele instante, a vela se apagou subitamente. A adrenalina percorreu todo o meu corpo, mas Laurie parecia calma.

–Vamos, eles estão nos mandando embora faz tempo – disse se levantando e colocando a bolsa nos ombros.

–Eles quem? – Perguntei tentando soar natural, embora estivesse um tanto quanto aterrorizada por dentro. O cheiro da vela se espalhava junto com a fina fumaça branca que saía do pavio apagado.

Enquanto caminhávamos para o portão, a brisa pareceu voltar a soprar em direção à saída como se nos acompanhasse.

–Olhe ao redor, quem mais seria? – Ela disse, deixando o óbvio no ar.

Era como se eu sentisse olhares atrás de mim me acompanhando. Os mortos não são confiáveis, já dizia o próprio Leonard, que além de tudo era um Tenebris. Era como se ele fosse o combo do duvidoso. Eu sei que precisaria dele longe, mas por outro lado seria incapaz de querer Zac longe também. Estaria eu colocando minha família em risco deixando as coisas como estavam? Não conseguia afastar o pensamento de estar sendo egoísta e ao mesmo tempo ingênua, achando que Leonard não me faria nada de ruim.

Chegando na praça central da cidade onde nos separaríamos, me despedi de Laurie, que iria para outra direção. Antes de ir, ela me olhou com um ar de advertência:

–Sei que não quer fazer esse feitiço, mas o conselho está dado. Você quem sabe o que é melhor para você afinal, mas tenha em mente os riscos e a responsabilidade que detém. E espero te ver amanhã na aula.

E dizendo isso, ela se virou e partiu. Quando comecei a seguir em direção de casa, um carro escuro ao meu lado começou a andar em minha velocidade. Ao perceber, parei subitamente, e o carro também parou. Nisso, a janela abaixou, e um Johnny risonho apareceu por trás do vidro.

–E aí gata, aceita uma carona?

Revirei os olhos e dei a volta para me sentar no banco do carona, rindo da situação.

–O que faz por aqui essas horas? – Perguntou imitando a voz de papai.

–Anda logo Johnny, preciso dormir cedo – respondi, num tom de urgência que fez minha voz afinar alguns tons. - Amanhã é dia de aula.


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