Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 29
Pesadelo




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Leonard pediu para que eu me recompusesse e o seguisse. Ele começou a subir as escadas devagar enquanto eu me levantava, desamassando o vestido e prendendo os cabelos em um coque que aos poucos começou cair. Enxuguei os olhos enquanto subia, ficando com os dedos pretos da maquiagem borrada. Ele então entrou em meu quarto e segurou a porta até que eu entrasse. Lá, ficou em pé diante da janela, e pediu para que eu me sentasse.

–Quer ouvir algumas histórias? – ele perguntou sério.

–Elas explicam alguma coisa? – perguntei, rindo quase que compulsivamente, fora de mim.Já havia esgotado a cota de coisas impossíveis que alguém pode aguentar de uma só vez.

–Talvez, dependendo de sua pretensão – disse enigmático.

–Que tal por começar me dizendo quem é você? – incitei. – Por algum acaso você tem algo em comum com Edward Mordrake?

–Pelo visto ele é tudo o que lembram – disse ele alongando o pescoço, com um ar incomodado. Após um longo suspiro, tirando a cartola ele começou o que parecia uma longa narrativa:

– Em 1800, a vida era bem diferente de hoje. Eu na sua idade já era um homem feito, com inúmeras responsabilidades e deveres. Mas sempre fui culto, e me orgulho disto. Nas horas vagas eu tocava piano, sempre aspirando ao bom e velho Ludwig Van Beethoven, ou lia contos do ilustre Poe. Gostava de escrever alguns também, mas sempre acabavam sanguinários demais para serem publicados – ele bufou revirando os olhos, como se aquilo fosse inadmissível. – E bem, já que o mencionou, Edward era meu primo. Oh, pobre rapaz. Por ironia do destino, ele quem era o próximo na linha de sucessão à um pariato da nossa família, aquela velha aristocracia Inglesa repleta de títulos, sabe como é. Entretanto, ele era completamente perturbado, o menos apto para aquilo. Digo, não deveria ser nada fácil viver com outra face em sua nuca, certo? – questionou, com um riso dissimulado.

“Desde pequeno Edward tinha vergonha de sua situação, não por si próprio, mas pela humilhação que a família o fazia passar. Meus tios o escondiam em casa, dizendo-o como ele era estranho, entre outras coisas que foram entrando em sua cabeça até que ele também começasse a acreditar. Em nossa adolescência, passávamos muito tempo juntos. Eu era um dos poucos que não o temiam, na verdade eu era fascinado por aquela face macabra. Quando Edward se virava, eu a fitava continuamente, aguardando qualquer que fosse sua reação. Ela tinha sempre uma expressão enigmática, como se desafiasse quem ousasse a contemplar. Mas em contrapartida ao meu fascínio, Edward estava ficando paranoico. Contava-me que ela lhe falava coisas, as mais horríveis, durante a noite. No início eu ria, e lhe sussurrava coisas no ouvido durante seu sono para que ele acordasse sobressaltado. Era cômico”.

Leonard riu ainda visando antigas memórias, e depois, ao olhar para mim, como se subitamente se lembrasse de que estava contando uma história, continuou:

“Mas a angústia adolescente se estendeu. Aos vinte, ele criava milhões de teorias de como poderia remover a face, isolá-la ou neutralizá-la, era praticamente um visionário da medicina. Entretanto, nenhum médico se arriscava a tentar a cirurgia, naquela época qualquer um sabia que se um herdeiro morresse na mesa de cirurgia a culpa seria inteiramente do doutor. Mas enfim, conforme o tempo foi passando, mais ele se isolava. Porém, certa noite, desesperado por minha ajuda, ele veio até mim. Era uma rara ocasião em que ele havia saído de casa. Ele havia decidido finalmente livrar-se de suas alucinações e conspirações, para finalmente herdar seu título. Foi então que decidi ajudá-lo com a automedicação”.

–Automedicação? – perguntei.

–Sempre tive facilidade em conseguir morfina e éter, os quais embora no começo servissem apenas para lhe garantir noites tranquilas, não demoraram para se tornarem um grande vício. Ele faria qualquer coisa para se livrar da angústia, das vozes, da realidade. Até que quando estes não eram mais suficiente, eu lhe apresentei à mais nova peculiaridade sintetizada naqueles tempos: heroína ou cocaína, a qual o próprio Freud andava estudando naqueles anos.

–Você drogava Edward... – comecei a dizer, juntando as partes do quebra cabeça. – Você o drogava para deixá-lo cada vez mais inapto de herdar seu título! – acusei.

–Cuidado com suas palavras moça, estas são acusações muito graves – ele disse, com um ar severo. – Mas quem se importa, afinal faz mais de um século, todos já estão mortos não é?

Ele gostava de enfatizar a palavra morte. Parecia se divertir a cada calafrio que esse fato me causava.

“Em seus últimos anos de vida, Edward estava ficando completamente louco. Nem sequer cocaína lhe era suficiente para lhe tirar da realidade cruel da face maligna, que ele agora acusava de o obrigar a cometer atrocidades. Diversos animais apareciam mortos em sua casa, e a família resolveu isolá-lo em uma das torres do enorme casarão que habitavam pois ele começou a apresentar uma ameaça. Dizem que alguns burgueses pagavam para vê-lo, como um animal dentro de sua jaula, num verdadeiro show de aberrações. Isolado e sem acesso à meus favores, ele deve ter ido à loucura. Certo dia, quando fui até sua casa para lhe entregar novas seringas, uma verdadeira caridade, encontrei-o pendurado no lustre da sala, enforcado. Não havia nenhum sinal dos meus tios. Em baixo do corpo, uma carta com uma caligrafia perturbada e angustiada dizia detalhadamente como ele queria que lhe fosse removida a face, para que esta não o dominasse pela eternidade. E assim foi feito. Seu corpo foi enterrado separado da face, a qual busco o paradeiro até hoje em minhas horas vagas. Aquilo continha energias ocultas que qualquer um duvidaria”

Depois de toda a narrativa seguiram-se minutos de silêncio, eu absorvendo a história aos poucos, ainda sem reação, enquanto Leonard fitava-me, como quem estuda algo. Não havia nada a ser dito.

–Quanto a Zac? – foi a única coisa que consegui pensar quando voltei a mim, sentindo os olhos encherem-se com lágrimas, há tanto reprimidas. Eu tinha ânsia e medo ao mesmo tempo de ouvir a resposta.

–Oh, o pobre Zachary – ele disse, com uma expressão trágica. – Ele tinha uma vitalidade tão forte... que nem a própria vida lhe foi suficiente.

–Você conheceu Zac quando vivo? – perguntei surpresa, ainda que custasse acreditar que este não se encontrasse mais vivo.

–Bem, não lhe posso contar a história dele, isso pertence somente à ele próprio, e só ele o poderá fazer. Mas eu o conheci em vida sim. E bem neste quarto – disse, com um meio sorriso astuto. – Entretanto não me recordo quanto tempo faz, o tempo perde o sentido quando sua existência é um eterno “hoje”.

–Neste quarto? – eu perguntei, retomando o que pareceu irrelevante em seu discurso.

–Sim minha cara, não foi a primeira moradora daqui sabia? O que, aliás, fui eu – disse baixinho, com tom irônico.

Mas eu já não estava mais prestando atenção: uma memória tomou conta de mim como se esperasse por isso há tempos, um dia, colando meus desenhos na parede de meu quarto, quando puxei parte do papel de parede sem querer. Sem pensar muito, fui ao mesmo ponto em que se encontrava aquele rasgo, oculto atrás de um desenho de uma cachoeira. Rapidamente o tirei, assim como aos outros desenhos que ali estavam colados. O rasgo encontrava-se intacto, colado com uma fita crepe de qualquer jeito. Ainda sem pensar nas consequências, puxei a fita devagar e arranquei uma tira do papel de parede. Atrás, uma parede azul se revelou. Continuei puxando até chegar ao rodapé da parede. Fiz isso repetidamente, até que, ainda fora de mim, dei alguns passos para trás a fim de contemplar melhor o que ali estava. Leonard me observava minuciosamente a certa distância. A parede azul revelada, marcada por lembranças, marcas de fita adesiva e pedaços de pôster, repousava não mais secretamente. Escritas na parede, band-aids e outras coisas ali estavam coladas, junto a alguns adesivos de banda e marcas escuras no rodapé.

Aquele fora então o quarto de Zac um dia. Consegui idealizar onde ficaria cada coisa, e o que era cada marca, cada mancha. Quando finalmente consegui parar com devaneios e retomar o controle de minha vista inebriada, foquei a imensa mancha escura que ia do centro da parede até um dos cantos. A mancha preta parecia ter corroído a pintura e o que quer que lá estivesse, como um resquício de o que pode ter sido um incêndio.

–Nosso garoto inocente era um provável piromaníaco – ouvi a voz de Leonard me sussurrar aos ouvidos, interrompendo meu transe.

Com lágrimas nos olhos, fui até a janela, tentando me recordar de quando tudo parou de fazer sentido. Observando minha rua, uma série moribunda de pessoas parecia se dispersar, como no fim de uma festa. Toda aquela gente estranha da madrugada marchava desanimada; entrando em casas, virando a esquina ou, sua maioria, adentrando a floresta.

–Quem são essas pessoas? – perguntei.

–São outros espíritos que por aqui vagam – ele contou sombrio. – O fim da noite de Samhain é triste para todos os que têm de retornar aos seus locais de origem, ou seja, para onde tiveram seu último suspiro de vida. Somos criaturas do plano astral, esta é a única ocasião normal a qual podemos andar entre vocês, vivos, sem precisar nos esconder. Com tantas coisas estranhas na rua, quem iria reparar em mais uma?

–Quanto a você? – perguntei. – E quanto a Zac? – emendei a pergunta.

–Desde muito tempo consigo burlar os portais. São coisas que irão lhe ser explicadas depois, e estão bem longe da sua mera compreensão. De ano em ano alterno em passar minha existência no plano astral ou físico, uma astúcia de poucos. O plano astral tem suas regalias é claro, como aparecer em sonhos ou possuir outros corpos, controlar mentes com facilidade... – disse sério. – Mas nesse ciclo escolhi viver nesse plano, como nos velhos tempos. Quanto a Zac, não faço ideia de como aquele diabo conseguiu nunca ter de partir. Apesar de que não consigo decidir o que é pior, ficar aqui ou partir – disse como se conversasse consigo mesmo. – Mas isso não importa. E caso queira saber, a sua casa é nosso local de origem.

Sentada na janela fechei os olhos, e respirando fundo, massageei minhas têmporas, voltando a mim aos poucos. Zachary estava morto. Abby desaparecida assim como meu pai, e eu estava conversando há horas com um lorde vitoriano. Desejei que nada tivesse acontecido. Desejei que tudo fosse uma brincadeira de mau gosto, ou que eu acordasse de repente em minha cama e tudo tivesse sido fruto de minha mente perturbada. Mas, ao abri-los novamente, Leonard ainda estava ali. Pela janela, vi aquela pequena menina loira, Alice, há tanto tempo distante de meus pensamentos chegar em meio a todas aquelas pessoas. Ela usava o mesmo vestido branco, e estava entrando pelo portão da frente junto à seu gato. Leonard também a acompanhava com o olhar, semicerrando os olhos.

–Quando esse pesadelo vai acabar? – perguntei, com a voz falha.

–Pesadelo? Oh, cara Johanna – respondeu ele, dando um riso de desdém. - Foi apenas agora que você acordou.


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