Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 28
Samhain: Parte III


Notas iniciais do capítulo

Favor imaginar uma sinfonia bem psicopata no fundo desse capítulo. Grata.



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O caminho até minha casa naquela madrugada foi um dos percursos mais arrepiantes que eu já fiz naquela cidade. As crianças que antes estavam por toda parte provavelmente já se encontravam em suas casas dormindo após a overdose de doces. Essa era então a hora em que aberrações de Halloween costumavam ganhar as ruas. Haviam pessoas fantasiadas as quais eu nunca havia visto; e uma espécie de clima de fim de festa no ar, onde a bebida já está manifestando seus piores efeitos e a maquiagem já está borrada no canto dos olhos. Passamos por um grupo de jovens mórbidos cobertos de sangue sentados em uma calçada, velhas com longos cabelos brancos nos encarando e outras pessoas usando máscaras, as quais eu não pude identificar ao certo quem eram. Todas as fantasias pareciam incrivelmente tão... Reais. Não era comum tanto movimento no caminho do meu bairro, o que deixou tudo ainda mais esquisito. Zac seguia comigo, seu olhar impassível mais taciturno do que nunca. Percebi que muitos o seguiam com o olhar, os quais ele ignorava com facilidade.

Chegando a minha rua, a maioria das casas tinham velas nas janelas, mas algumas continuavam com as luzes ligadas. Era o dia em que a cidade não dormia. Subimos a ladeira e em frente ao meu portão, ele segurou minha mão.

–Pronta? – disse-me ele, levantando uma sobrancelha.

Ri ao revirar os olhos, e abri meu portão bruscamente, quebrando o silêncio ali instaurado. A grama úmida molhou a barra de meu vestido enquanto eu caminhava em direção à porta de entrada para procurar as chaves, que sempre escondíamos em um vaso para emergência. Zac terminou de fechar o portão e me alcançou, cantarolando alguma musica e batendo as mãos nas pernas, no ritmo da bateria imaginária. Ao girar a maçaneta, silêncio. Pelo visto a casa ainda estava sozinha. De repente, aquela sensação de estar sendo observada tomou conta de mim. Só então me dei conta de que a música de Zac havia cessado.

–Zac? – chamei com tom de urgência, virando-me para trás.

Quando o vi, um choque percorreu meu corpo. Ele estava paralisado, os olhos fixos em um ponto atrás de mim, com expressão de dor. Acendi a luz imediatamente para tentar entender o que estava acontecendo e foi então que uma forma se revelou. Alguns passos na frente da porta, próximo à escada que levava ao segundo andar, a poltrona da sala estava posicionada de costas. Subitamente ao acender da luz, quem a ocupava se virou.

–Até que enfim, vocês chegaram! – exclamou o homem, levantando-se com um sorriso sádico.

Ele usava um fraque longo e escuro sob um colete, e um lenço de seda branco em torno do pescoço. Nas mãos, um elegante anel com a inicial “L” gravada no prata ocupava seu dedo indicador. Ele se apoiava em uma bengala adornada com a cabeça de um dragão no apoio, a qual parecia ser apenas um acessório, já que ele não aparentava muito mais que 25 anos. Os cabelos negros, que cresciam ondulados até os ombros, ficavam sob uma cartola preta. Eu já sabia quem era. Não podia ser verdade, não podia ser real. Eu não havia mexido um músculo até então.

–Ora ora, isso são modos de receber convidados? – perguntou irônico.

Sua voz era baixa e tinha um jeito cantado de pronunciar as palavras, com um acento antigo.

–Permitam que eu me apresente então – disse ele, ajeitando sua postura subitamente. – Este sou eu, ou seja, Leonard Mordrake.

Suas palavras me fizeram estremecer. Ele tirou a cartola e inclinou-se para frente, em sinal de saudação. Olhei para Zac, que ainda estava congelado.

–Zac? Você está bem? – perguntei trêmula, sacudindo seus ombros.

–Ah minha cara, ele não vai poder lhe responder agora – Leonard disse.

Foi quando percebi que sua mão esquerda estava contraída em direção a Zac, como se fizesse força. De repente ele a elevou na a altura dos ombros, e a esticou em um movimento rápido, arremessando Zac para trás furiosamente, que passou pela porta e foi parar quase do outro lado do jardim da frente. Para minha surpresa, ele se levantou imediatamente, e quando começou a correr em direção à porta, Leonard a fechou com um movimento rápido de dedos.

–Telecinese, incrível não é? – disse batendo sua bengala na outra mão, como se fosse um bastão de basebol.

–O que você faz aqui? – consegui dizer, embora minha voz tenha falhado.

–Johanna, por favor, pare com essa tragédia grega toda. Vim apenas ter uma conversinha com você. Não se preocupe com seu namoradinho, não posso fazer nada que o machuque de fato, não nessa situação.

–Como não? – comecei a dizer, sentindo lágrimas nos meus olhos. – Você podia tê-lo matado agora com... Com isso! – disse cuspindo as palavras, apontando para suas mãos. Eu estava fora de mim.

Leonard levantou as sobrancelhas antes de dar uma longa risada aguda.

–Ah minha cara, como você é inocente! Vai me dizer que não sabe o que aquele pequeno demônio é? – disse ainda rindo.

Respirei fundo. Ele estava jogando comigo, eu não podia dar deixas. O problema é que eu não conseguia nem controlar minha própria respiração.

–Tudo bem, tudo bem, já vi que vou ter de lhe explicar tudo. Sou uma pessoa repleta de virtudes não é? Tão bondosa e paciente...

–O que você quer aqui? – perguntei dessa vez firme.

–Como diria meu antigo amigo Jack, vamos por partes.

Leonard então deu passos silenciosos em minha direção, pedindo “com licença” antes de tocar minhas têmporas com suas mãos cobertas por uma luva negra. Senti uma sensação de frio na barriga, e ao abrir os olhos novamente, eu estava em um local escuro e com cheiro de antigo.

–Para onde você me trouxe? – eu perguntei, tateando os arredores enquanto minha visão não se acostumava com a escuridão.

–Você já esteve aqui antes – disse ele cantando a voz, vinda de algum lugar acima.

Quando meus olhos começaram a distinguir formas, percebi estantes e livros ao meu redor. Foi então que olhei para cima e reconheci o teto esculpido e decorado elegantemente: a biblioteca do Masefield.

–Finalmente, então está reconhecendo? – perguntou.

Ele estava sentado em uma das altas estantes, balançando sua bengala.

–É onisciente também agora? – questionei baixo.

Ele soltou mais uma de sua risada aguda.

–Os anos me deram experiência com expressões faciais, minha cara. Agora vamos ao que interessa – disse, batendo com a ponta de sua bengala em um livro em específico.

–Abra-o, este vai ser o começo de sua jornada.

Estiquei-me para alcançar o livro, que saiu com muito pó junto. Havia uma lanterna ali ao lado da prateleira, como se já preparada para situações como esta. Acendi com um clique, enquanto abria o livro em minhas mãos. Era um anuário, eu estava diante da prateleira dos anuários do Masefield.

–Um anuário? – eu questionei.

Leonard bufou.

–Essa geração têm tanta pressa... Observe-o, por obséquio.

Comecei a folheá-lo, observando que os retratos tinham cores um pouco desbotadas e pareciam ser analógicos. Página após pagina, rostos após rostos. Foi então que quando cheguei a pagina de uma classe de segundo ano, o último retrato me fez sorrir.

–Zachary Walker! – Exclamei ao ler seu nome alto, e deixei escapar um risinho nervoso.

No retrato, Zac estava com os cabelos um pouco mais curtos e menos descoloridos, embora ainda loiros. Seu olhar era sério encarando as lentes da câmera, com as sobrancelhas um pouco arqueadas. Sob seu nome, lia-se:

vândalo – destemido - perturbado”.

–Eu não sabia que ele já havia estudado aqui! – falei levando as mãos a boca.

Leonard me olhava como se eu ainda não tivesse chegado na pior parte, ou melhor, em seu ponto de vista aparentemente sádico.

–Ei, espera – eu disse, subitamente cortando minha onde de excitação. – De que ano é isso? – perguntei retoricamente.

Apressei-me de volta às primeiras páginas, enquanto Leonard se ajeitou na prateleira como se pretendesse ter uma visão melhor do show de horrores que se seguiria. Na primeira página, aproximei a lanterna do livro, mas tive que reler diversas vezes para meu cérebro começar a dar sentido aos números.

Eram as classes de 1992.

Não podia ser. Deixei o livro cair de minhas mãos, junto da lanterna. Minhas mãos recomeçaram a tremer, e uma súbita dor de cabeça me preencheu enquanto eu sentia meu coração latejando por toda a parte. Não podia ser. Eu me sentia caindo, caindo em um espiral direto para o abismo que se tornou minha mente.

Quando retomei a consciência, eu me encontrava caída no chão. Leonard estava de pé à minha frente, segurando a lanterna embaixo de seu rosto, o que lhe dava um aspecto fantasmagórico. Seus olhos eram de um azul muito claro, embora um tanto quanto opacos. Seu nariz era fino, mas de perfil era grande e tinha aquele ossinho em cima, o que lhe dava um ar de aristocrata. Seu rosto era contornado por barba, que era linearmente aparada deixando apenas as costeletas. Ele era um homem bonito, porém aterrorizante.

–Com licença – disse ele novamente, antes de tocar minhas têmporas e nos fazer voltar para minha sala.

–Como você fez isso? – perguntei, sentada no chão.

Haviam milhões de perguntas na minha cabeça, junto ao pânico e o pouco do meu lado racional que havia sobrado gritando que aquilo tudo era um sonho.

–Isto, foi eu tentando lhe mostrar um pouco da realidade.

–Você está me enganando. Você nem deve existir – eu disse, esfregando os olhos. Minha cabeça doía muito e eu me sentia exausta.

–Oh minha querida, eu existo sim, e há muito tempo. Agora pense, apenas pense: como uma foto do nosso querido Zachary foi parar em um anuário de 1992? Ah, aqueles anos cafonas – ele disse revirando os olhos, com desprezo.

–Você a colocou lá – declarei descrente.

–Você sabe que não. – disse apoiando-se na bengala e olhando fixamente para mim.

Meus olhos se encheram de lágrimas enquanto eu o olhava, negando o que meu subconsciente parecia querer gritar para mim.

–Bem – ele começou, com tom trágico. - Eu não queria ser quem teria de lhe dar essa notícia, minha cara, mas... Zachary Walker está morto.

Minha respiração travou. As lágrimas, que antes escorriam promíscuas, agora pareciam ter secado. Abri a boca para falar, mas não saía som algum.

–Mas, veja bem – ele prosseguiu. – eu também estou morto, isso parece ser algum problema para você?

–Como isso é possível? – minha voz saia com dificuldade.

–Seu conceito de possível é muito limitado, querida. A propósito, vejo que gostou do vestido que lhe deixei de presente nessa tarde. Ah, como eu adoro esse festival. O festival dos mortos, não é meigo? Ele indica nova era, afinal, este é o início do ano novo celta. Viva ao Samhain! – o sorriso maníaco tomou conta de seu rosto novamente, deixando-o ainda mais sombrio.


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