Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 2
Velhos Hábitos




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“Blue Falls tem seu nome vindo das suas cachoeiras que refletem a cor azul, advinda da presença de sulfato de cobre entre os minerais que constituem suas rochas. Entretanto, na lenda local, diz-se que os antigos pintores que habitavam a cidade durante a renascença roubaram uma pedra muito preciosa de uma tribo que ali vivia nos bosques, a fim de extrair dela o pigmento azul para suas pinturas. O procedimento consistia em reduzir a pedra a pó, utilizando-o como corante em água ou clara de ovo. Os selvagens, ao descobrirem o furto, lançaram uma maldição nos pintores fazendo com que as águas das cachoeiras que abasteciam a vila se tornassem tóxicas. A maldição só seria desfeita se a pedra fosse devolvida. Como ela em si já era inexistente, os pintores resolveram doar seus quadros à tribo, e toda a tinta azul que lhes restou. O grande líder aceitou a oferta, embora os quadros não tivessem muito valor para eles. Ele então lançou a tinta na maior cachoeira local, deixando toda a sua água eternamente azul em honra à sua preciosa pedra e os deuses que a regiam. Os pintores nunca mais foram vistos, e nenhuma obra ou registro produzida em Blue Falls fora até então encontrado. Mas a água, que permaneceu azulada, era pura e limpa”.

—Idiotice - sussurrei ao fechar o livro.

Tinha ido até a biblioteca pública, estava na sessão de história local. As poucas semanas livres que tive na cidade estavam chegando ao fim junto ao verão, e o início das aulas se aproximava com o outono. Havia aproveitado os dias conhecendo os cantos de Blue Falls e explorando a campina e a floresta atrás de minha casa. Embora inconscientemente procurasse com o olhar pela garota que estivera em meu portão na cidade toda, não obtive resultados. Ocasionalmente, Johnny me acompanhava nas trilhas. Os bosques da região tinham realmente muito entretenimento. “Caramba, você não tem medo de nada!” ele me dizia incrédulo, vendo a maneira destemida com que eu percorria floresta adentro enquanto ele, desajeitado, ia com cautela. Eu coletava tudo o que podia colecionar, enquanto Johnny só observava se encontrava algum cogumelo para fins duvidosos. Depois das trilhas, sempre me sentava em algum canto e acendia um cigarro.

—Velhos hábitos, J? – perguntou descrente.

—Esse período em que você ficou fora, papai em crise, foi um tempo difícil de lidar. Acabei buscando a ilusão de sentir algum alívio no calor da fumaça. Era quase... reconfortante. – falei, um pouco sem graça. - Mas é temporário. Inclusive, qual a finalidade desses cogumelos aí?- disse rindo, tirando a tensão do ar e o foco de mim.

—Esses são para fins maiores J, a diversão de uma festa inteira depende disso – riu ele, fitando os cogumelos escuros em suas mãos.

Foram bons dias aqueles, mas as aulas de Johnny já haviam retornado e eu só o via tarde da noite. Estava na hora de fazer alguns amigos que não tivessem o meu sobrenome. As pessoas da montanha eram mais fechadas do que as do litoral, muito embora fossem bem menos superficiais. Mas tudo bem, afinal, não precisava fingir interesse na socialização. Em apenas algumas semanas no novo lar percebi como não me encaixava em Portland. 

Saindo da biblioteca, sentei na praça central e comecei a ler Lolita de Nabokov, livro que havia pegado emprestado. Na praça, algumas folhas alaranjadas começavam a cair pelo gramado, embora ainda não fosse outono. Havia também uma fonte central com algumas imagens esculpidas em sua lateral, onde figuras angelicais cobertas de musgo jorravam água. Enquanto lia, um vento forte fez farfalhar os galhos das árvores e todas as folhas do chão se arrastaram pela praça. Distraída, acompanhei-as com o olhar vago. Uma série delas atravessou a praça e parou aos pés de um dos bancos, onde um rapaz sentado lia um livro exatamente como eu.

Não sei bem por quê, mas algo ali me chamou muito a atenção. Discretamente, levantei-me e fui até o outro lado da praça, permanecendo ainda a uma distância segura, e me sentei em outro banco a fim de observá-lo melhor. Eu gostava muito de observar as pessoas e podia ser bem detalhista nisso. O garoto não tirou os olhos de seu livro, olhos azuis, notei. Seus cabelos loiros eram muito claros, aparentemente descoloridos e desciam até os ombros, irregularmente. Tinha as maçãs do rosto altas vestia uma enorme camisa jeans desbotada com calças justas, que revelavam sua estrutura magra. Seu porte era um tanto quanto desajustado, como quem não se preocupou muito em se arrumar.

Devo ter ficado o observando por alguns minutos, saindo do transe apenas quando alguém animadamente o cumprimentou. A garota que chegou usava um vestido com coturnos bordô, estilo Doc Martens. Quando ela tirou o capuz do casaco que vestia, me surpreendi com os cabelos curtos e desfiados: era ela.

 Seria aquele rapaz um dos garotos que também estavam lá naquela noite? Contive-me em meu banco, provavelmente eles ainda não sabiam que eu era uma dos Dubrowsky que habitavam a casa. Ambos já estavam saindo abraçados quando vi que o rapaz havia deixado o livro que lia sobre o banco. Não resisti. Peguei o livro e corri até ele, sem pensar direito nas consequências daquilo.

—Ei! Esqueceu seu livro no banco – falei, enquanto tirava uma mecha do cabelo que me tinha caído nos olhos.

Os dois me olharam ao mesmo tempo surpresos. Mas o olhar surpreso do rapaz se converteu em um riso muito vivaz que fez com que seus olhos franzissem nos cantos.

—Nossa! Obrigado, cara, eu to viajando ultimamente – respondeu ele em um tom despreocupado enquanto pegava o livro. Era um exemplar de Demian

A garota, antes com um ar severo, me deu um sorriso quando nossos olhares se cruzaram. Seus olhos eram grandes e escuros, profundos. O rosto tinha um contorno quadrado, e ela usava um batom também escuro nos lábios definidos, contrastando com sua pele clara.

—Olha só, você é um rosto novo por aqui - ela disse olhando para mim, subitamente séria.

Sua voz era fina, o que contrastava com a aparência de má que suas sobrancelhas arqueadas passavam.

—Mas gostei de você! Qual o seu nome afinal, Lolita? - concluiu ela em referência ao livro em minhas mãos, mudando subitamente sua expressão para animada com um olhar travesso.

—Johanna Dubrowsky, nova por aqui. E quem são vocês?

Não pude deixar de notar que os dois se entreolharam quando pronunciei meu sobrenome.

—Uau, os novos Dubrowsky, que sorte a nossa sermos apresentados a você – ela disse, com certo tom de bajulação. – Eu sou Abigail, mas me chame de Abby por favor. E este é Zac - o garoto sorriu de modo contido, com um leve aceno de cabeça.

—Não sei por que todos de repente nos conhecem por aqui – falei um tanto quanto sarcástica. - mas sorte a minha de conhecer vocês, ainda não tenho companhias por aqui.

—Conheceu as más companhias certas então. Devemos sair qualquer dia! – Abby intercalava tons sérios seguidos por tons divertidos, o que tornava um pouco difícil acompanhá-la.

—Irei adorar, de verdade. Bem, já sabem onde me encontrar caso queiram me ver de novo – ri, um pouco constrangida pelo fato de minha casa ser de conhecimento municipal.

—Certamente saberemos - respondeu ela ainda animada antes de se afastar em passos saltitantes.

Naquela noite, fiquei até tarde observando o portão de casa sentada em minha janela. Já não havia mais vagalumes pelo jardim e a temperatura ficava cada vez mais baixa durante a noite. Eu continuava me questionando o que havia nessa casa que instigava os habitantes daqui. E Abby, o que ela e seus amigos queriam naquela noite em que apareceram no portão afinal? E tinha esse Zac... O interesse deles sobre mim ficou claro quando pronunciei meu sobrenome. Ainda não sabia se poderia confiar neles. Imersa em meus pensamentos, demorei em perceber batidas em minha porta. Era papai.

—Posso entrar? – perguntou, já entrando. Ele usava um roupão longo e tomava uma xícara de chá.

—Sabe J, seu irmão provavelmente não voltará hoje para casa, então me lembrei de você – ele olhou pra mim e piscou. – Mas falando sério, percebi que ou você passa quase todos os dias fora, ou aqui trancada no quarto, mal conversa comigo. Quero saber, afinal, como você está se sentindo e lidando com toda essa mudança? Está tudo bem?

Meu pai dava uma de psicólogo quando achava conveniente. Respirei fundo antes de responder. Eu estava um tanto distante dele nos últimos tempos. Embora estivesse feliz por as coisas aparentemente estarem voltando ao normal, as atitudes dele vinham sendo muito egoístas e inconsequentes nos últimos tempos.

—Sabe Vincent, eu não tinha muitos laços em Portland e nem gostava muito de lá para falar a verdade. Mas você nem me consultou sobre vir para cá. Só agora veio se perguntar o que estou pensando disso? Isso não é uma reclamação, estou apenas pontuando os fatos – deixei claro, pois estava gostando do novo lar. – A questão é que quem entrou em crise foi você, quem parou a vida foi você quando mamãe fugiu. Você tem que aceitar e seguir em frente, em vez de fugir das lembranças dela e achar que está fazendo um papel de bom pai só porque de vez em quando se lembra de perguntar o que sua filha está achando do que você já fez sem nem questionar.

O peguei de surpresa. Seguiram se alguns minutos de silêncio.

—Você é igual sua mãe, Johanna. Um pouco taciturna e introspectiva, mas corajosa e direta sempre que necessário. Eu quero ser um bom pai, mas você tem que me permitir. Não se afaste tanto, não se feche assim – ele falou com o olhar vago, que me fazia ver que nada do que eu havia dito o havia afetado.

No silêncio que se seguiu, foquei minha imagem refletida no espelho do outro lado do quarto. Sempre fui muito parecida com meu pai. Mamãe costumava dizer que eu tinha os mesmos olhos selvagens que ele, no mesmo tom de verde. Mas meus cabelos escuros e pesados, agora descendo cacheados até a cintura, faziam com que eu parecesse com ela quando mais jovem. Eu não queria ser como ela, que nos deixou sem mais nem menos.

—Você precisa descansar, amanhã é dia de aula né? – disse papai, interrompendo minhas reflexões.

—Nossa, é mesmo. Boa noite, pense no que eu te falei – lembrei, sem esperança que ele realmente fosse fazê-lo.

—Boa noite filha, fica bem – disse, fechando a porta.

Já deitada, um frio preencheu minha barriga enquanto eu pensava no primeiro dia de aula ali. Questões como o que eu iria encontrar, ou quem, gritavam em minha mente contrastando com o silêncio da noite. Bem, se a escola seguisse o mesmo padrão daquela cidade, seria peculiar com certeza. Contrariando meus princípios de não se importar, eu estava começando a ficar nervosa. Amanhã seria um longo dia.


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