Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 13
Subsolos: Parte I




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Eu estava sentada no jardim da minha casa, ou no que havia sobrado dele. A casa estava coberta por hera e plantas daninhas. A grama estava muito alta, algumas janelas com vidros quebradas e o portão enferrujado: parecia que tudo estava abandonado fazia muito tempo. Algo estava oculto no ar, em meio às sombras que se projetavam à minha frente. Uma menina segurando um gato preto também estava lá, desesperada gritando por ajuda. Ela parecia não me ver, mesmo depois de eu ter acenado para ela. O pequeno gato em seus braços tinha uma manchinha branca entre os dois olhos, que transmitiam um olhar ríspido. Ele me encarava o tempo todo parecendo poder me ver muito bem, ou melhor, como se visse além, por dentro e pelo avesso. A menina, antes desesperada, agora tinha um olhar vingativo. Ela começou a vir para perto de mim e se sentou ao meu lado, sem parecer notar minha presença, e eu ainda sentia o olhar frio do seu gato sobre mim. Pude jurar que a ouvi sussurrar alguma coisa, até que ela virou para mim e desta vez, me focalizando muito bem, disse em voz alta: “ele ainda está observando”.

Acordei assustada, sentindo meu coração reverberar em todo meu corpo. Fui até a janela e por um momento fiquei feliz em ver que o jardim continuava bonito, a grade limpa e a casa livre de ervas daninhas. Meu sonho só podia ser resultado da perturbação que a foto que eu vi ontem me causou, pensei. E era ridículo demais achar que aquela da foto era a mesma menina que vi no jardim, não era? Ainda na janela, observei como a luz da aurora refletia nas flores silvestres que, antes abundantes, aos poucos desapareciam com a chegada do inverno. A paisagem já estava quase toda laranja, e as folhas quase todas no chão. Ainda entre devaneios, troquei de roupa desci para a cozinha, subitamente feliz ao lembrar que era sábado.

Coloquei o pão na torradeira e aqueci meu café, como de costume. Com o barulho, Johnny acordou e desceu as escadas. Nunca fui uma pessoa exatamente silenciosa, sabe como é.

–Pra que acordar essa hora em um sábado? – seus cabelos estavam bagunçados e seus olhos apertados com a claridade. Ele usava apenas uma camiseta e samba canção. A pele de suas coxas era ainda mais clara do que a que ficava exposta.

–Ninguém mandou você acordar também – retruquei. – Café? – disse oferecendo uma xícara a ele.

Ele a pegou e apoiou-se na bancada, tomando longos goles.

–Sabe – começou ele entre um gole e outro – essa noite vai ter um show em um pub aqui no centro da cidade – ele disse em um tom desinteressado. – que tal ir comigo e fazer algo da vida nesse sábado a noite?

–Show? Pub no centro da cidade? – Perguntei perplexa. Aquilo sim era novidade.

–Sim querida, tá pensando que aqui é o que? - disse fazendo uma voz aguda, que me fez rir. - É um lugar legal, você vai curtir. Eu ia bastante ano passado com o pessoal da faculdade. Mas os bons tempos estavam me matando, tive de dar um tempo – e sorriu sozinho, aparentemente com antigas lembranças.

–Ok, vou com você – respondi, mais com curiosidade de ver onde haveria vida noturna na calma Blue Falls.

x x x x

Naquela tarde resolvi tirar o dia para mim como costumava fazer antes de começarem as aulas. Peguei minha mochila do colégio e esvaziei ela em cima da cama, colocando agora sanduíches, água, celular, meu sketchbook e algumas canetas. Antes de sair, dei uma boa olhada sobre a cama e vi entre os livros jogados minha carteira de cigarros e meu isqueiro, os quais rapidamente recoloquei dentro da bolsa.

Desta vez, ao invés de dar a volta na rua para chegar até a campina, pulei a grade de trás como fizera com Zac e Abby naquela noite. As folhas no chão amorteceram meu pulo e já do outro lado segui caminhada, sentindo como o ar estava frio e o céu embora coberto por nuvens, estava claro. Andei sem rumo durante aproximadamente uma hora, sempre controlando o caminho para não me perder, até que comecei a reconhecer aquele ponto da trilha. Passando pelo tronco caído ao chão, aquelas curvas, aquelas árvores cobertas por erva passarinho: a entrada para a clareira. Analisei bem as árvores tentando lembrar qual levaria ao outro lado, até que subi em uma que cogitei ser a certa e para a minha surpresa, era de fato.

Aquele lugar sem ninguém não parecia o mesmo, mas os fantasmas de minhas lembranças davam vida àquilo tudo fazendo-me rever ali os momentos passados. Sentei-me em um dos troncos e acendi um cigarro, agradecendo por Johnny não estar por perto. A fogueira que usamos naquela noite ainda estava ali, porém obviamente apagada. Percebi o quanto estava cansada, naquele outro dia talvez devido à adrenalina não houvesse percebido tamanha a distância que era da minha casa até aquele lugar. Peguei um sketchbook e comecei a rascunhar.

Enquanto permaneci ali, tive constantemente a sensação de estar sendo observada, sensação que, aliás, me acompanhava bastante nos últimos dias. Era estranho, mas eu nunca sentia que estava sozinha. Mas eu andava tão perturbada ultimamente com essas sensações que elas começaram a se tornar rotineiras, o que poderia ser preocupante. Só que eu sempre relevava, aos poucos isso parava de me incomodar. Aproveitei para comer um dos sanduíches e tomar um pouco d’água preparando-me para partir, pois o céu já estava escurecendo, coisa que acontecia cada vez mais cedo. Cuidadosamente, refiz o caminho de volta e após certo tempo saí na conhecida campina.

Já em casa, tomei um longo banho e lavei meu cabelo, notando como estava maior e mais difícil de ser cuidado. Sequei-o cuidadosamente e prendi em um coque, deixando que alguns fios mais finos escorregassem e ficassem soltos embaixo. Já estava ficando cansada dele, mas o apego não me permitia cortar. Lá de baixo, ouvi Johnny gritar das escadas para que eu estivesse pronta logo, só aí que eu lembrei que iríamos sair.

Rapidamente, abri meu closet e dei uma boa olhada em tudo. Pra variar eu não fazia ideia do que usar, e a desordem em que ele se encontrava não ajudava muito. Fazia tanto tempo que eu não ia para festas que tinha me esquecido de como me arrumar, além do fato de que eu não fazia ideia do que me esperava. Mas quanto a isso tudo bem, nunca fui de seguir padrões. Resolvi colocar meu vestido preto favorito, que ia bem a qualquer situação. Sempre adorei suas mangas longas, que abriam levemente nos pulsos dando um ar de cigana; além da renda também preta que delineava o decote e a barra. Ao me olhar no espelho gostei do resultado final: o preto começou a fazer um contraste interessante em minha pele, agora mais clara. Senti falta de minha ônix, mas coloquei alguns colares e outra gargantilha para suprir sua falta. Ao dar a última olhada no espelho, soltei os cabelos e passei meu batom cor sangue. Agora podia partir.

Descendo as escadas, Johnny e meu pai conversavam na sala sobre alguma coisa aleatória. Imediatamente senti seus olhares em mim.

–Uau, olha só essa diva gótica – disse Johnny, colocando a mão no queixo.

Meu pai se aproximou de mim e mexendo nos meus cabelos, falou baixinho:

–Você herdou a beleza da sua mãe.

Essa eu não precisava ouvir. Não naquele momento. A última coisa que eu precisava era parecer com alguém tão desprezível. Engoli em seco, não era hora para discussões. Felizmente Johnny não ouviu o infeliz comentário e, ainda animado, interrompeu o clima ao se despedir de papai. Seguimos até seu carro.

–Pronta para sua primeira noite de verdade em Blue Falls? – perguntou meu irmão enquanto manobrava o carro em nossa ladeira.

–Você acha que essa é minha primeira noite aqui fora de casa? - levantei as sobrancelhas.

–Eu falei noite de verdade, não seus passeiozinhos entediantes no mato.

–Isso é o que você pensa que eu faço – disse num tom provocador, o que o fez rir sarcasticamente.

Johnny raramente me levava a sério.

Já estávamos no centro, um pouco depois da praça central e havia certo movimento nas ruas que me chamou a atenção. Lembrei-me do dia em que voltei com Oliver da trilha da cachoeira, e que quando passamos por ali vi um movimento de pessoas. Lembrando melhor, era o mesmo movimento e o mesmo tipo de gente que daquela vez não me tinha parecido relevante.

Estacionamos o carro em um pequeno beco e seguimos a pé pela estrada de ladrilho. Os prédios antigos, que de dia nunca haviam me chamado a atenção, tinham agora pequenas placas neon acesas indicando “aberto”, com várias pessoas entrando e saindo deles. A maioria se dirigia ao subsolo onde, segundo Johnny, ficavam os pubs e bares. Caminhamos mais um pouco até atravessarmos uma pequena praça de esquina que tinha uma estátua de busto no centro. Era rodeada por árvores, e atrás delas via-se um antigo prédio de tijolo a vista com paredes pichadas. Uma plaquinha de neon piscava aberto e diversas luzes azuis iluminavam a entrada. Eu sempre passava por ali de dia e nunca tinha reparado naquele lugar. Tinha a sensação de que a vida noturna ali ocorria como se fosse um segredo.

–A partir de hoje sua visão dessa cidade vai mudar – decretou Johnny olhando em meus olhos, e apressando o passo seguiu comigo para dentro do prédio.

Na entrada havia uma garota de cabelos azuis atrás de uma mesinha, para a qual Johnny pagou nossos ingressos. De lá já dava para ouvir um som abafado de música e vozes. A garota carimbou nossas mãos e deu um sorriso enquanto conversava com um rapaz, digamos, excêntrico ao seu lado. Passamos por eles e descemos a escada que levava ao subsolo, onde diversas pessoas estavam encostadas nas paredes fumando, conversando ou casais agarrados. Aos poucos a música se tornava mais clara e consegui distinguir melhor os riffs pesados e lentos de guitarra e um vocal masculino. Chegando ao fim da escada, o ambiente não era assim tão grande, mas estava lotado de pessoas. Havia um bar à esquerda com barmens servindo drinks e no centro um palco uma banda se apresentava. A decoração era típica de um ambiente underground, rústica com pôsteres e antiguidades espalhadas. Dois seguranças passaram pela gente segurando um rapaz que se contorcia enquanto gritava para que o soltassem, e Johnny já estava cumprimentado um grupo de pessoas. As coisas pareciam bem agitadas ali. Fui até o bar a fim de pegar alguma bebida, reparando a peculiaridade dos nomes dos coquetéis quando um dos barmens me mostrou a lista opções.

Enquanto estava ali sentada, vi uma garota que me pareceu muito familiar. Fiquei a encarando, até que ela se virou e percebi de quem se tratava: ali estava Abby, cercada por Oliver, Laurie e Zac. De fato, aquela noite iria ser animada.


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