Blue Falls escrita por Florels


Capítulo 1
Blue Falls


Notas iniciais do capítulo

"Neblina circunda-te
Por toda a floresta
Pegue seus pentagramas
Acenda suas velas
Não pisque, estão observando
Cuidado com todos aqueles que cativas
Permaneça, mas não se demore
Todos aqueles que decifram, são devorados"



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/600893/chapter/1

Tudo me parecia familiar, embora fosse tão novo. Havia poucas semanas desde o dia em que recebi a notícia de que iríamos nos mudar para um local distante, e minha reação não pôde ser exatamente definida. Nunca tive muitos amigos em Portland, a cidade que continha todas as minhas lembranças. Apesar de não ser uma metrópole, era repleta de avenidas à beira mar onde pessoas desfilavam em calçadões exibindo seus corpos definidos, cachorrinhos caros em coleiras e carrões. Não era nem de longe minha definição de paraíso, mas era a minha zona de conforto. Ainda lembro-me da manhã quente de junho, quando recebi a notícia da mudança. Confesso que tive minha sensação de perda: ainda que Portland não fosse meu local preferido no mundo, era tudo o que eu conhecia.

Conforme a paisagem vista da janela do carro ia mudando, a sensação do desconhecido me aumentava. O horizonte antes preenchido com o mar agora estava encoberto por pinheiros e neblina, e eu havia adormecido nas últimas horas e não percebera que já se completavam as oito horas de viagem. Finalmente havíamos chegado ao nosso destino.

— Acorde Johanna, chegamos à Blue Falls! – A voz grave de meu pai ecoou no carro.

Blue Falls seria meu novo endereço. Localizada ao norte do país, era uma antiga cidade de montanha bem menor e mais fria do que eu estava acostumada. Conforme adentramos os limites da cidade, observei surgirem as ruelas e construções góticas intercaladas à edifícios clássicos e praças, junto à vegetação escura que espalhava-se por toda parte. Aos poucos nos afastamos do centro, e de repente viramos em uma rua ladrilhada, onde havia árvores de um lado e casas antigas do outro. A última quadra era uma subida, que terminava sem saída para um enorme portão negro cuja grade pontiaguda ficava entre duas colunas adornadas. Fui até ele segurando as pesadas chaves, e ao abri-lo ouviu-se um leve ranger. Aquele era o ápice da subida: olhando de dentro do portão, podia-se ver o bairro inteiro.

Assim que o carro entrou, atravessei o jardim em sua direção. Ele estava estacionado em frente à grande casa vitoriana de três pisos: meu novo lar. Olhei em volta, os enormes pinheiros e pequenos arbustos estendiam-se por todo o terreno. Algumas flores silvestres cresciam aleatoriamente e ligavam o jardim à campina dos fundos, desrespeitando o limite imposto pela grade preta que rodeava o terreno. Isso fazia tudo parecer parte de um todo. A campina dos fundos era um nível mais alto que nossa casa, e ela antecedia um enorme bosque.

—Me ajude com essas malas – disse meu pai, entregando-me algumas. - Chegamos antes de seu irmão, o que significa está com sorte J, vai poder escolher seu quarto.

—Ah pai, eu escolheria de qualquer jeito - disse olhando para baixo enquanto seguia em direção da porta principal.

Jonathan, meu irmão mais velho, estava vindo em seu próprio carro, coisa que ele fazia questão de se gabar desde que o adquiriu em uma feira de usados. Apesar das implicâncias, eu sentia falta da sua impertinente companhia. Desde que ele havia entrado na universidade de Blue Falls, suas visitas que começaram sendo semanais tornaram-se cada vez mais raras. Agora que havíamos nos mudado, voltaríamos a morar todos juntos, como sempre tinha sido.

Por dentro, a casa era ainda mais peculiar: os móveis antigos contribuíam para a aparência de que aquele local tinha parado no tempo, assim como o resto da cidade. Isso gerava uma atmosfera nostálgica, aquele tipo de nostalgia que você não compreende por se tratar de algo que você nunca viveu. De certa forma, eu gostava disso. Conforme subi as escadas, fui observando os quadros e os detalhes de cada canto. Meu pai já havia decorado tudo minuciosamente antes mesmo de nos mudarmos, embora tivesse mantido a organização e os móveis originais.

Vasculhando o primeiro andar, percebi uma pequena escada em um canto da ampla sala central em que eu me encontrava. Sem hesitar, a subi. Ela formava um pequeno corredor, e em uma curva terminava numa porta estreita. Ao abrir a porta, me deparei com um pequeno quarto de sótão. Havia pequenas janelinhas no alto das paredes e uma grande bay window central, onde havia espaço suficiente para se sentar e ler um bom livro, imaginei. Dela se via o jardim da frente, seguido pela cidade mais ao longe e as montanhas nebulosas ao horizonte, tudo rodeado pelas florestas de pinheiros. Deixei minhas malas sobre a cama, inconscientemente já escolhendo o cômodo como meu. Fui acomodando todos os meus objetos e planejando o que poderia pendurar ali na parte baixa do teto do cômodo.

Eu estava prestes à começar a colar meus desenhos na parede quando ouvi um ruidoso barulho de motor subindo a ladeira: Jonathan. Instintivamente desci as escadas para vê-lo, momento em que percebi como sentia sua falta. Meu pai já estava na entrada o recebendo.

—Johnny, que saudade! - ele dizia indo em direção ao filho.

—Pai! - exclamou ele com um sorriso. - Senti sua falta.

Olhei de longe enquanto se abraçavam, feliz ao ver que teria uma família novamente. Desde o desaparecimento de mamãe, meu pai que costumava ser alegre e divertido não era mais o mesmo. O que o animava, além de escrever, era Johnny. Papai era conhecido por ser "o grande Vincent Dubrowsky, escritor bem sucedido e arquiteto". Porém no último ano, desde a partida de Johnny e principalmente após o sumiço de mamãe, ele passava a maior parte dos dias em casa de pijamas se lamentando. Era bom vê-lo animado novamente.

—E aí J, quer dizer que sentiu minha falta também? - dizia meu irmão vindo em minha direção

—Infelizmente, mas não se acostume e... Ah! - antes que eu terminasse a fala, fui envolvida por seu abraço, o qual retribui com força enquanto ria. Sentia falta daquela fraternidade que tínhamos.

—Senti sua falta também, mas bem pouquinho, também não se acostume - ele disse após me soltar. - Onde será meu quarto aqui no mausoléu? Ouvi dizer que seremos a nova família Adams.

—Não fale assim da nossa nova casa, ela tem personalidade - interrompeu papai, virando-se para contemplar a casa.

x x x x

Horas depois, na mesa de jantar, finalmente paramos para ter uma conversa de verdade. O dia foi dedicado à arrumação da casa: Johnny escolheu o quarto circular do primeiro andar e papai ficou com a suíte em que a vista dava para os fundos. Estando tudo desempacotado e malas vazias, nos lembramos do quanto estávamos famintos. Felizmente meu pai era muito bom na cozinha.

—Então Jonathan, como está a faculdade? - papai perguntou enquanto comia silenciosamente. As faculdades de Blue Falls eram muito bem cotadas pela tradição.

—Sabe pai, é ainda melhor do que eu imaginava. Estar cercado por pessoas com o mesmo interesse, sabe, é inspirador – dizia Johnny entre uma garfada e outra. Aparentemente fazia tempo que ele não comia algo que não fosse instantâneo.

Não pude deixar de notar que seus cabelos, os quais ele sempre mantinha aparados, começavam a cair em sua testa, e que sua pele estava mais pálida. Provavelmente a minha também ficaria em um local nublado daquele jeito. Johnny tinha o rosto anguloso como o de papai, assim como seu jeito divertido de levar as coisas, mas seus olhos âmbar e cabelos cor de mel eram iguais aos de mamãe. Ao contrário de mim, cujos olhos verdes e cabelos escuros puxei inteiramente de meu pai.

—E você tem que se dedicar pra entrar em uma grande instituição de ensino mocinha – disse Johnny para mim em um tom autoritário, fazendo-nos rir.

—Bem, eu faço o que posso - respondi. - Tenho um ano ainda pela frente em um colégio onde não conheço absolutamente ninguém.

—Boa sorte, tomara que te coloquem um apelido constrangedor ou algo do tipo.

—Não se ninguém me notar.

—Ah, por favor J, vai dar uma de esquisita no seu último ano de colegial?

—Eu não dou uma de esquisita – protestei, mas já estava começando a rir, era difícil manter tom sério quando se tratava de meu irmão. – Desculpe se não quero ser o Sr. Popularidade como você foi.

— Tudo bem, tudo bem, já entendi. Talvez isso até pegue, visto que já estamos ficando famosos na cidade... - ele insinuou em um tom de malícia.

—O que quer dizer com isso? – questionei.

Meu pai olhava tudo atentamente, com um ar divertido. Johnny pigarreou antes de continuar:

—Já percorre pelo bairro boatos de que os Dubrowsky são a nova família a habitar a velha casa vitoriana. Eu sei, aqui é tudo muito rápido, bem vinda às cidades pequenas. Talvez sua imagem de garota esquisita venha a ser conveniente pra sua fama.

—Ah, nada melhor que a vida reclusa nas montanhas, já somos até celebridades – comentou papai com um tom irônico.

O que ele mais queria era um local sem lembranças de mamãe onde ele pudesse viver no anonimato, algo que aparentemente fracassou.

—Eu não quero ter uma fama ou ser conhecida por aqui Johnny - interrompi. - Só quero terminar o ensino médio sem tragédias.

—Isso eu quero ver - provocou Johnny, indo para o segundo prato.

Após o jantar, subi para meu quarto e parei diante da janela. Inconsequente, a abri e sentei-me no telhado. A cidade iluminada parecia um quadro expressionista em meio às florestas de pinheiro, as quais naquela penumbra pareciam abrigar mistérios. Havia pequenos pontos de luz no jardim, talvez vagalumes: os últimos resquícios do verão. O ar fresco de setembro anunciava a chegada breve do outono.

De repente, um movimento na rua me tirou de meus pensamentos. Vi pessoas se aproximarem pela ladeira e imediatamente entrei para não ser vista e poder observá-los. Eles então pararam diante do portão, com olhares curiosos. Estavam debaixo do poste de luz da rua, onde pude individuar suas formas: uma garota, com os cabelos curtos e pontas afiadas, e dois garotos encapuzados os quais não consegui distinguir muitos detalhes. Pela silhueta não pareciam muito mais velhos do que eu. Todos estavam segurando a grade do portão, observando a casa e cochichando entre si.

Após alguns longos minutos, observei suas formas descendo a rua e desaparecendo na escuridão, deixando-me novamente sozinha e agora instigada. Sempre fora muito curiosa, gostava de observar e investigar as coisas desde pequena. Tranquei a janela e deitei ainda pensativa, imaginando os boatos que podiam estar correndo pelas ruelas. As pessoas dessa cidade parecem ser estranhas. Não, a cidade toda tem uma aura estranha na verdade, corrigi mentalmente. E por algum motivo, senti vontade de pertencer àquilo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!