Juntos Contra o Clichê escrita por VILAR


Capítulo 20
Incontrolável


Notas iniciais do capítulo

Pensei, pensei, pensei se postaria este capítulo.
Bom, aqui estamos. No fim, achei uma boa transição.

Final de semana de Enem, hein? Uma excelente prova à todos. Queria ter feito este ano, apesar de já estar na faculdade, mas perdi a data de inscrição, haha.

Abraços ♥



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O único pensamento que me acompanhou durante todo o domingo foi o arrependimento de não ter mostrado o dedo do meio para Leonardo. Remexi durante horas na cama, sem conseguir dormir, imaginando mil e uma maneiras melhores de deixar a casa. A campeã foi, assim que tivesse atravessado a porta, esperasse cinco segundos, voltasse, gritasse um vai se foder ensurdecedor e levantasse o dedo do meio, deixando todos os homens de queixo caído com a minha saída triunfal.

A minha madrinha questionou sobre o motivo do meu bico durante todo o dia e, sem que eu precisasse confirmar, ligou a minha volta mais cedo do suposto encontro. Contei uma verdade parcial, pulando, claro, a parte que estive era o covil de uma gangue de cor. Por fim, ficou algo como o quanto Leonardo estava emburrado e nada no clima de um encontro.

Mais uma vez a fincada de mentir para alguém acertou em cheio o meu peito e, sem novidade, cogitei contar. A possibilidade de tudo acabar mal me calou. Minha madrinha certamente ficaria raivosa por estar me aproximando de uma pessoa tão problemática e, certamente, me proibiria de encontra-lo, mesmo Leonardo sendo sobrinho da sua mais nova amiga, Sandra. Não poderia culpa-la por isso. Por ser sua afilhada, é lógico que estaria preocupada e zelaria pela minha segurança, tanto por ser importar comigo quanto pela promessa que fez com a minha mãe. Não queria mentir para ela. Não, não mesmo. Mas eu também não queria deixar de vê-lo. O egoísmo e o descaso com a minha segurança me incomodavam horrores, porém, mesmo sabendo que era a errada da história, queria arriscar.

Na segunda-feira, encontrei Maria Luiza encostada nas enormes grades pretas com o olhar desviado para baixo, ignorando diversos olhares gulosos que a perseguiam. Aproximei-me a passos rápidos, curiosa para saber o que estava fazendo ali.

— Oi, Maria Luiza! – falei, animada, enquanto tocava em seu ombro. Ela assustou-se com o toque súbito e senti seus ombros pularem.

Seus volumosos cachos até os ombros não tampavam nada sua face delicada. Sem tardar, os olhos de obsidiana, grandes e redondos, encontraram os meus, a brilhar.

— Oi... – ponderou por um instante, sem demonstrar o que estava sentindo. – Sophie. – emendou, com a voz mais baixa, desviando os olhos dos meus.

Por um breve momento podia jurar que vi felicidade em seu olhar. Só o pensamento de ela estar feliz foi o suficiente para me fazer esquecer todos os acontecimentos de sábado.

— Estava me esperando? – brinquei, sentindo o meu bom humor voltar.

— Sim. – respondeu, imediatamente, voltando o olhar para mim. Não pude evitar a surpresa.

Nós três, contando com Gabriel, esperávamos uns aos outros para deixar a escola, mas esta é a primeira vez que a vi alguém aqui fora esperando por mim. O enorme sorriso deixou minha alegria transparecer, entretanto Maria Luiza não acompanhou minha reação; continuou com os lábios grossos estáticos e com as pálpebras caídas. Sem me deixar levar, agarrei sua mão e atravessei as grades, puxando-a, como boas amigas.

Antes mesmo de passar pela extensa porta de vidro vários olhares caíram sobre nós. Não era novidade que estávamos andando juntas, hoje fez uma semana que nos tornamos amigas, mas esta era a primeira vez que realmente parecíamos próximas. Eu falava alto, esbanjando alegria nas falas, e Maria Luiza se continha em responder com “sim” ou “não” a maior parte do tempo. Fazia o possível para ignorar os cochichos nervosos, porém às vezes um “pedra humana” ou “princesa do gelo” ultrapassava a barreira. Lançava um olhar para Maria Luiza sempre que escutava as crueldades para checar seu estado, mas ela não parecia se importar. Ela era realmente uma pessoa forte.

Despedi da minha amiga com um abraço, dramatizando a despedida, mesmo que nosso próximo encontro seja em menos de três horas. Maria Luiza, com o ânimo normal, passou os braços pelas minhas costas e pronunciou um “até logo” baixinho, que me deixou extremamente feliz. Andei mais um pouco para ir para a sala que passaria o resto da manhã.

O primeiro sinal tocou quando estávamos subindo as escadas, então fiz de tudo para ser rápida do suficiente para jogar tudo na minha carteira e trocar umas palavras com o Gabriel antes do segundo sinal, que indicava que já éramos para estarmos sentados. Estava a poucos passos da rodinha que formou a sua volta quando o som alto alertou todos os alunos. Sem escolha, voltei para o meu lugar, insatisfeita.

A segunda-feira significava uma coisa: biologia. Odeio biologia. Tentava me concentrar no professor que tinha a voz arrastada, entretanto a maioria das palavras que ele usava para explicar me fazia lembrar a cena de sábado.

— Professor. – chamou uma voz feminina vinda da parte de trás. – O senhor poderia corrigir os exercícios da página quarenta e sete?

Hoje não.

Foi o suficiente. Com a última frase do senhor Rogério, enfiei a mão na mochila, retirando, discretamente, o meu celular. Pode não ser tarde o suficiente para mandar um xingamento a Leonardo, afinal.

Desbloqueei o aparelho rapidamente e, antes que pudesse pressionar o aplicativo de mensagens, meu papel de parede me deixou em transe. Encarei o rosto surpreso do Leonardo fotografado e suspirei, pensativa. Observei atentamente cada detalhe da foto, demorando mais do que o necessário no abdômen nu. Passei os olhos pelos pés tampados pelas meias brancas e pela calça jeans escura com a braguilha aberta, que deixava pouco visível um tecido vinho. As tatuagens que cobriam os dois antebraços chamavam atenção, mesmo que eu já esteja cansada de analisa-las. As linhas negras grossas não demonstravam quaisquer significados, então tirei como conclusão que Leonardo queria apenas tê-las ali, sem maiores recordações. Antes de chegar ao rosto, entretanto, a marca avermelhada gritou para que meus olhos a olhassem. Repousei o olhar para o maior mistério da foto, repassando tudo o que já havia pensado para explica-la. Marca de nascença? Ferimento recente?, libertei outro suspiro. Não parecia nada disso. Sentia-me dentro de The Vanishing of Ethan Carter*. Dei zoom pela milésima vez, esperançosa em descobrir desta vez. Talvez..., a possiblidade apertou o meu coração. Não foi a primeira vez que refleti sobre a alternativa que certamente era a mais plausível. Sejam mesmo queimaduras.

O recreio chegou a um piscar de olhos. No pátio descoberto, em um banco de madeira atrás da escola, contava tudo o que havia acontecido no sábado para Gabriel e Maria Luiza, sentados cada um de um lado meu.  

— Gangues? – indagou Maria Luiza antes de eu chegar à parte da minha briga com a do Pedro, que acabei deixando por último. Na semana anterior ao encontro com Leonardo contei bastante coisas sobre o meu interesse amoroso à minha terceira melhor amiga, mas pulei a parte do grupo perigoso que ele liderava. Maria Luiza não parecia o tipo de pessoa que me obrigaria a deixar de vê-lo, então não via mal conta-la. – De cor? – completou antes que eu pudesse responder. Por um segundo pude ver suas sobrancelhas darem uma leve tremida. Estranhei.

— Você conhece? – deixei a curiosidade guiar.

— É muito difícil achar alguém que não as conheça. – invadiu Gabriel, bufando, como se minha pergunta fosse uma ofensa.

Maria Luiza concordou com Gabriel antes de continuar. – Ele... – ponderou por um breve instante. E lá estava o tremor nas sobrancelhas. – Ele é de qual? – seus olhos fugiram dos meus. Não demonstraram nada que pudesse captar.

— Alvorecer Rubro. – disse, simplesmente. E, pela terceira vez, suas sobrancelhas tremeram, porém desta vez estava evidente. As obsidianas encontraram minha face rapidamente, incapaz de disfarçar a surpresa.

— Uma fã? – concluiu Gabriel, desinteressado, fitando algo distante.

— Quer conhece-los? – emendei, a sorrisos. Os garotos poderiam ficar felizes em conhecer uma fã. O evento poderia até acalmar toda aquela tensão da última vez.

— O quê? Não! – sua voz se elevou um pouco, fazendo com que Gabriel finalmente olhasse em nossa direção. – Não, não precisa. – completou, mais calma.

— Não precisa se envergonhar! – coloquei ambas as mãos em seus ombros, passando toda a minha confiança. – Vai ser bem divertido! – Maria Luiza apenas me lançava uma expressão neutra, costumeira. – Além do mais, será uma ótima oportunidade de invadir depois de tudo o que aconteceu. – aumentei o sorriso, ansiosa para colocar o plano em prática.

— Então é por isso que chamou, né? – Gabriel gritou próximo ao meu ouvido, possesso.  

— Realmente não precisa. – Maria Luiza afastou minhas mãos dos seus ombros, sem olhar para nossa direção.

Reposicionei meu corpo para frente, a fim de deixar os dois a minha vista. Era realmente uma boa chance. Gostaria, sim, de voltar a falar com Leonardo, mas minha curiosidade sobre o caso de Pedro também estava me incomodando, mesmo que ele não mereça minha atenção. Se possível gostaria de ganhar mais informações do Jô, o único que me explicou sobre tudo aquilo que os cercava. Tenho três bons motivos para voltar lá o mais cedo possível.

— Então está combinado. Sábado, às 14h. – afirmei, trazendo quatro olhares indignados em minha direção.

— Não concordei em ir com vocês! – Maria Luiza voltou a elevar a voz.

— Muito menos eu! – Gabriel alertou, gritando. Estava prestes a estourar meu tímpano esquerdo.

Retirei o celular do bolso, sem respondê-los. Fui rapidamente ao aplicativo de mensagens antes que pudessem perceber o meu querido papel de parede. Com dedos ágeis, digitei uma pequena mensagem para a pessoa que garantirá a companhia do meu amigo.

— O que você está fazendo? – Gabriel movimentou a cabeça para próximo ao meu ombro, tentando observar a tela trincada.

Sorri em sua direção, o que o fez ficar com as sobrancelhas franzidas. – Avisando a tia Sandra que vamos sair no sábado. – levantei a mão direita com apenas os dedos indicador e médio esticados, contando vitória.

— Como caralhos você tem o número da minha mãe?! – alterou-se, voltando a gritar ao meu lado.

Depois de longos quinze minutos tentando convence-los, marcamos a saída. Gabriel passará primeiro na casa da Maria Luiza e depois na minha, o que me livrou de uma caminha longa de baixo do sol escaldante. Maria Luiza demonstrava-se desconfortável com a ideia, mas não me deixei abalar. Estava satisfeita em apresentar os suposto ídolos para ela.

— Espero que você fique feliz, Malu! – passei o braço atrás do seu pescoço, trazendo-a mais próxima de mim. Estávamos voltando para as salas de aula.

— Malu? – questionou com a voz baixa. Os olhos negros brilhavam próximos aos meus. Não pude acobertar o meu espanto em vê-la tão emocionada.

— Parece nome de cachorro. – balbuciou Gabriel atrás da gente.

— Seu nome é grande demais para ficar falando toda hora. – comecei depois de me recuperar. – Aliás, é curto e combina com Gaby. – alfinetei-o por debochar do apelido.

E, em meio a diversos xingamentos, voltamos para as salas. Desta vez controlei meus pensamentos, deixando-os na aula de matemática em vez viajar com todas as coisas que estão à volta da Alvorecer Rubro e de seu líder. Leonardo parece um romance de mistério, o que me faz querer lê-lo rápido para saber como tudo irá se desvendar.


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Notas finais do capítulo

> The Vanishing of Ethan Carter é um jogo de mistério cujo detetive dialoga com o jogador com as mesmas perguntas. "Sangue? Suco? Maçaneta? Romero Britto?".