Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 7
Sete


Notas iniciais do capítulo

Je ne regrette rien é uma música francesa gravada por Edith Piaf em 1956. É uma música belíssima, por isso eu não queria deixar de mencioná-la. Fala sobre não se arrepender do passado. Sobre recomeço. Sobre amor. Como uma boa canção francesa.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/598749/chapter/7

As coristas terminaram a apresentação acenando para o público e recebendo muitos aplausos. Então, as luzes foram diminuídas e uma expectativa percorreu o salão. A estrela da casa ia se apresentar.

Claude caminhou sobre o palco indo até o microfone. Uma única luz azulada incidia sobre ele.

– Madames e messieurs, o Moulin Rouge tem a honra de apresentar... O rouxinol de Paris: mademoiselle Angelique Fortuné. – ele estendeu a mão para Lucille que entrava absoluta no palco. Estava deslumbrante. Um vestido azul estilo sereia colava-se ao seu corpo como uma segunda pele. Uma cabeleira flamejante caia sobre seus ombros e suas costas. Um decote profundo descobria-lhe as costas.

Claude beijou-lhe a mão e saiu do palco. A banda começou a tocar e a voz aveludada começou a se fazer ouvir.

[1]“Non... Rien de rien... / Non... Je ne regrette rien / Ni le bien qu'on m'a fait, / Ni le mal - tout ça m'est bien égal!”

A música falava de uma mulher que não se arrependia de nada que fizera.

[2]Balayé les amours / Avec leurs trémolos / Balayés pour toujours / Je repars à zéro...”

Que o passado estava morto e esquecido.

[3]Non... Rien de rien... / Non... Je ne regrette rien / Car ma vie, car mes joies, / Aujourd'hui, ça commence avec toi!”

Que ela iria recomeçar.

A voz de Lucille foi num crescendo até o clímax da música e o silencio que se seguiu foi ensurdecedor. De repente aplausos explodiram e várias damas foram vistas levando o lencinho aos olhos.

Mas, afastado de todos um homem observava o show encoberto pela penumbra do lugar. Ele tirou algo de dentro de seu sobretudo e foi até o bar. Seu chapéu encobria-lhe os olhos e ele se dirigiu para o barman.

– Por favor, entregue para a cantora... – e estendeu uma caixa comprida mais uma nota de duzentos francos.

O barman o olhou surpreendido.

– Sim, monsieur.

Após lançar mais um olhar para a mulher no palco que agora agradecia os aplausos, o homem saiu da casa noturna.

Lucille agradeceu os aplausos mais uma vez e saiu do palco. Correu para os camarins onde Elsie a esperava.

– Vamos, Lucille! Rapido. Você tem que trocar o vestido para a próxima música.

A moça já havia tirado o vestido azul e agora colocava outro. Esse era verde, da cor de folhas novas, com pequenos cristais que imitavam gotas. Ela deu um beijo na bochecha de Elsie e se juntou as outras meninas que vestiam roupas semelhantes, embora bem mais curtas. Na perna de cada uma delas uma liga prendia uma rosa.

Quando um som animado de piano começou a tocar elas entraram em cena. Lucille correu graciosamente para o microfone começando a cantar.

A música era animada e as meninas dançavam graciosamente. Lucille cantava insinuando a coreografia delas com as mãos ou com os pés. E até Serguei, tocando o piano, balançava a cabeça nos acordes da música.

E quando esta acabou, todos se curvaram agradecendo. A banda continuaria tocando mas Lucille já estava dispensada. Ela se encaminhou para os camarins trocando uma ou outra amabilidade com as dançarinas. Os funcionários do Moulin Rouge eram como uma grande família e todos estavam preocupados com a vinda de uma nova cantora.

Mas a doçura e os olhos tristes de Lucille conquistaram a todos. Até o barman Jacques, que era tido por todos como durão. E ele tinha que ser, por que como sempre alguns sempre exageravam na bebida.

Lucille entrou no camarim e se despiu da personagem Angelique Fortuné com a ajuda de Elsie. Geralmente ela saia pelos fundos da casa, mas Jacques havia feito alguns sinais para ela ir ao bar depois do show.

Quando ela encostou no balcão, um homem a abordou.

– E aí, bonequinha? Gostaria de um drinque?

Mas antes que ela pudesse responder, Jacques já estava parado do lado do homem.

– Não. Ela não bebe.

O homem olhou para aquele homenzarrão de pelo menos dois metros de altura e que tinha o físico de um lutador profissional, ergueu as mãos a guisa de desculpa e saiu de perto dos dois.

– Oi Jacques. Queria falar comigo?

– Um homem deixou isso no final da primeira música. – ele estendeu a caixa para ela.

Ela sentiu o peso da caixa.

– É leve demais para uma bomba. – Lucille tirou a tampa da caixa. Em um fundo vermelho, havia uma única rosa branca.

– Humm. Deve ser algum admirador. Eu o observei durante a música. Ele nem se mexia ouvindo você cantar.

– Ele disse o nome?

– Nada. Mas me deu uma gorjeta de 200 francos. – ele completou sorrindo.

– Nossa! – ela exclamou. – Então vamos esperar que ele volte mais vezes, não é? Boa noite, Jacques.

– Boa noite, mademoiselle.

Lucille saiu para a noite parisiense, se apressando o andar. Era quase dez da noite, o horário do toque de recolher. Ainda bem que ela morava próximo. Muitos outros ainda continuariam em Montmartre usufruindo dos prazeres do lado boêmio de Paris.

Assim que chegou em casa, ela colocou a chave na fechadura e virou a chave. Nesse momento ela sentiu uma mão tapando sua boca. Assustada, debateu-se. Suas costas colaram-se a um peito forte e uma voz sussurrou em seu ouvido:

– Senhorita Grangier, sou eu. Julian.

Lucille parou de se debater. Julian a soltou e ela voltou-se para ele.

– Julian? Julian Desmonts? – ela o olhou de cima a baixo – Julian Desmonts! Onde você estava? Estávamos todos preocupados com você!

– Senhorita! Será que posso entrar? – ele olhou por cima do ombro – Tem uma patrulha alemã atrás de mim.

Imediatamente, Lucille abriu a porta e os dois entraram. Quando ela acendeu as luzes, viu que o jovem tinha arranhões nos braços e no rosto e a camisa tinha uma mancha rubra no ombro.

– Está ferido! Sente-se que eu vou ver isso.

Obedientemente, o rapaz sentou-se em uma cadeira. Nesse momento alguém bateu na porta. Os dois imobilizaram-se. Lucille correu para a escada e abriu uma portinha fazendo sinal para Julian entrar. Ela disfarçou a portinha com uma cortina rendada e foi atender a porta.

Dois soldados alemães estavam parados na porta.

– Pois não? O que desejam? – ela perguntou abrindo a porta totalmente mostrando não ter medo deles.

– Senhora, estamos perseguindo um criminoso e ele foi visto vindo nessa direção.

– Nessa direção? – ela arregalou os olhos. – Eu estava me preparando para dormir... Mas não escutei barulho nenhum na casa.

– Podemos falar com seu marido então.

– Ele já está dormindo. Meu marido acorda de madrugada para trabalhar. Não vou acordá-lo.

Os dois soldados fecharam a cara.

– Senhora, então nós teremos que revistar a casa.

Lucille deu um suspiro e abriu a porta.

– Só por favor não façam barulho. E sejam rápidos. É muito tarde...

Os soldados entraram na casa olhando em volta. Lucille sentou-se na cadeira por que sentia as pernas bambas. Ela tentava aparentar tranquilidade, mas seu coração batia acelerado. Ela sabia que se Julian fosse encontrado,ela seria presa junto com ele. E então os outros que dependiam dela ficariam sem nada.

Um dos soldados resolveu fumar naquele instante. Lucille levantou-se com o cenho franzido.

– Não se fuma nesta casa. Respeite isso, senhor.

O soldado ficou com o cigarro na boca, aparentemente pensando se levava o pedido dela em consideração. Com o isqueiro aceso a poucos centímetros do cigarro, ele a media com o olhar o que fez a jovem arrepiar-se de medo. E se eles descobrissem que não havia marido nenhum? O que fariam com ela?

Mas, ele fechou o isqueiro tirando o cigarro da boca. Quando o soldado foi guardar o isqueiro no bolso, ele escapou de sua mão caindo no chão com um barulho metálico.

O alemão abaixou-se para pegá-lo ficando perigosamente perto do final da cortina rendada que disfarçava a portinha da escada. Se a mão do soldado resvalasse na cortina, ela revelaria a portinha, mostrando um possível esconderijo.

Mas, para alivio de Lucille, o alemão logo se levantou.

– Vamos, Hans. Estamos perdendo tempo aqui. – ele declarou chamando o outro soldado e encaminhando-se para a porta.

Ele a abriu, mas antes de sair, voltou-se para Lucille levantando a mão direita.

Hail Hitler!

Contrariada, Lucille repetiu o gesto.

– É. Hail Hitler. – disse ela sem entusiasmo apressando-se a fechar a porta.

A jovem permaneceu alguns minutos encostada à porta escutando. Só quando ouviu o ruído dos passos dos soldados distanciando-se da casa foi que ela saiu de onde estava indo até a janela. Ela afastou um pouco a cortina e olhou para a rua. Os dois soldados distanciavam-se da casa andando rapidamente. Lucille suspirou de alivio e foi tirar Julian do esconderijo.

O rapaz saiu piscando repetidamente os olhos por causa da claridade repentina.

– Obrigado, senhorita. Se eles me pegassem...

Lucille colocou as mãos na cintura.

– Agora você vai me contar por que uma patrulha alemã considera você um criminoso e onde você estava todo esse tempo.

Julian sentou-se e começou a contar.

– A senhorita sabe que eu nunca fui conformista. E quando as tropas alemãs começaram a se movimentar dentro da França, eu me reuni com alguns rapazes que estavam tão dispostos quanto eu a ser uma pedra no sapato do Führer.

– Mas idealismo é mais fácil em teoria do que na prática. Quando as coisas começaram a ficar difíceis, alguns caíram fora. Tínhamos chamado a atenção dos alemães e também de outras pessoas também. Fui convidado a ingressar na la liberté française.

– Mas eles são maquis, Julian. – ela sentou-se.

– Sim, mas eu também já era um maquis, senhorita. Ou você acha que eu atacava os alemães com pedras e paus. – ele esclareceu de forma irônica. – Meu grupo provocou mais danos nos comboios alemães do que todo o exercito. Foi por isso que eles montaram uma armadilha pra nós.

– O que aconteceu? – ela perguntou.

– Parecia um comboio pequeno, talvez de alimentos para algum grupamento próximo. Mas quando nós atacamos, os malditos estavam escondidos nas caçambas. Eu levei um tiro quando fugia e cai de uma ribanceira. Acho que devo ter ficado desacordado por algumas horas. Se eles fizeram alguma busca, eu escapei.

– Você se arriscou muito, Julian. Deixou a todos nós preocupados. Eu, Padre Honoré... E sua irmã? Você não pensou nela? A pobrezinha ficava todos os dias esperando por você. – Lucille brigou com ele.

– Eu tinha que ir, senhorita. – a voz dele soou cansada.

Lucille olhou para ele e viu que Julian estava no limite de suas forças.

– Meu Deus! Você precisando de cuidados e eu aqui falando de algo que já passou. Deite-se que eu já volto. – ela desapareceu numa sala próxima.

Lentamente, Julian reclinou-se no sofá. Tinha tido muita sorte mesmo. Se ele fechasse os olhos, ainda podia ouvir o barulho das metralhadoras e os gritos dos companheiros. Não se culpava por ter conseguido fugir, mesmo ferido. Todos no grupo sabiam dos riscos. Agora ele tinha que se recuperar e voltar à ativa. Ainda havia muito que fazer.

O problema é que o cérebro queria voltar à ativa, mas o corpo não. E nessa batalha o cérebro era voto vencido, por que, contra tudo que ele acreditava, quem também queria ficar era o seu coração.

– Pronto. – Lucille voltou à sala. Ela colocou uma cadeira próxima ao sofá. – Agora tire a camisa para que eu possa ver esse ferimento.

Julian a obedeceu, sentando-se e retirando a camisa com um pouco de dificuldade. Ela piscou surpresa ao ver que o corpo do jovem não era mais do garoto que ela costumava remendar quando ele se feria de alguma traquinagem ou de alguma briga com os outros garotos. Julian agora tinha ombros largos, a pele amorenada pelo sol da fazenda dos padres onde ele morava e os braços longos e fortes do trabalho diário na fazenda. Ela sentiu um arrepio tipicamente feminino.

Surpresa com as próprias reações, ela recriminou-se: “Pelo amor de Deus! Onde ela estava com a cabeça? Aquele era o Julian, que ela tirara da rua junto com a irmã Nanette numa noite chuvosa. Ela dera aulas para ele. Fora sua professora. Ela deveria se envergonhar...”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

[1] Essa música é  Non, Je ne regrette rien de Edith Piaf. Mas ela só seria gravada em 1956. (nota da autora)

[2] Idem ao 8. (nota da autora)

[3] Idem ao 8. (nota da autora)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma canção de esperança" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.