Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 35
Trinta e Cinco




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Os dois seguiram para o pátio externo do Orfanato. Nenhum deles queria iniciar a conversa e quando decidiram iniciar, decidiram ao mesmo tempo.

– Eu queria... – disse ele.

– Você queria... – disse ela.

Eles pararam e riram meios sem graça. Julian começou a dizer.

– Eu queria pedir desculpas a você.

Os olhos dela ficaram ainda maiores no rosto. Nunca podia imaginar que ele pediria desculpas a ela.

– Eu entendo a raiva de vocês contra nós, alemães. Vocês são pessoas com o espírito livre. Não deviam ter se submetido.

– Como lutar contra a máquina alemã? Pensávamos que podíamos. Mas... Deu no que deu. Mas padre Honoré me fez ver que você não tem culpa de nada. Você veio aqui, fingindo ser outra pessoa para poder fazer o bem. As crianças gostam tanto de você.

– E eu delas. – Hanna sorriu e Julian desviou o olhar. Se continuasse vendo-a sorrir daquele jeito tão espontâneo e ao mesmo tempo tão sedutor, perderia a cabeça. Nossa, ele pensou, voltara a ser um adolescente com os hormônios em fúria.

– As crianças me fazem lembrar de meus dois irmãos que ficaram na Baviera.

– Baviera... – Julian repetiu o nome. – E como é lá?

Os dois entravam na igreja. A luz das lamparinas iluminava o lugar suavemente. O silencio só era quebrado pelo som dos passos do casal. A atmosfera santificada do lugar sempre havia incomodado Julian, desde garoto. De espírito rebelde e irrequieto, a permanência na igreja sempre fora motivo de aborrecimento para ele. Mas agora, caminhando ao lado de Hanna e vendo o quanto ela ainda se tornava mais bonita à luz suave, Julian estava gostando de cada minuto ali,

– Ah... Lá é lindo. Montanhas cobertas de neve, o ar puro e gelado. As pessoas são alegres e gostam muito de cantar enquanto trabalham. No Natal, ouvíamos corais e distribuíamos comida e bebida quente aos pobres. Papai sempre dizia que tínhamos que dividir todas as bênçãos que Deus havia nos dado.

– Vejo que você aprendeu com ele a ser boa.

– Eu tento. Meu pai era uma pessoa rígida, mas justa. Não era muito sentimental, mas sempre nos ensinou a sermos decentes e sinceros com os outros. – ela abaixou a cabeça para esconder o brilho das lágrimas. Tinha tanta saudade dele.

– E você gostaria de voltar pra lá?

– Muito! Mas não há possibilidade disso acontecer. Otto não suporta Munique. Acha que Berlim é o centro do universo. É onde está concentrado o poder e a posição que ele almeja.

– E sozinha?

Ela o olhou, surpreendida.

– Eu não conseguiria. Veja, eu sempre morei com meus pais. Saí da casa deles casada com Otto. Eu não saberia nem por onde começar. – ela deu um suspirozinho. – Você deve me achar uma inútil, uma medrosa.

– Não, pelo contrário. Você teve coragem para me enfrentar e voltar aqui. – ele declarou pegando na mão dela.

Hanna sentiu que o tempo parava. Parecia que algo importante iria acontecer. Seu estomago novamente parecia tomado por mil borboletas.

Julian engoliu em seco antes de continuar. Até agora, tudo correra bem. Ela aceitara suas desculpas, estavam conversando civilizadamente e não recuara quando ele pegou nas mãos dela. Ele as sentia trêmulas entre as suas, o que significava que Hanna estava tão perturbada quanto ele. Queria dizer a ela tudo que sentia, mas nunca fora bom com as palavras. Ele era direto e assim falaria com ela.

– Hanna... Nesses dias eu a observei e vi o quanto você era doce e sensível com as crianças, E respeitosa com as amas e com padre Honoré. E agora conversando com ele, vi que a raiva que eu senti de você ao saber que era alemã e casada com Von Gorthel era apenas mascarava o que eu sentia de verdade. Desde o primeiro momento em que nossos olhos se cruzaram, você está em meus pensamentos. E hoje, eu sei que eu a amo e quero fazer parte de você.

A moça ouviu o discurso dele sem emitir nenhum som, mas respirava forte e rápido. Julian tomou isso como um bom sinal e continuou.

– O mundo está confuso agora, mas esse inferno não durará para sempre. E agora sou procurado pelos nazistas e, se for pego, posso ser executado. Mas, se for para ser assim, morrerei feliz sabendo que seu coração é meu.

– Não! Não diga isso. – ela retirou as mãos e as colocou no rosto dele. – Cada batida de meu coração pertence a você, e se o seu parar de bater, o meu também irá parar. – os olhos de Hanna brilhavam como duas safiras, repletos de felicidade, mas ao mesmo tempo de medo.

– Oh Hanna. Minha Hanna. – ele a abraçou procurando seus lábios macios e doces. Neles, Julian sentiu a inocência de uma mulher que nunca fora beijada com amor. Eles tremiam como se fosse asas de uma borboleta. O beijo foi tão casto e tão divino que eles se sentiam transportados aos céus.

Mas, para o horror de Hanna, não foi o coro de anjos que ela ouviu e sim um bater de palmas já conhecido. Afastando-se dos braços de Julian, ela viu Von Gorthel que se aproximava ladeado de dois soldados.

– Sim! Que tocante. – ele escarneceu continuando a aplaudir. – Agora eu sei o quanto conforto a religião lhe concede, querida esposa. Numa igreja? Devia se envergonhar...

– Eu não tenho nada para me envergonhar, Otto.

– Ora! E ela ficou corajosa! Onde está a ratinha com quem eu me casei?

– Hanna nunca foi uma ratinha. Ela é uma mulher admirável. – Julian a defendeu.

– E você quem é? Mas não importa. – Von Gorthel fez sinal para os dois soldados. – Prendam-no.

Os soldados avançaram para cumprir a ordem, mas Julian sacou uma arma e os fez parar. Pegou Hanna pela mão, dizendo:

– Venha meu amor.

Ela segurou firme e quando os dois corriam para a saída, Von Gorthel bradou:

– Hanna!

E ela parou.

– Pense bem no que vai fazer... Se for com ele, eu tenho poder para acabar com esse Orfanato que lhe é tão caro. Executo o padre e mando todas as crianças para um campo de concentração.

Hanna ficou lívida.

– Você não faria isso.

– Quer apostar? – ele perguntou sorrindo.

Ela olhou para Julian. As mãos entrelaçadas. Enquanto o olhar estava fixo no rosto do homem que ela amava, sua mão foi lentamente escorregando da dele, até que somente os dedos se tocavam.

– Não, Hanna. Ele está mentindo.

– Você não conhece o Otto como eu, Julian. Ele é capaz de tudo. Não vou deixá-lo fazer ninguém sofrer. – de costas, ela começou a se afastar de Julian.

Quando ela já estava próxima à Von Gorthel, ele a segurou pelo braço e desferiu um tapa em seu rosto. Julian fez menção de ir defendê-la ainda com a arma em punho.

– Matem-no! – ordenou Von Gorthel enquanto arrastava Hanna até a saída.

Os soldados começaram a atirar contra Julian.

– Não! Julian! – ela gritou por ele.

– Hanna! Eu volto! – ele gritou de volta entre os tiros. – Eu volto pra buscar você. – e ele fugiu com os soldados em seu encalço.

Von Gorthel empurrou Hanna para dentro do carro onde já estava Clara. As duas mulheres abraçaram-se e Hanna soluçava histericamente.

– Calem a boca, as duas! Se não, eu acabo com vocês. – Von Gorthel vociferou.

Clara olhou para Von Gorthel e seus olhos brilhavam com uma raiva contida. Se ele não tivesse ali com uma arma na mão, a velha senhora seria capaz de matá-lo. Mas ela limitou-se a afagar os cabelos de sua menina enquanto pedia a Deus para que Ele as salvasse daquele louco.

***

Julian havia crescido nas ruas de Paris. Não havia nenhuma rua, beco ou buraco que ele não conhecesse. Então foi fácil despistar os soldados que o perseguiam.

Ele parou para tomar fôlego e quando reiniciou a caminhar deu de encontro com um homem. Quando se endireitou, Julian achou que estava perdido. O homem era um oficial nazista.

Mas ele reconheceu aquele rosto debaixo da aba do quepe.

– Vermont?

O homem o puxou pelo braço até um beco próximo.

– Fale baixo, Desmonts! O que está fazendo aqui?

– Eu conheço essa parte de Paris. Cresci dormindo nesses armazéns. E você?

– É onde nós nos reunimos.

– Então é assim que você consegue as informações... Muito esperto. – disse Julian olhando Gerard de cima a baixo.

– Se você não esquecer que me viu assim, eu serei obrigado a matá-lo.

– Entra na fila. Hoje tem muita gente querendo me matar.

– Quem está atrás de você?

– Dois soldados que eu fiz de trouxas, seu chefão Von Gorthel...

– Von Gorthel? Mas ele nem sabe quem você é.

– Ele me flagrou com a esposa dele.

– O que?! – Gerard parou de andar.

– Estamos apaixonados.

– Ah, Desmonts conta outra. Até outro dia, você queria me matar para ficar com a minha esposa. Apaixonado... Será que não está querendo usá-la para se vingar dos nazistas?

Gerard só não previu a resposta de Julian. O francês agarrou-o pelo colarinho e o imprensou numa parede.

– Seu desgraçado! Eu nunca usaria Hanna como instrumento de vingança.

Gerard viu o rosto transtornado do outro. Aquele era o rosto de um homem apaixonado. E ele desejou chutar a si mesmo por ter falado aquilo. Procurou se soltar do aperto do outro.

Julian o soltou e começou a andar de um lado para o outro como uma fera enjaulada. E Gerard se lembrou das vezes que se sentira assim. Longe de Lucille, incapaz de dizer a ela que estava ali, que ela não precisava mais chorá-lo como morto.

– Olha, Desmonts... Julian. Desculpe. Não achei que você estava falando sério.

– Ele a agrediu na minha frente! E eu fui incapaz de defender a mulher que amo. Eu não sei como ela está. Aquele louco é capaz de qualquer coisa. – de repente Julian teve uma ideia. – Você poderia tentar descobrir.

– Eu posso tentar. Mas você não gostaria de saber por si mesmo?

Julian o olhou surpreso.

– Como?

– Eu tinha previsto uma incursão até a casa de Von Gorthel. Ele recebeu alguns telefonemas hoje e quero ver os documentos que ele tem no cofre. Eu conheço todo o funcionamento da casa, afinal eu sou o secretário de Von Gorthel e hoje ele costuma peregrinar pelos bordeis da cidade. Temos algumas horas depois das onze da noite. Venha – Gerard sentou numa cadeira – temos muito tempo para conversar.

Julian olhou o relógio. Eram quase oito. Iria ser uma longa espera.


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