Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 28
Vinte e oito




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A coisa mais difícil que Lucille fez foi sair daquele lugar. Uma parte dela queria ficar, aninhar-se nos braços fortes de seu marido dando graças a Deus por que ele ter voltado para ela. E a outra parte queria manda-lo para o inferno!

Lucille parou debaixo de uma luminária e pôs a mão na barriga. Uma forte náusea a acometeu e, dobrando o corpo para frente, ela vomitou. Apoiando-se no poste de iluminação ela pôs a mão na testa. A ideia de uma possível gravidez nem passou pela sua cabeça, uma vez que ela sempre foi controlada em seu ciclo menstrual. Com certeza, a emoção do reencontro a tinha deixado fraca.

E como ela faria quando encontrasse Julian? Nos últimos tempos, ele andava estranho, arredio. Provavelmente por que sabia do retorno de Gerard, mas não podia lhe dizer. E eles nunca mais tiveram uma noite juntos. Julian era um rapaz muito correto e nunca possuiria uma mulher que fosse casada. Ele até podia amá-la, mas seu senso de moral era muito mais forte.

Finalmente ela chegava em casa e tudo que ela queria era chorar até dormir. Como uma criança que havia passado por um susto muito grande.

***

Mimi terminou a sua taça de champagne como um gato que comeu creme em demasia. Nunca se arrependeria de ter contado ao sargento Kroll as coisas que havia descoberto sobre Angelique Fortuné, ou Lucille Vermont. O sargento lhe contara que já havia descoberto a verdadeira identidade da cantora, mas desconhecia o romance dela com o capitão Vaan Sucher. Ao saber, o alemão não esboçou nenhuma reação a não ser tamborilar os dedos na mesa sem dizer uma só palavra. Mimi poderia até pagar uma fortuna para saber os pensamentos dele. Então sem mais nem menos, ele se levantou da mesa, jogou algumas notas sobre a mesa e saiu.

Se Mimi tivesse algum sentimento verdadeiro em si, ela teria ficado até insultada. Mas ela simplesmente continuou a tomar sua champagne como se nada tivesse ocorrido.

***

Kroll saiu do bar sentindo o ar gelado no rosto. Quem o visse não poderia dizer o quanto ele estava furioso. Ele havia desenvolvido uma devoção absoluta por Von Gorthel. Eram como almas gêmeas. Senhor e servo. E saber que aquele maldito do Vaan Sucher havia tocado no objeto de desejo do seu comandante o deixava cego de ódio.

Sua vontade era descarregar toda sua raiva em alguém. De preferência em Vaan Sucher. Mas ele não faria isso. Pensaria em algo melhor. O pensamento de chicotear a mulher que ele amava lhe passou pela cabeça. Um sorriso sádico brincou-lhe nos lábios. Já que ele não poderia mostrar a Vaan Sucher suas qualidades no chicote, ele as testemunharia no belo corpo da cantora.

Ao virar uma esquina, ele viu uma menina sentada na calçada. De imediato reconheceu uma criança de rua. E bem novinha... De uns doze anos. Perfeita para o seu mestre.

***

Hanna abriu os olhos para a escuridão. Sentou-se na cama ainda ouvindo os sons do seu sonho. Não, de seu pesadelo. Ela via um muro enorme de arame farpado que parecia não ter mais fim. Ela ouvia uma voz feminina lhe chamar e percorria o muro, mas nunca conseguia chegar ao seu final ou encontrar quem lhe chamava.

Apurando os ouvidos, ela escutou o silencio da noite. E um som indistinto chegou até ela. Parecia alguém chorando. Um choro de criança.

Hanna levantou da cama e vestindo o penhoar, saiu do quarto.

Olhando por cima da balaustrada, ela viu uma luz que vinha da biblioteca e se dirigiu para lá. O som de choro vinha daquela direção mesclando-se a uma peça de Wagner. Algo estava acontecendo... Otto só ouvia Wagner nos momentos mais sádicos de sua existência. Assim como na lua de mel deles...

Mas nada a havia preparado para a cena que se desvendou assim que ela abriu a porta. À luz da lareira, parcialmente despido, Otto estava confortavelmente sentado em uma poltrona com uma pistola na mão. De frente para ele, havia uma menina nua ajoelhada e atrás dela, com uma espécie de chicote na mão, estava o sargento Kroll. Otto se comprazia com cada golpe que a menina recebia. Era visível a satisfação em seu rosto.

– Parem com isso! – ela gritou.

Kroll ficou parado com o chicote erguido. Von Gorthel olhou para a porta e sarcasticamente ergueu o copo como num brinde.

– Boa noite, esposa. Veio se juntar a nós?

Hanna correu para a lareira e pegou um atiçador apontando para o sargento.

– Fique longe dela! – ela tirou o penhoar e cobriu a menina. Hanna viu que eles tinham o olhar vidrado, avermelhado. E seus movimentos eram lentos. O que lhe permitiu pegar a menina.

– Venha querida. – seu penhoar estava manchado em vários pontos, o que fez ela apertar os lábios de fúria. Hanna olhou para o marido.

– Eu pensei que você não fosse mais baixo do que é, Otto. Maltratar crianças por prazer? Você é o demônio!

– O demônio que a salvou queridíssima. Eu lhe salvei da morte, então não posso ser tão ruim quanto pensa.

– Você não sabe o que está dizendo. Salvar-me da morte! Você me trouxe para o inferno. – dizendo isso ela saiu da biblioteca.

– O senhor quer que eu vá buscar a menina, mestre?

– Você não tinha era que ter deixado ela levar a garota, seu idiota. – Kroll se encolheu como um cão que leva um chute. Von Gorthel levantou-se da poltrona e bateu no rosto de seu subordinado. Em seguida, ele segurou o rosto dele e o acariciou. – Mas não se preocupe, você ainda poderá me servir.

Kroll abriu um débil sorriso.

– E quanto aquele outro assunto, mestre?

– Estou impressionado em como os ratos estão agindo. Um resolve ficar corajoso do dia para noite. E o outro, tão leal no inicio, resolve abocanhar o meu prêmio. Hans, o que nós devemos fazer com os ratos quando eles nos aborrecem?

– Exterminamos, mestre.

– Exatamente. Devemos exterminar os ratos e nos refestelar com o prêmio. A religião está confortando muito a minha esposa. E eu gostaria saber como. Eu quero que você faça da seguinte maneira.

***

– Como alguém pode fazer isso com uma criança? – Clara perguntou a Hanna.

A jovem pegou uma camisa de cambraia da gaveta e começou a abrir os botões. Serviria perfeitamente como uma camisola para a menina.

– Nannau, Otto é uma alma negra. Nada que venha dele pode me surpreender mais. Ele e aquele cão de guarda dele. Eu me arrepio só de pensar. Meu consolo é saber que meu pai desconhecia a verdadeira face de meu marido. Ele nunca me daria para tal criatura se soubesse quem ele era.

A velha senhora recolheu as ataduras sujas de sangue e disse a menina.

– Agora fique quietinha que eu vou aplicar o remédio nesses vergões.

– Sim senhora. – a menina respondeu com voz baixa. – Vai doer, senhora?

Clara apertou os lábios para não chorar com o sofrimento da menina.

– Um pouco, criança. Um pouquinho só.

Mas na hora que ela encostou a atadura como o antisséptico, a menina não conseguiu evitar um pequeno grito.

Hanna sentou-se na cama e começou a acariciar os cabelos da menina.

– Como você se chama querida? – ela perguntou para distrair a menina.

– Joanne. – a menina respondeu com voz entrecortada.

– Joanne. É um bonito nome. Eu me chamo Hanna e esta é Clara. Quantos anos tem Joanne?

– Eu tenho dez anos, senhora. Mais aparento ter mais. Minha mãe sempre disse que eu sou alta para minha idade.

– E ela está certa. E onde seus pais estão, Joanne?

– Papai morreu na guerra contra os alemães. Depois disso, mamãe começou a esquecer-se de mim. Ficava chorando. Às vezes, ela parava de chorar e me arrumava e dizia que papai iria chegar logo. Mas, no último inverno, ela ficou doente e morreu.

Hanna e Clara ficaram surpresas pelo relato objetivo e desprovido de emoção da menina.

– E você tem ficado na rua desde então?

– Não. O padre do nosso bairro me levou para uma casa, mas eles não gostavam muito de crianças, então eu fugi há um mês.

– Sozinha, dez anos e já conhece o lado cruel das pessoas. – Hanna murmurou. – Nannau, você acha que padre Honoré aceitaria Joanne no orfanato.

– Eu não quero ficar em orfanato, senhora. Eles maltratam as crianças.

– Mas nesse lugar não. Eles são muito carinhosos. Eu sei, porque vou lá todos os dias. E as crianças amam as amas e o responsável, padre Honoré.

Joanne ficou olhando para Hanna pensativamente, como se ainda duvidasse das palavras da moça. Ela já havia presenciado tantas mentiras. A última era do soldado que lhe falava tão mansamente e lhe oferecera doces para se revelar alguém tão cruel. Joanne estremeceu ao lembrar da dor do chicote em seus ombros e costas.

Hanna pareceu adivinhar os pensamentos sombrios da menina e a abraçou.

– Hoje vamos dormir juntas com duas irmãs. Amanha levarei você para conhecer padre Honoré e as outras crianças. - ela fez a menina deitar-se de bruços e pôs a cabeça dela em seu colo, recostando-se nos travesseiros em seguida.

A menina fechou os olhos, e depois de alguns minutos mergulhou em um sono tranquilo como não tinha há muito tempo.

Clara contemplou aquele quadro tão singelo mas que carregava tanto sofrimento e depois saiu do quarto pela porta de comunicação, trancando-a em seguida. Com aqueles dois monstros na casa, todo cuidado era pouco.


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