Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 11
Onze




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Gerard subiu os degraus e entrou no prédio onde antes funcionava um luxuoso hotel e agora abrigava o governo do Reich na França. Os dois soldados postados como sentinelas bateram continência, mas Gerard não se deu ao trabalho de responder. Ele tinha que pensar como um oficial alemão, e para um oficial alemão, os soldados eram máquinas, autômatos... Ou peças de decoração.

O antigo salão da recepção estava repleto de funcionários civis e militares correndo de um lado para outro. A eficiência alemã se via em cada canto. Nisso eles eram como os ingleses, não pode deixar de pensar. Ingleses e alemães eram como um reflexo um do outro. Eficiência e burocracia do mais alto nível.

Ele caminhou até os elevadores e pediu ao funcionário:

– Décimo andar. – disse simplesmente.

O elevador deslocou-se lentamente até o andar onde ficava o alto escalão do governo militar alemão. Onde ficava sua sala inclusive como ajudante de ordens do Kommandant. Ele chegou até a sala do Kommandant e bateu na porta.

– Entre. – respondeu uma voz.

Gerard abriu a porta e entrou na sala. De frente para a porta, uma foto do Fuhrer o encarava com a expressão raivosa de sempre. Na parede lateral um mapa da França delimitava a parte ocupada pelos alemães e a parte do governo de Vichy. E numa mesa enorme de mogno, um homem estava sentado escrevendo.

Gerard caminhou até a mesa e batendo os calcanhares fez a saudação usual.

Hail Hitler!

– Hail Hitler! – respondeu seu superior pousando a caneta sobre os papéis. O Gen. Otto Von Gorthel levantou a cabeça. Seus olhos eram azuis. Frios como pedras de gelo. Os lábios finos sempre em um ríctus de desprezo e quando sorria apenas o canto dos lábios torcia-se. Marcas de uma vida de devassidão e vícios marcavam seu rosto. Gerard não conhecia a Senhora Von Gorthel, mas pelo que conhecia de seu marido, podia concluir a vida sofrível que ela levava.

– E então? Preparou tudo para o jantar desta noite, capitão? – o general reclinou-se na cadeira.

– Sim, herr general. Os gerentes do Moulin Rouge e do Restaurante já foram avisados. O cardápio do jantar já foi entregue ao chefe de cozinha. O que a França tem de melhor como o senhor determinou.

– Ótimo! – o homem sorriu e juntou as mãos num gesto de satisfação. – Disse ao gerente da casa noturna que eu quero as acompanhantes também. E sua melhor cantora.

– Sim, herr general. Como o senhor determinou. – Gerard respondeu fleumático.

– Irei apanhar minha esposa as 19:30. Espero que você esteja a postos no salão para me recepcionar exatamente às 20:00, capitão.

– Sim senhor.

– Quero muito conhecer esse rouxinol de Paris... Já me disseram que ela é lindíssima, além de talentosa.

Gerard sentiu o sangue gelar ao ouvir Von Gorthel falando de Lucille. Seus dedos crisparam-se para arrancar sua arma do coldre e dar um tiro na testa enorme do alemão.

– É o que eu ouvi falar também, senhor.

– E é claro que você também terá uma acompanhante, não é?

– É claro, senhor. – Gerard já estava se irritando com aquela conversa.

– Bem, a noite será agradável, capitão. Mas agora temos algo a tratar.

Gerard aguardou o outro começar as ordens do dia.

– O Reich determinou que teremos que fazer uma contagem de todos órfãos da França. Meninos e meninas de 10 a 15 anos.

– Eles disseram o motivo, senhor?

– Sim. Vamos criar campos de trabalho... Eles trabalharão para nós em troca de comida, cuidados, roupas. Tudo que eles precisarem.

– Mas senhor, nós não deveríamos prover isso para os órfãos?

– Sim, é o que o governo quer. Mas, eu não acho justo eles ganharem tudo de graça. Os meninos serão selecionados e treinados para a infantaria.

– Infantaria? Mas temos bons soldados, não temos senhor?

– Exatamente capitão! Bons soldados alemães. E por que eu sacrificaria bons soldados alemães, se posso usar a escória nas frentes de batalha? Faça um levantamento e comece a visitar os orfanatos de Paris. Pode ir capitão.

“Monstro! Animal!” Gerard pensou. “Aquele filho da mãe iria usar jovens franceses nas frentes de batalha para poupar os soldados nazistas.” Ele vira o memorando. Ele só dizia que deveria ser feito um senso dos órfãos franceses uma vez que muitos não possuíam documentos, seria impossível saber quantas almas o Reich teria dominado na França. Não falava nada sobre soldados ou mão de obra. Von Gorthel queria fazer isso por pura maldade. Por isso que ele fora o menino prodígio de Hitler. Os demônios reconheciam-se sobre a Terra.

Gerard sufocou o desejo de acabar com a raça de Von Gorthel ali mesmo. Ele receberia o castigo mais tarde. Gerard bateu os calcanhares e já ia saindo da sala quando o general o deteve.

– Capitão?

Gerard se voltou para ele.

– Senhor?

– Leve o sargento Hans Kroll com você. – o general voltara a escrever.

– O sargento Kroll senhor? Posso perguntar por quê? Ele não faz parte da minha equipe.

– É que o sargento Kroll tem... Bom gosto para escolhas. – ele respondeu com um sorriso que Gerard só poderia descrever como satânico.

Algumas notícias haviam chegado aos seus ouvidos desde que esse sargento chegara de Berlim. Dizia que ele era um grande torturador. Que manejava um chicote como ninguém.

E que Von Gorthel gostava de assistir sessões de tortura.

Gerard sentiu vontade de vomitar quando seus pensamentos se completaram.

Com estoicismo, ele curvou-se ao seu superior e respondeu.

– Entrarei em contato com ele, senhor.

E então saiu da sala.

***

– Eu não acredito que você está aqui! – Nanette abraçou-se ao irmão.

– Eu demorei mas vim, irmãzinha. Não pude ficar muito longe.

Nanette separou-se do irmão.

– Venha, tenho tanto para lhe contar... – e puxou o irmão pela mão, levando-o para o interior do prédio.

– Como você conseguiu esse milagre, Lucille? – padre Honoré perguntou.

– Na verdade, padre, o milagre caiu em cima de mim. – eles se sentaram em um banco. Lucille abaixou a voz. – Julian estava fugindo de uma patrulha alemã. O senhor estava certo. Ele se tornou um maquis.

Ela contou então o que havia acontecido na noite anterior.

– Santa mãe de Deus! Esse menino sabe com que ele se meteu?

– Padre, pelo que ele me contou, ele sabe sim onde se meteu. E está inflamado com as ideias do Gen. De Gaulle incutiu nas mentes francesas. Eles se consideram mártires e se um dia, se Deus quiser, os alemães forem derrotados eu estou com medo do que possa acontecer.

– Como assim Lucille?

– Ouvindo Julian falar sobre as operações dos partisans eu chego à conclusão que a barbárie vai continuar. Apenas mudarão as vítimas. Eles se voltarão contra os alemães remanescentes e possíveis colaboracionistas.

– Deus nos proteja!

Lucille levantou-se do banco.

– Padre, vou até a igreja rezar um pouco. Se Julian perguntar por mim diga aonde fui.

O padre a olhou atentamente.

– Ele está morando com você?

– Sim, padre. Ele está. Não podia deixar ele sair depois do toque de recolher. – respondeu Lucille rapidamente. Soou com uma possível justificativa.

Padre Honoré levantou-se e colocou a mão sobre o ombro da moça.

– Querida, eu não perguntei com a intenção de questionar suas atitudes. Você é adulta, independente. Não deve satisfações a ninguém, muito menos para mim.

Ela respirou fundo.

– Eu não sei o que aconteceu, padre. As coisas foram tão rápidas... E quando eu vi...

– Vocês estavam juntos, não é?

A jovem assentiu em silencio.

– Não seria diferente, querida. Esse menino sempre foi apaixonado por você. E você acalentou uma viuvez de dois anos. Não é justo para uma jovem como você ficar sozinha.

– Eu não posso pensar no futuro, padre. É tudo tão incerto agora. Eu não vou me prender ao Julian. E não vou acompanhá-lo se ele for embora.

– Nem deve. Essa vida que ele escolheu é muito incerta. Aqui você tem amigos, trabalho.

– Falando em trabalho, vamos ter uma dura prova hoje. O Moulin foi fechado para um jantar nazista.

– Será uma prova pra vocês. Mas Deus os abençoe. – o Padre fez o sinal da cruz abençoando Lucille.

Ela se reclinou beijando a mão do pároco. Depois seguiu por um corredor lateral que terminava na lateral da igreja. O templo estava quase vazio exceto por uma única figura de preto ajoelhada em um dos bancos.

Estranhamente Lucille se sentiu compelida a sentar-se perto da pequena criatura. Ela se persignou e ajoelhando começou a conversar com Deus. Apesar de tudo que já passara na vida, ela nunca deixara de conversar com Deus. Ela não o via como um ser onipresente e onisciente. Mas como um amigo a quem contava as alegrias e tristezas de todos os dias . E de vez em quando dava umas ralhadas.

Mas o silencio do prédio a fez ouvir os soluços abafados da figura envolta em negro. Ela levantou-se e foi até ela. Chegando perto viu que era uma criança ou alguém muito jovem.

– Olá. Posso ajudar? – perguntou sentando-se ao lado dela.

Os soluços diminuíram, mas o corpo da pessoa ainda sacudia. Ela endireitou-se no banco ao lado de Lucille e levantou o véu.

Lucille viu grandes olhos azuis marejados de lágrimas. O rosto quase juvenil estava molhado e os lábios róseos tremiam no esforço de conter o choro.

– Oh meu Deus! Madame... Está com algum problema? Posso ajudá-la?

Ela continuou olhando para Lucille com se não a entendesse. Depois ela franziu a testa e fazendo um esforço começou a falar hesitante.

– Você... está... falando... comigo?

Lucille mal pôde disfarçar a surpresa ao perceber o sotaque. Aquela pobre menina era alemã. Ela fechou os olhos momentaneamente para lembrar algumas palavras em alemão.

Ja. Ich fragte, ob ich Ihnen helfen kann[1]. – Lucille disse em voz baixa.

O rosto da mulher se iluminou. Ela enxugou o rosto com um sorriso.

Aber erwarten Sie nicht viel. Mein Deutsch ist sehr begrenzt.[2]Lucille consertou em voz baixa. E se aquela jovem fosse uma espiã nazista. Não era bom que eles soubessem que alguém pudesse entendê-los. – Vou falar em francês devagar para que você possa me entender.

A jovem fez que sim com a cabeça.

– Mas você não deveria estar falando comigo... – ela comentou em voz baixa também.

– E por quê? Só por que somos bilíngues? – Lucille respondeu sorrindo para aliviar a outra.

– Você não sabe quem eu sou?

– Sei que você é uma mulher como eu e que está com problemas.

Só a menção da palavra problemas, a moça tornou a chorar. Lucille segurou em suas mãos e então notou o pequeno frasco entre as mãos pequenas.

– O que é isso? – ela pegou o frasco nas mãos. A outra não a deteve.

No rótulo a palavra “gift” em vermelho sobre a figura de uma caveira e dois ossos. A figura universal para veneno.

– Meu Deus! Diga-me que você não estava pensando nisso?

A jovem não conseguia parar de chorar. Lucille colocou o frasco sobre outro banco e segurou as mãos da jovem. Entre soluços ela começou a falar.

– Eu vim pedir perdão a Deus por que não suporto mais a minha vida. Eu não pedi para me casar com ele. Fui forçada por meu pai. Não pude nem fugir... Quando tentei, meu pai me trouxe de volta e contou ao meu noivo. Nós nos casamos... E foi a primeira vez em que ele me bateu.

Lucille fez um som de horror.

– Ele parecia se satisfazer me batendo. Não no rosto, mas ele usava uma varinha em meu corpo. As roupas escondiam tudo.

– Mas ele é um monstro! Você parece tão frágil, madame...

Hanna. Hanna Von Gorthel. – a jovem olhou para Lucille com os olhos vermelhos de tanto chorar.

[1] Sim. Perguntei se eu posso ajudar você. (nota da autora)

[2] Mas não espere muito. Meu alemão é limitado. (nota da autora).


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