Sete coisas para se fazer nos últimos sete dias escrita por River Herondale


Capítulo 2
Sete chances de ser feliz


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem >.



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SANTA ROSALIA - MÉXICO

Entenda: eu não sei como cheguei aqui.

Foi tudo muito de repente. Todo o México – ou melhor, todo o mundo – estava em pânico com a notícia do fim do mundo que ocorrerá daqui sete dias.

Menos minha avó.

Abuela Guadalupe é uma religiosa fanática, e ela jura de pés juntos que seu Deus não deixará o mundo acabar. Que o mundo só acabará quando Ele quiser, e nós meros humanos não temos o poder de prever esse dia. Que Jesus Cristo voltará para a Terra quando ele quiser.

Eu estava apavorado. A ideia de que tudo que conheço, tudo que tenho seria simplesmente dissipado me fez perder a cabeça como a maioria. Era de noite quando a notícia foi dada, e na nossa rua de classe média baixa era possível ouvir o desespero dos vizinhos.

– O que vamos fazer, abuela?

– Fazer o quê? Não se pode acreditar em tudo o que te contam, Jaime. Relaxe e coma sua janta.

– Não... isso não pode ser brincadeira! Olhe os noticiários, só falam disso! Abuela, é daqui sete dias!

– E você vai fazer o quê? Vai fazer a tal lista de sete coisas que sugeriram? Você não tem mais idade para acreditar nessas fantasias.

Depois de tanto insistir, ela conseguiu me acalmar e colocar na minha cabeça que tudo isso era baboseira. Comemos nosso jantar e ela me mandou dormir. Foi o que eu fiz.

De madrugada acordei sufocado. Um cheiro forte de queimado e atingia meu nariz. Segui toda a fumaça e o cheiro forte que me levou para a rua. A casa da frente queimava intensamente.

Corri até o quarto de minha vó, que por sorte dormia calmamente. Não pensei duas vezes em ir até a casa que pegava fogo, ver se meus vizinhos estavam bem.

Não era só eu que estava em volta da casa. Meus outros vizinhos vinham correndo também, um deles com um pequeno extintor. Dentro da casa saiu o pai da família que ali vivia, Rogelio.

– O que aconteceu aqui, Ro? – perguntou a vizinha Alba, uma mulher de quarenta e poucos anos com seus quatro filhos ao seu lado.

– Minha família estava em desespero! Eu estou em desespero! O mundo vai acabar daqui sete dias, mas é muito tempo para esperar. Seria uma tortura esperar. Tudo acaba aqui, em nossa casa.

– Você colocou fogo na casa, Rogelio? – Santiago, um homem grande e forte perguntou perplexo.

Rogelio confirmou com a cabeça. E então gritou:

– O governo disse que tínhamos a liberdade de fazer o que bem quiser nos últimos sete dias. Isso significa caos, e não estou disposto a viver entre anarquia. É hoje que tudo acaba, e se vocês forem inteligentes o suficiente, entraram comigo na casa.

– Nem vem, Rogelio. Não vamos nos matar.

– Tudo bem então, a decisão é de vocês.

E Rogelio correu até a casa, o fogo o consumindo, os gritos de dor ficando para trás.

Aquilo tudo foi demais para mim. O impacto que o fogo queimava intensamente no escuro, a perplexidade de todos meus vizinhos, que estavam estáticos e assustados demais para qualquer coisa, e as palavras de Rogelio: “O governo disse que tínhamos a liberdade de fazer o que bem quiser nos últimos sete dias. Isso significa caos, e não estou disposto a viver entre anarquia.”.

Nesse momento minha consciência enlouqueceu. Estava acontecendo. Não poderia ficar aqui com minha vó descrente da realidade do fim do mundo, nem desperdiçar meus últimos dias em desespero como Rogelio decidiu fazer.

Então fiz a coisa que mais tive vontade de fazer em toda minha vida: viajar.

Entrei na minha casa correndo, coloquei todas as coisas necessárias em uma mochila e por fim um recado para minha vó. As chances de ela achar tudo aquilo ridículo eram grandes, mas não havia tempo para ser prudente. Quando vi que todos os vizinhos haviam saído da frente da casa em chamas, fiz uma loucura que nunca teria feito em outras circunstâncias. Eu roubei o carro de Rogelio.

Rogelio costumava deixar a chave dentro carro, pois de acordo com ele, ele sempre perdia a chave se tirasse do carro. A vizinhança era antiga e todos se conheciam e se respeitavam, eis aí a sua confiança.

O que ninguém esperava era que o mundo estivesse condenado.

Eu estava terrorizado demais para pensar. Tenho dezoito anos, mas ainda não havia tirado a carteira de motorista. Mas quem se importa não é mesmo? Eu pisava no acelerador sem piedade.

Pensei em viajar até Tijuana, mas a viagem duraria em média três dias. Não tinha tempo para isso. Mesmo assim, queria ir até Tijuana, e então passar pela fronteira e chegar em San Diego, nos Estados Unidos.

Desde pequeno este é meu sonho, conhecer os Estados Unidos. Meu pai é americano, minha vó me disse, mas quando descobriu que minha mãe estava grávida, sumiu. Ela teve que então voltar dos EUA para o México. Quando eu tinha dois anos ela sumiu e me deixou com minha vó. Nunca a perdoei por isso.

Mesmo assim preciso ir aos EUA. Não que eu tenha expectativas de encontrá-la. Boatos de que está casada com um velho no Mississipi. Minha vontade de conhecer os EUA é relacionada ao fato de que, se minha mãe teve a audácia de abandonar seu filho para voltar ao país, algo de mágico deve ter no lugar. É tudo que quero descobrir. Descobrir se a água é mais saborosa, o ar é mais puro ou as pessoas são mais graciosas. Algo de especial deve ter.

Foi um dia longo de viagem. Só parei o carro para ir ao banheiro e entrar em um mercado abandonado na beira da estrada. A sorte foi que todos os postos estavam vazios, assim eu podia encher o tanque do carro velho de Rogelio até a boca.

A rádio ainda funcionava, pelo menos. Mesmo que o mundo tivesse parado de produzir ou trabalhar, o noticiário não podia parar. Realmente não gostaria de ser um jornalista nesse momento; eles dedicam-se ao trabalho até nos seus últimos dias.

Não podia deixar de imaginar o que abuela estaria fazendo nesse momento. No noticiário havia boatos de que muitos religiosos estavam rezando sem parar nas igrejas, pedindo que todos que acreditavam no fim do mundo acordassem. Me pergunto se abuela teria tentado ligar para mim, mas eu não teria como saber, já que meu celular está sem bateria.

Nunca tive grandes sonhos ou planos. Era certo de que eu iria para o mosteiro, já que o sonho de minha vó era que eu virasse padre. Nunca contrariei. Ela cuidou de mim quando poderia muito bem ter me abandonado. Agora que não poderei ser padre, quais são meus sonhos?

Me senti um grande pecador. Eu já estava condenado em apenas cogitar a ideia de liberdade apenas porque não poderei me tornar padre. Deus deveria estar me testando, é claro.

Mas foi no fim do segundo dia de viagem que tudo mudou.

Na estrada em que eu passava não havia nenhum tipo de loja ou posto de gasolina. E então foi quando o pneu do carro furou.

Olhei em volta do pneu, mas o furo era muito grande para tentar qualquer coisa. Procurei no porta-malas para ver se tinha algum pneu reserva, mas não. Qual escolha eu tinha?

Me desesperei tanto. Chorei, e chorei até dormir. Dormi no banco de trás do carro, sonhei com Deus me rejeitando nas portas do céu, me chamando de condenado.

Acordei com o sol no meu rosto e minha barriga doía de fome. Olhei ao redor e vi que estava sozinho naquela estrada infinita. Seria assim que passaria meus últimos momentos vivo? No meio do nada e na solidão?

Comi o último pacote de salgadinho e o refrigerante que estava quente. Ficar parado não era uma opção, então decidi sair do carro com minha mochila e andar até alguma cidade ou algo do tipo.

Meus pés doíam, isso eu lembro. E meu coração parecia bater com pesar. A solidão mostrou-se pior do que qualquer outro sentimento que eu já havia sentido. Desde sempre fui magrelo e baixo, minha pele morena e meu cabelo muito preto que estava todo suado.

E foi então que ouvi um som. Depois de quatro horas andando no sol quente, sons produzidos por humanos.

Não me importei em correr. Não me importei em gastar todas minhas forças naquele momento. Estava desesperado por companhia e comida.

Era um acampamento. Deveria ter por volta de quarenta pessoas, e eles dividiam sua comida como um piquenique comunitário. Meus joelhos cederam, e eu caí na grama daquele lugar com tantas pessoas unidas e se ajudando. Parecia o paraíso. O paraíso que eu nunca alcançaria.

Acordei e era de noite, uma moça um pouco mais velha que eu passado um pano na minha testa. Pulei assustado, e foi então que lembrei onde estava. Era o refúgio ao ar livre daquelas pessoas. A moça usava uma pena no brinco, os cabelos longos e livres, uma saia comprida estampada de folhas. Parecia tão serena.

– Qual seu nome? – ela me perguntou.

– Jaime.

Ela sorriu. E então chamou alguém que deveria ser o chefe do refúgio.

– Prazer, me chamo Emiliano. Jaime, certo?

Confirmei com a cabeça.

– Venha Jaime, vamos te dar algo para comer que te explico o que é isso.

Segui Emiliano, que era um homem grande de uns cinquenta anos. Tinha um bigode parecido com de Pancho Villa e uma voz grave de tremer o chão.

– Já comeu frango feito na fogueira? Te revelo que é muito saboroso. Ele me disse enquanto oferecia um pedaço do frango em um prato. Aceitei e comecei a mastigar.

– Vocês não tinham casa? – perguntei enquanto mordia mais um pedaço.

– Ah sim, tínhamos. Mas na cidade que estávamos boa parte enlouqueceu de pânico. Rebeldes começaram a destruir tudo, quebrar janelas e queimar todos os alimentos em uma grande fogueira no centro da cidade. Juntamos algumas famílias e fugimos daquele inferno insano.

– E como chegaram até aqui?

– Precisávamos de uma distância segura da cidade, mas não queríamos ir tão longe. Não tínhamos tempo para isso. Aqui foi o lugar mais adequado para isso e já se tornou nosso lar. Nos desapegamos de tudo, nos alimentamos bem e estamos unidos e passamos amor e apoio um ao outro. Não precisamos de mais nada até tudo acabar.

Foi engraçado porque não tive como não compara-los com hippies. Naquele mesmo momento Emiliano me apresentou a todos, que me receberam com muito calor, como se nada de ruim viesse a acontecer.

Uma única pessoa não veio até mim. Um garoto da minha idade que estava sentado distante de todo mundo, um lápis e um caderno na mão. Nem se quer virou-se para me olhar.

Eles disseram para mim que tentavam não dormir muito para assim aproveitar cada segundo. Duas da manhã aos poucos todos já haviam ido dormir. Mas eu não estava com sono. O sol estava lindo, e havia mais estrelas do que eu jamais havia visto antes. Não queria sair do tronco que estava sentado.

Foi então que senti um movimento, e o garoto com o caderno se sentou ao meu lado.

– Desculpe se não me apresentei antes. Me chamo Salvador.

Olhei para Salvador e senti algo estranho, algo que sempre reprimi. Não deveria dizer isso, mas ele era bonito. Havia sensibilidade em seu olhar, uma poesia em seus traços. Era mais alto e não era magrelo como eu. Seus olhos eram cor de mel, seu cabelo castanho. Um sentimento fez com que meu coração palpitasse e meu estômago embrulhasse.

E lá estava eu novamente pecando.

E então ele mostrou o seu caderno para mim, e vi que era um desenho. Um desenho de mim. Era lindo, e ele era um artista nato. Até meus olhos, o brilho desesperado, isso ele conseguira captar perfeitamente.

– Você é muito talentoso, Salvador.

E então ele apontou para as estrelas.

– Bonito, né?

– Belíssimo. – respondi.

– Eu sabia todos os nomes dessas constelações. Eu costumava impressionar meu namorado com isso, mas agora esqueci tudo.

Meu coração pulou. Namorado? Minha vó me criou para achar isso estranho, abominável. Não estava acostumado a ouvir caras dizerem ter namorados.

Tentei parecer natural.

– Está preparado para o fim do mundo?

– E alguém está? Me desculpe, mas se tem alguém, esse alguém é louco.

Forcei uma risada, e então entreguei o desenho para ele.

– Eu adorei o desenho. Foi um prazer, Salvador, mas acho que já vou dormir.

Salvador fez que sim com a cabeça e fechou o caderno. Tinha movimentos delicados como as de um gato.

– Jaime, acha que dói?

– O quê? Morrer por um cometa?

– Não. Morrer sozinho.

Eu não sabia o que responder. Foi muito imprevisível.

– Você não está sozinho. Tem todas essas pessoas do refúgio.

– Eles não são ninguém que eu ame. E estar junto com tantas pessoas não diminui a solidão.

Dei um passo para trás. Santiago despertava sentimentos que não deveriam existir.

– Eu também estou sozinho, então não sei se posso te responder isso. – e então entrei na barraca e fechei o zíper para poder dormir.

Naquela noite sonhei que beijava Salvador. Não havia nada entre nós, só ele e eu. Nunca beijei antes, afinal, eu iria ser padre, não precisava disso. Mesmo assim, em sonho, a sensação parecia muito boa...

O que minha vó pensaria se soubesse desses meus pensamentos impuros? Eu me odiava tanto.

Todos nós comemos juntos pães tostados na fogueira. Marieta, uma mulher com um sorriso bondoso me disse que “se o pão está velho demais, é só tosta-lo que tudo melhora”. Não era mentira.

Não suportava olhar para Salvador. Olhar para ele era destrutivo e ao mesmo tempo tentador.

Emiliano se aproximou de mim depois do café da manhã:

– Jaime, se quiser tomar banho, daqui dez minutos de caminhada pelo bosque dali você chega em um lago. Posso pedir pra alguém te levar lá qualquer coisa.

Agradeci e pensei se aquilo não era algum tipo de aviso. Percebi que fazia três dias que não tomava banho e que minha roupa poderia apodrecer se eu continuasse daquele jeito. Comuniquei Emiliano e ele sorriu, disposto a me ajudar.

– Vou pedir para Salvador te levar até lá, tudo bem? – nesse momento eu já estava nervoso. – Sal, vem aqui!

Salvador que desenhava, colocou seu lápis atrás da orelha e concordou em me levar depois que Emiliano explicou a situação. Fomos juntos, caminhando lado a lado e um silêncio desconfortável entre nós.

– Como veio parar aqui? – Salvador me perguntou durante o caminho.

– Estava fugindo da minha avó e queria ver se chegava até San Diego a tempo.

– Tem parentes em San Diego?

– Não.

– Então por quê? – uma sobrancelha dele estava levantada.

– Era meu único sonho.

– O único? Não tinha sonhos de profissão ou algo do tipo?

– Abuela queria que eu virasse padre. Era só essa certeza que eu tinha.

E então Salvador começou a rir. Mas rir mesmo, até lágrimas fugiram de seus olhos.

– Agora posso morrer em paz. Você padre? Bizarro!

– Qual o problema? Não tenho jeito de padre?

– Nem um pouco. Olha, chegamos!

E lá estava o laguinho no meio do mato.

– E você vai ficar aí, me olhando tomar banho?

– Se isso te incomoda tanto eu saio.

Mesmo assim eu tomei banho ainda com a cueca. Não queria correr risco de alguém me ver. A água estava gelada, mas era bom me refrescar.

– Já tomou banho? – ouvi Salvador gritar.

– Já!

– Posso ir aí?

Olhei para mim. Era só enfiar as calças rapidamente.

– Pode!

Salvador me olhou e algo estranho subiu no meu rosto, um tipo de calor. Eu estava sem camisa, e ele era inegavelmente bonito.

– Vamos?

– Vamos. – respondi e então fui atrás dele.

Enquanto andávamos eu tive coragem de puxar assunto. Aquele silencio era pior que qualquer coisa.

– Por que veio junto com essas pessoas?

– Porque fui expulso de casa.

Expulso? Isso era chocante.

– Faz tempo isso?

– Uns dois meses quando meu pai soube que eu estava namorando um cara. Então estava morando com meu ex-namorado até que a gente terminou. A partir desse momento comecei a dormir em qualquer lugar que desse. Ganhava dinheiro para comer com meus desenhos. Foi então que a cidade virou o caos e vi esse grupo fugindo. Fui atrás deles e eles me recolheram.

– Por isso que sente só, então.

– Na verdade sempre me senti só. Não havia amor na minha casa e meu ex-namorado não parecia me amar do jeito que eu o amava. Eu nunca tive ninguém, e a ideia de que morrerei sem ter tido alguém é o que mais me faz ficar triste.

– Eu também nunca tive ninguém. Nunca pude já que seria padre.

– Mas você já gostou de alguma menina, não é?

Os olhos de Salvador despertavam em mim uma coragem que eu não sabia que existia.

– Menina não.

– E meninos? – ele falava com naturalidade.

– Já. - respondi, trêmulo com a verdade.

– Quantos?

– Uns dois. Três com você.

E então aconteceu. Estávamos nos beijando e era delicado, mas ao mesmo tempo desesperado. Era como se o tempo fosse curto demais para fazermos algum tipo de jogo da conquista. Só queríamos suprir toda a solidão dentro de nós, preenche-las com amor.

Afastei do beijo bruscamente quando vi o que estava acontecendo e então saí o mais rápido que pude de perto dele.

– Ei, qual o problema? – ele me seguiu.

Eu já estava chorando nesse momento, lágrimas insistentes escorriam pelo meu rosto.

– O problema é que eu vou pro inferno. Achei que estava salvo, mas isso tudo foi mais forte.

Ele agarrou meus ombros e me abraçou. Foi quando ele me disse:

– O inferno está dentro de quem se condena. O inferno é aqui.

E quem diria que minha salvação viria antes do esperado, e viria de alguém chamado Salvador.

Tínhamos apenas mais dois dias de vida. Usamos todo nosso tempo restante para nos conhecer, nos amar e principalmente afastar toda a solidão e melancolia que convivemos em toda nossa vida. Eu sempre achei que era condenado. Só não sabia que era condenado a amar.

Faltava um dia. Todo o acampamento estava mais quieto que antes, as pessoas mais solidárias e introspectivas. O noticiário dissera que o mundo acabaria às onze da noite no nosso fuso horário, e Emiliano decidiu que precisávamos fazer uma festa. A última festa.

– Uma festa para agradecer ao mundo que nos abrigou durante a vida. – ele falou.

Todos ajudaram e enfeitaram com as flores do bosque, toda a comida reservada unida para criar uma espécie de ceia. A festa começaria às oito.

Era sete horas e eu estava triste.

– Qual o problema, Jai? – Salvador me perguntou. Eu estava sentado atrás da Kombi de uma das famílias dali, uma flor despedaçada na minha mão.

– É hoje. Estou preocupado com minha vó.

– Você não me disse que ela não acreditava no fim do mundo?

– Sim, e eu gostaria que ela estivesse certa. Gostaria de ter mais tempo com você.

Salvador me abraçou, e as lágrimas que sempre escondi do mundo fugiam de dentro de mim.

– Você poderia ligar para ela.

– Como?

Salvador me revelou que uma garota do refúgio guardava seu celular desligado para economizar bateria. “Caso eu precise usar em algum momento importante” ela disse. Então ela emprestou seu celular para mim.

Minha mão tremia enquanto eu discava o número de casa.

– Alô?

– Abuela! – minha mão foi diretamente para meu rosto. Era maravilhoso ouvir a voz dela.

– Jaime? Onde você está, mi hijo?

– Estou bem. Estou entre pessoas que são boas para mim.

– Vai voltar para casa quando, Jaime?

– Abuela, não vou voltar. Hoje é o último dia e eu só queria dizer que a senhora é muito importante para mim, e que me perdoe de todos meus erros.

Um silêncio desconfortável ficou no ar. Por fim ela disse:

– Se o mundo acabar hoje, saiba que o meu já tinha acabado a muito tempo, quando sua mãe fugiu para os Estados Unidos. O que fez meu mundo renascer foi você, mi hijo. Deus te proteja e que seu mundo renasça também.

E ia falar alguma coisa, mas o celular acabou a bateria antes disso.

E eu nem pude me despedir direito.

Na hora da ceia, Rafael, filho de quinze anos de Emiliano tocou uma música muito animada em seu violão. Tinha uma voz muito afinada e era uma pena pensar que nunca poderia ser o cantor que poderia ser. Antes que pudéssemos comer, Emiliano pediu silêncio.

– Antes de comermos, quero que escrevam em um papel tudo o que vocês querem deixar para trás no fim do mundo e joguem na fogueira. E quero que digam em voz alta o que fez valer a pena viver.

Todos pegaram pedaços de papel e escrevemos. Na hora de jogar na fogueira, Emiliano foi o primeiro.

– Que todo o mal queime junto com nós hoje. – ele disse enquanto despejava vários papeizinhos recortados. – E que vá junto com nossa alma todo amor, felicidade e boas lembranças. Viver valeu a pena porque conheci o amor de minha vida, tive meus filhos Samara, María e Rafael. Viver valeu a pena porque tive sentimentos incríveis e o mundo esconde vários segredos. Fico feliz em ter desvendado um, e dizem que é o mais difícil. Fico feliz em ter encontrado o amor.

E depois foi a esposa de Emiliano, e uma garota de dez anos, e María, e a mulher simpática de sorriso bonito. Foi quando me chamaram.

– Jaime, sua vez.

Joguei todos os papeizinhos na fogueira, deixando para trás o medo, a intolerância, a solidão, a ignorância e a maldade.

– Viver valeu a pena porque – eu estava nervoso, e olhava para Santiago. – Eu amei. Sei que todos disseram isso, mas eu amei tarde demais. Descobri o amor quando o mundo estava acabando, mas eu amei. Os poucos dias que passei ao lado dele fez valer a pena todo o medo que senti desde o dia que nasci. Não sei se era pra ser assim. Na verdade acho isso tudo muito injusto. Mas poderia ter sido pior; eu poderia ter morrido sem amor. E eu agradeço ao fim do mundo pelo menos por isso.

E foi quando Salvador meu beijou, ali mesmo na frente de todo mundo. Não sentimos vergonha. O mundo iria acabar, cada minuto era tão precioso, e eu queria passar os últimos momentos feliz e ao lado dele.

– Falta dez minutos para o mundo acabar. – Salvador me informou. Já havíamos comido, e agora estávamos deitados juntos na grama, olhando o céu.

– Será que o cometa é bonito de perto?

– Não sei se será possível nós vermos ele. Ele pode cair em qualquer lugar. Mesmo assim não daria tempo, já estaríamos mortos.

Virei para a direção dele e contei o que guardava no coração.

– Eu não cheguei em San Diego. Era tudo que eu queria ter feito. Mesmo assim sou mais feliz.

– Você tinha feito aquela tal lista de sete coisas para fazer nos últimos sete dias?

– Na verdade não. Mesmo assim o mundo me surpreendeu.

– Me diga um.

– Eu criei coragem e saí de perto da minha avó e dos fantasmas que me perturbavam. – disse depois de pensar um pouco.

– Agora diga uma segunda coisa.

– Eu dirigi. Tudo que eu sabia eu aprendi na caminhonete velha que meu avô tinha antes de morrer e eu pegava escondido.

– Uma terceira?

– Eu me refugiei com um monte de estranhos. – disse sorrindo.

– Agora uma quarta.

– Bem... Eu nadei em um lago.

– Uma quinta.

– Eu não virei padre. – fiz uma careta, e Salvador abriu um sorriso.

– Uma sexta.

– Eu estou presenciando o fim do mundo.

– Preciso de uma sétima e última agora.

Olhei nos olhos dele.

– Eu descobri que não sou condenado, e que Salvador me salvou. E eu amo ele.

Nos beijamos, e um calor cresceu. O calor não era só interno, mas externo. E ia aumentando, aumentando, aumentando. O cometa se aproximava e destruía tudo com seu fogo, do mesmo jeito que nosso amor.


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Notas finais do capítulo

Antes de mais nada, gostaria de expressar que não tenho nada contra religião alguma ou coisa do tipo. Mas obviamente precisava colocar alguma representação religiosa na história, já que tratamos de fim de mundo, e como pretendia falar sobre o México, e lá é um país bastante religioso, serviu certinho. Respeito muito a fé de todos, aliás, tenho a minha também ;)
Reviews? Eu acho estranho falar "rraime" hahaha