Missa de Domingo escrita por V M Gonsalez


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem ^^ Ajudem-me comentando e compartilhando com os amiguinhos =w=



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Era uma missa de domingo.

Pete estava sentado no banco de madeira da velha igreja da pequena cidade em que morava. A igreja estava lotada, mas ninguém se sentava ao seu lado. O padre, um homem no auge de seus quarenta anos, recitava as palavras de seu livro sagrado com entusiasmo, um entusiasmo que desagradava Pete.

O velho homem olhou em volta. Na ponta do banco em que sentava, duas mulheres idosas pareciam tentar o máximo de distância dele. “Velhas fofoqueiras” pensou com repugnância, e se virou para o casal à sua frente. Eram os Jackson. Eram o jovem casal da cidade, com um filho pequeno, que se remexia inquieto, entediado no banco de madeira. Pete ouvira falar que eles foram obrigados a se casar por causa do filho que estava para nascer “agora aguentem, pequenos pecadores. Não haviam de ter feito sexo antes do casamento, agora aguentem” sorriu internamente ao ver que agora o menino falava alto e esperneava.

Pete olhou para o padre, que continuava com seu discurso. Ele andava animado pelo pequeno palco, tentando olhar e cativar seus fiéis. Aquilo fez o velho homem se lembrar de sua juventude... Ah, e que época, não? Ele bebera até cair, roubara pequenas lojas ao longo da estrada, estivera com mais garotas do que pudera contar, e tantas outras coisas... Mas não se preocupava, pois ele ia à missa todos os domingos.

O padre, porém, era uma história diferente, pensava Pete. Ele alegava ser um homem de Deus, mas o astuto velho ficara sabendo, por boas ou más línguas, que o santíssimo padre já estivera na cama de várias de suas fiéis, e aquele sorriso galante destinado a alguém na platéia era prova mais do que suficiente para o brilhante Pete, ah sim.

O velho Pete já não se sentia bem em ir à missa aos domingos. Ele, um impecável devoto, vestia-se como um bom cidadão deveria se vestir. Penteara os grisalhos e cada vez mais ralos cabelos de lado, bem arrumados, e colocara-os sob um chapéu de camurça preta, usava um terno preto e uma camisa brilhante de tão limpa, além de, claro, brilhantes e lustrosos sapatos pretos. Os outros, aqueles malditos pecadores, vestiam-se de forma desleixada, como se aquele fosse apenas um passeio em família, e não uma sagrada e tradicional cerimônia como deveria ser. Até mesmo o padre usava aqueles asquerosos tênis de corrida sob suas santas vestes. Aquilo enojava Pete todos os domingos, afinal, ele ia a missa todos os domingos.

“Essa geração está condenada” pensou o velho “todos os valores estão invertidos, todos fazem o que bem entendem, já não existe mais ordem. Mas ainda existe eu, e rezo a Deus para que existam mais cidadãos como eu, bons e velhos cidadãos de bem, que prezam pelos bons e velhos costumes e hábitos” cuspiu mentalmente sobre um casal de adolescentes que tinha a audácia de assistir à missa de mãos dadas.

Quando o padre finalmente deu a missa por encerrada, Pete se levantou com satisfação e se dirigiu à saída. Aquele era sempre um momento de tensão para nosso herói, pois aqueles pecadores tinham o maldito hábito de conversarem entre si, sobre suas insignificantes vidas dentro da casa do Senhor. “Apenas para atrapalhar a minha vida” sabia secretamente o astuto Pete. Ele empurrou o filho dos Jacksons que se intrometeu na sua frente e avançou para a porta, grunhindo e resmungando para que aqueles infiéis profanos dessem passagem para alguém como ele.

Quando finalmente se viu livre, sob o imenso céu cinzento que antecipa uma fria e triste chuva, Pete abriu uma grande expressão de desgosto. A pequena cidade em que vivia já não era mais tão pequena assim. A cidade crescia com a chegada de fábricas e novas lojas vindas das cidades grandes, e junto com elas vinham novos moradores, de todos os tipos, e Pete detestava todos. Havia aqueles que vinham das cidades para trabalhar nas filiais das empresas, esses eram arrogantes, havia também moradores de cidades próximas que aproveitavam a oportunidade para “mudar de vida”, aproveitadores malditos, e claro, imigrantes, ah, esses eram os piores para Pete. Ele achava uma grande petulância aqueles malditos bastardinhos saírem de suas casas com o único e final propósito de irritá-lo. Não conseguia ver mais nenhum motivo para alguém deixar sua terra natal para vir morar em sua antes tranquila cidade.

O velho simplesmente não entendia o porquê de tantas mudanças. “Por que as coisas não podem continuar como sempre foram?” pensava incrédulo. Afinal, sempre foram boas para ele daquela forma, ele sempre tivera um bom emprego, uma boa casa e principalmente sossego. Mas agora seu precioso sossego estava sendo incomodado por essa onda de mudanças que chegava a uma velocidade muito maior ao que ele considerava . Mas ele sabia que a justiça sagrada chegaria para todos aqueles malditos pecadores e ele seria salvo e poderia rir da desgraça deles no céu, afinal,...

...ele ia à missa todos os domingos.

Pete começou a caminhar. Seguiu pela direita, em direção à um grande parque que ficava ao lado da igreja. Ele não gostava daquele lugar, sempre cheio de pessoas que tinham o trabalho de sair de casa apenas para atrapalhar sua caminhada para casa. “Por que não estavam na missa, hein? Pecadores... Ou por que não vão trabalhar, ao invés de ficarem perdendo tempo aqui, vagabundos” pensava nosso herói com desgosto, vendo aquele amontoado de idiotas infestando o parque. Passou por três garotos drogados (na opinião dele ao menos, embora não conhecesse os garotos) que atravessavam a rua correndo “Forasteiros malditos, por que não ficam nas suas terras?” pensou cansado, julgando que aqueles garotos eram filhos de alguns dos novos moradores de sua adorada cidade.

Então Pete ouviu um som. Na verdade algo já lhe incomodava desde mais ou menos metade da missa, mas só agora ele percebera que se tratava de um som. Era algo estranho a seus ouvidos, não como essa maldita e horrorosa música que os jovens ouviam, que era completamente diferente da boa música de seu tempo, mas era algo que soava estranha a seus ouvidos, como algo que nunca ouvira antes, como algo que não podia ouvir antes, como...

...algo que não é deste mundo.

É claro, nosso herói não suspeitou no principio que se tratava de algo sobrenatural. Essa coisa de sobrenatural era uma besteira inventada pelos infiéis que não acreditavam na pura salvação de ir à missa aos domingos, e Pete tinha plena convicção em sua santa missa. No entanto, ficou curioso com o estranho som e começou a prestar mais atenção nele a medida que andava pelo parque.

Logo ele percebeu que se tratava de uma música, algo semelhante a uma música clássica, embora os instrumentos soassem diferentes do comum. Em sua mente uma fagulha do que um dia alguém poderia chamar de alegria o fez pensar que ainda havia bons cidadãos nesse mundo, disposto a mostrar àqueles malditos jovens o que era música de verdade, embora ele mesmo nunca tenha ido a um concerto por considerá-los chatos.

Em algum lugar a frente do velho homem existia um casebre de madeira pintado de branco desbotado, um daqueles lugares clássicos de comédias românticas, onde o casal principal dança uma música romântica longe de tudo e de todos, sim, aquele mesmo que fica nos parques, destinado a músicos e a reuniões familiares. Em uma dessas construções uma estranha banda tocava, eles eram três ao todo, mas todos tocavam violoncelos, ao que parecia.

Pete se aproximou e admirou a banda. Quanto mais perto se aproximava, mais alto ficava o som e, quando chegou a uma distância de que podia ver perfeitamente os músicos, começou a achar que o som estava excessivamente alto. Alguns segundos depois percebeu assustado que o som se tornava cada vez mais alto, mesmo ele estando parado. Chegou em um ponto que seus ouvidos doíam e Pete acreditava que aquele som era alto demais para que violoncelos comuns pudessem produzir. Estranhamente, ao seu redor, ninguém parecia se importar.

...mas ele ia à missa todos os domingos.

Colocando as mãos nos ouvidos, ele deu uma encarada nos músicos, a fim de guardar seus rostos para maldizê-los assim que descobrisse seus nomes, mas, estupefato, notou que os três músicos na verdade eram velhos conhecidos seus.

Eram sua mulher, seu irmão e seu melhor amigo.

Em outras circunstâncias aquilo teria feito Pete ter algo semelhante a um inicio de alegria, mas aquela era uma situação inusitada. Não sabia onde a esposa e o irmão haviam aprendido a tocar violoncelo, embora suspeitasse que o amigo pudesse ter tido uma ou duas aulas na juventude. Ah, e havia mais um problema...

...eles já estavam mortos há alguns anos.

Pete olhou para eles atônito. Estavam todos vestidos de preto, com roupas de gala, como era comum a uma banda clássica. Seus instrumentos eram de madeira muito lustrosa, embora começassem a entoar um som metálico nada natural para um violoncelo. Com seus velhos, mas bons, olhos, Pete tentou ver os rostos para ter certeza de que eram eles. E eram, embora houvesse algo muito errado os olhos. Estavam meio embaçados, meio turvos, meio...

...meio mortos.

Agora o som se tornava insuportavelmente alto, ecoava por toda a volta do velho homem e batia em seu peito como um ferreiro bate em uma bigorna. O belo e limpo som dos violoncelos se transformara em algo irrealmente alterado, metálico, estático, sujo, terrível, o tipo de som que nem mesmo computadores são capazes de processar. Pete desacreditava que seu cérebro fosse capaz de processar esse som.

Pete pensou nas três figuras a sua frente. Sua esposa. Morrera alguns anos atrás (3? 5? Ele já não lembrava mais, já não se importava mais) de um ataque cardíaco. Ela tentara se alimentar melhor nos últimos anos de sua vida, mas, bah, aqueles alimentos orgânicos e sem açúcar eram frescura demais para nosso herói, além do mais, ele não acreditava que aquela frescura toda pudesse salvar aquela pecadora da justiça “teve o que mereceu” Pete lembrou-se de ter pensado em seu funeral “nunca quis ir a missa aos domingos comigo, veja só o que aconteceu”. Pete sabia que sua morte seria tranquila e indolor, afinal...

...ele ia à missa todos os domingos.

Seu irmão. Ah, aquele velho e bobo idiota pecador. Ele sentia mais falta da mulher do irmão do que o próprio. Lembrava-se de ter dormido com ela uma ou duas vezes (ao menos, que se lembrava) e, céus, como havia sido bom. Aquela maldita vagabunda deveria estar ardendo no inferno naquele momento, mas em vida havia sido uma dádiva. Pete quase sorriu ao se lembrar “uma pena que era uma pecadora, se ao menos fosse à missa como eu...”. Quanto ao irmão, sentia algo quase próximo a um remorso por tê-lo enganado e pego grande parte da herança deixada pelos pais. Quase.

Por fim olhou para seu velho amigo de infância. Fora dele que conseguira o primeiro baseado. Ah, Pete imaginava que deveria haver uma seção no inferno dedicada apenas para aquele infeliz. Quantas coisas não haviam feito? Assim como ele, seu amigo ia a missa aos domingos, mas não com o mesmo fervor que ele, Pete pensava, não com o mesmo ardor, com a mesma paixão,...

...ele não era ele, no fim das contas.

Enquanto olhava o rosto do velho amigo, algo estranho começou a acontecer. Ao seu redor, o mundo pareceu ficar cinzento, não apenas isso, disforme, sem vida. A risada das crianças, já a muito inaudível devido ao som ensurdecedor da música, se perdia no ar, parecendo uma fotografia em baixa resolução, tudo começou a tremer, menos o casebre e os músicos. Deles uma aura negra, sinistra e hipnotizante começava a engolir o mundo ao seu redor. Assustado, Pete viu que os olhos de seus conhecidos tornaram-se negros, completamente negros. E a medida que moviam seus braços pálidos sobre os violoncelos, agora cinzentos como um rato, lágrimas de escuridão corriam de seus olhos, arrastando-se sobre seus rostos, e caindo pesadas sobre o chão. Eram densas como sangue, feitas puramente de escuridão e maldade. As órbitas vazias pareciam brilhar naquele mundo monocromático, um brilho escuro inimaginável.

...mas ele ia à missa todos os domingos.

Pete tentou se mover, mas seu velho corpo não obedeceu. Ele estava assustado, apavorado, seu coração batia em um ritmo tão acelerado que ele imaginou que suas veias logo estourariam, juntamente com o restante de seu corpo, que agora tremia violentamente. Sentiu um gosto amargo de sangue em sua boca, o gosto começou a preencher cada milímetro de sua boca até que começou a forçá-la a abrir, espirrando o líquido negro para todos os lados. De seus ouvidos, o líquido quente escorria lenta e dolorosamente, abrindo um caminho tortuoso por sua pele, queimando-a.

O som agora se tornava algo que mentes humanas não são capazes de compreender. A medida que o ambiente se transformava de cinza para preto em branco, em uma confusão estática, o som se tornava um gutural chiado, que parecia abrir e fechar uma enorme mandíbula sinistra com suas ondas. Pete notara que a boca de seus conhecidos tornara-se um buraco negro, sugando o restante de vida do mundo. Seus rostos agora eram irreconhecíveis, massas brancas e pretas disformes, remexendo-se como uma TV fora de sintonia. À mente de Pete vinha apenas um pensamento “Esses pecadores merecem o Inferno! Esses pecadores merecem o Inferno!”

As ondas sonoras começaram a se desenhar em meio ao mundo estático, formando uma boca sinistra, a música agora formava palavras confusas, até que Pete pode ouvir, não claramente, mas pode ter certeza da mensagem “Bem-vindo ao Inferno!”

Ele sentiu o chão contra seu rosto e nada mais.


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Notas finais do capítulo

Vou falar um pouco sobre o texto e seu significado. Caso queira tirar suas próprias conclusões, comente sobre elas e me diga o que achou ^^Bem, o primeiro ponto a colocar é que eu não sou nem um pouco religioso, apenas gosto dessa temática CéuXInferno, AnjosXDemônios, é algo que me desperta muito o interesse. Como já disse antes, o texto é puramente irônico, sendo que eu não mostrei minhas opiniões ali, apenas tentei passar o que eu imagino que seja a visão de Pete das coisas. Pete, por sua vez, é uma caricatura de um individuo conservador e preso no passado, que não aceita que coisas novas podem ser boas, apesar de diferentes (como se trata de uma caricatura, Pete é obviamente exagerado). O principal enfoque desse texto é uma crítica à hipocrisia. Utilizei-me de uma caricatura conservadora apenas como exemplo, pois eu estava particularmente com raiva deste "grupo" quando idealizei o texto, porém, a crítica vale para toda forma de hipocrisia. Em momento algum quis ridicularizar a crença de ninguém, nem dizer que a "missa aos domingos" não é algo importante para quem acredita, tomei-os apenas de exemplos para meu texto.Espero que tenham gostado e até a próxima ^^