Estrelas escrita por Gordon


Capítulo 1
Capítulo Único




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A vida não dá sinais de que reviravoltas estão chegando e, muito menos, de que a calmaria apenas acabou de começar.

Acordou assustado com a ventania que zumbia pela fresta da janela entreaberta e, procurando pelo celular, acabou derrubando-o. Para seu desespero ainda era quatro e quinze da madrugada. Poderia ter voltado a dormir, entretanto, sempre achou a madrugada inspiradora. Levantou, preparou um café forte e, sob uma meia luz, ligou seu computador. Era hora de escrever.

Antes de começar, abriu seu reprodutor de música e escolheu sua playlist favorita: Jazz Piano. Havia pouco tempo que escrever fazia parte da sua vida. Mas, de forma natural, teve sempre uma boa história para contar. Entretanto, naquele dia, as coisas pareciam ser diferentes. Releu as últimas páginas para retomar o fio da meada. Tentou imaginar os diálogos do casal apaixonado que estava criando em sua mente, porém o bloqueio mental estava lá. Olhando o eterno piscar do cursor do editor de texto na tela em branco, pensou em muitas coisas.

Escrever sempre lhe deu liberdade, na sua mente poderia sempre criar o que queria, da forma que melhor lhe parecia. Isso lhe causava uma alegria imensa. Contudo, dessa vez sentiu-se aprisionado, acuado e, por um momento, o que mais desejava era sair correndo e encontrar algo que lhe ajudasse a sair dessa situação. Achando que isso era apenas fome, procurou algo para comer na geladeira. Apenas um pedaço de uma pizza que possivelmente era de uns três dias estava disponível. Já era quase cinco e meia da manhã, alguma cafeteria próxima estaria aberta.

Após alguns quarteirões e situações corriqueiras de uma metrópole, encontrou uma que acabara de abrir e foi logo entrando. Por mais cedo que ele tenha chegado, não era o primeiro cliente. Sentada junto ao balcão, uma jovem, provavelmente da sua mesma idade — com seus vinte e cinco ou vinte e seis anos —, esperava pelo seu pedido.

Por uns segundos, pensou em dizer alguma coisa, mas achou melhor não. Afinal de contas, quem quer conversar em pleno sábado às quinze pras seis da manhã? Levou o tempo necessário que a sua indecisão precisou para pedir um pingado e dois croissants. Enquanto não os recebia, voltou sua atenção para a jovem. Não parecia estar notando o que acontecia à sua volta, seus pensamentos pareciam passar como um turbilhão sobre seus olhos tempestuosos e castanhos. Seu cabelo moreno e cacheado chegava-lhe aos ombros, o que aumentava seu ar de simplicidade. Por fim, reconsiderando, decidiu aproximar-se.

— Sabia que todos nós somos apenas poeira das estrelas, morando num pálido ponto azul dentre bilhões de galáxias, e que não existe motivo nenhum para estarmos aqui? Sempre achei que essa fosse a razão pela qual nós nos sentimos sempre tão sozinhos — começar uma conversa aleatória com um assunto mais aleatório sempre pareceu funcionar.

A moça dos olhos tempestuosos assustou-se num primeiro momento, mas pareceu ficar interessada por esse assunto maluco de poeira estelar e solidão.

— Para mim, solidão não tem nada a ver com estar sozinho no Universo, isso parte muito mais de nós do que dos estímulos externos. Você nunca se sentiu sozinho em uma festa com uma multidão de pessoas? Só se sente solitário quem quer — respondeu, encarando seu interlocutor desconhecido.

— Uou, não estava esperando uma resposta assim, achava que você iria me expulsar depois dessa abordagem super normal — deu um sorriso de canto.

— Meu caro, você veio falar com a especialista em solidão — mais sorrisos de canto — Mas me parece que eu não sou a única, né? Pleno sábado de manhã, e você pensando em estrelas e solidão... Brigou com sua namorada, é?

— Por um momento achei que eu era quem estava abordando a garota solitária, quando foi que o jogo virou?

— Vocês, homens, sempre acham que estão no controle de tudo, mas não se esqueça de que eu poderia muito bem ter cortado você logo que chegou aqui. Realmente pensei nisso quando vi se aproximar. Sorte sua que eu também conheço essa história de pálido ponto azul, Carl Sagan é leitura obrigatória para a filha de um casal de astrofísicos. Enfim, estou esperando na resposta...

Ele poderia muito bem ter brigado com a namorada, se tivesse uma. Na verdade ele teve, até seis meses atrás. Nosso jovem da história sempre achou que nunca seria feliz enquanto não encontrasse a The One, a garota dos seus sonhos. Provavelmente influenciado por músicas tristes e comédias românticas. O que importa é que em sua mente ele a tinha encontrado. Não posso dizer que eles não tenham passado ótimo tempo juntos, e que foram felizes nesse intervalo, mas a projeção de amor dele não era a mesma que ela tinha. Relacionamentos não eram a praia dela. Talvez por medo ela decidiu terminar, sem muitas explicações. Após isso, ele sempre achou que tinha amado por dois, o que não era necessariamente verdade. Apenas se amaram de formas diferentes. O que não implica que não era verdadeiro.

Nos seis meses seguintes, terminou a faculdade, perdeu o emprego, começou a escrever histórias e teve que mudar de apartamento. Tudo muito rápido, assim como a vida parecia estar passando para ele. O que me lembra de que eu tenho um diálogo para terminar de contar.

— Bom, não briguei com minha namorada, porque na verdade eu não tenho. Eu tive um tempo atrás, e isso deve explicar muita coisa.

— Uma pena, você ainda está chateado com o pé na bunda que levou — ela percebeu que isso poderia ter soado um pouco agressivo — Desculpa, mas sinceridade é melhor do que ficar medindo palavras, não tenho paciência pra isso. O que eu acho que é exatamente o que eu estou fazendo agora. Irônica a vida, não é? — fez uma pausa. —Afinal, o que aconteceu para ter acabado?

— Exatamente isso que aconteceu, a vida. Tem algo de muito errado com ela, não acha? Duas pessoas que se amam deveriam ficar juntas, não é? Eu sempre pensei assim — seu pedido finalmente havia chegado, mas nem tocou nele, percebeu que o seu problema afinal, não era apenas fome.

— Não, a vida não é binária. Sim ou não. Zero ou um. Ficar junto ou não ficar. As nuanças dela são que nos mantêm vivos, monotonia nunca faz bem para ninguém. Vocês poderiam ter ficado juntos e no fim perceberiam que não ia dar certo. Terminar agora foi a melhor coisa para manter, o que foi bom. Ou não, poderiam ter passado a vida toda feliz até ficarem velhinhos e, ao olharem pra trás, veriam tudo o que construíram juntos. Você nunca vai saber, ninguém nunca sabe. Talvez quando percebermos isso, poderíamos parar de nos preocupar e planejar a vida e finalmente viver — terminando a sua fala, abriu sua bolsa e retirou um bloco de notas e uma caneta e pôs sobre a mesa e começou a escrever alguma coisa.

— Ora, não é que a filha do casal de astrofísicos é formada em Letras? — notou pela capa do bloco de notas “Formandos em Letras” — Parece que fazer você ler Sagan não foi a melhor sacada dos seus pais.

A moça deu uma boa risada e respondeu:

— Estranho mesmo é um engenheiro que pensa na vida, universo e tudo o mais, né? — usando um tom sarcástico, mas nada intimidador.

— Por acaso está escrito na minha testa que sou engenheiro agora? Como descobriu? — olhou para ela, com curiosidade.

— Apenas sei, não é muito difícil perceber. E afinal, você é bastante previsível. Não que eu ache ruim.

— Não são apenas seus olhos que têm esse ar misterioso, você é um mistério completo. Tanto é, que eu ainda nem sei o seu nome. O meu nome é... — ia dizer quando foi interrompido bruscamente por ela.

— Sem nomes por enquanto, mistérios são legais até apenas serem descobertos, e veremos se você é bom com isso.

— Você está ativando meu espírito competitivo, tem certeza de que é isso o que quer? — respondeu, sorrindo.

— Você é lerdinho assim sempre, ou só aos sábados de manhã? — sorriu e retirou uma folha do seu bloco de notas. — Agora eu tenho que ir, prometi aos meus pais que chegaria cedo, até porque nunca fico até o fim das festas. Ainda mais agora que cafeterias são bem mais interessantes. — Passou a folha para a mão dele. — Foi um prazer conhece-lo, Senhor Romântico.

— O prazer foi meu, Senhorita Misteriosa.

O jovem passou um tempo sentado ainda, enquanto a cafeteria começava a ficar mais movimentada até seus pensamentos se perderem. Enfim, pegou o papel e leu.

Quando estamos perdidos
E não sabemos onde nos encontrarmos
Essa é a hora de deixar o Universo agir
Por mais que estejamos sozinhos
Em algum dia, de algum mês e de algum ano
O encontro acontecerá
Seja na escola, numa festa ou num bar
Pode até ser numa cafeteria de madrugada
Afinal de poeira estelar que somos
Quem sabe não sejamos a mesma estrela
Que há bilhões de anos deixou de existir
E agora apenas quer voltar a ser uma coisa só
Isso não é coincidência, nem sorte
É apenas a vida acontecendo.

Logo embaixo estava escrito um comentário: “Coincidência seria nos encontrarmos aqui semana que vem de novo, não acha?”. E, com um sorriso bobo na cara, levantou-se, pagou pela comida e foi embora.

Quando chegou em casa e encarou a tela do computador que ainda esperava pelas palavras que deveriam ser escritas, descobriu o que tinha o que fazer. Selecionou o arquivo e o apagou. Aquela história já estava superada. Nada mais podia fazer por ela. A partir daquele momento, ele iria parar de planejar e preocupar-se em viver. Afinal de contas, no próximo sábado ele tinha um encontro marcado.


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Notas finais do capítulo

Enfim, é isso. Espero que tenha gostado, quem sabe nos encontramos em outras histórias.
Caso tenha curiosidade sobre Carl Sagan, recomendo esse vídeo. Vale muito a pena: https://www.youtube.com/watch?v=4_tiv9v964k