Your Selection - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 20
Abigail Valentine Bloodworth


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura (me exaltei no tamanho do capítulo, sim, me julguem).



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Capítulo 19

Abigail

“Vencer em matéria de amor é sofrer” – A. Austregésilo

Bastille – The Silence

O café da manhã aconteceu mais cedo do que de costume, afinal partiriam naquele mesmo dia em direção ao Japão. Os príncipes estavam animados, ambos conversando sobre o primo que veriam novamente. Abigail sabia que era uma ótima chance para tentar se aproximar de Mikhail, talvez até chamar a atenção dele, agora que o garoto havia se desinteressado pela inglesa tradutora. Marie contou tudo sobre como o encontro deles fora desastroso. Embora Abigail não gostasse de fofocar, fora uma notícia boa. Em relação a garota francesa, ela estava tão animada quanto sempre, falando mais do que Abigail conseguia acompanhar, mas mantendo-a entretida, o que era de praxe. Seus dias tinham se resumido a ter aulas de manhã, agüentar Marie de tarde e ter desencontros com Nikolai, que mais pareciam forçados por ele. Uma vez no jardim, outra pelos corredores. De algum modo, todas as noites ele estava em algum lugar para encontrar ela, e conversavam. E ele tentava flertar, claro.

– Nikolai está tão calmo, pensei que ele seria mais voraz em relação às meninas. – comentou Marie ao seu lado, enquanto arrastava sua mala em direção ao carro que elas dividiriam. Eram sete carros e trinta e sinto meninas, sete meninas para cada carro e elas poderiam se dividir como quisessem. Iriam para o aeroporto e depois tomariam um avião até o outro lado da Rússia, alcançando o porto e de navio até o Japão. Seriam quase dois dias de viagem, o que não a incentivava muito.

– Ele deve estar flertando escondido por ai – deu de ombros, como se não soubesse de nada. Mikhail agora saia com uma garota espanhola morena. A maioria das meninas espanholas era negras, resultado da migração dos africanos quando a Praga se espalhou pelo mundo. Marie puxou sua manga da camiseta.

– Ele não te convidou mais para sair, será que perdeu o interesse?

– Eu adoraria. – deu de ombros, enquanto entregava sua mala para o guarda colocá-la dentro do porta-malas do carro. Marie fez o mesmo e entrou primeiro, escolhendo um dos lugares ao lado da janela, ela queria colocar a cabeça para fora e sentir o vento enquanto viajassem, por isso Abigail não retrucou. O céu estava claro, e o Sol escondia-se atrás das nuvens. Começara a nevar levemente durante a noite, mas agora o castelo estava cercado de uma camada branca úmida. Madame quase escorregara enquanto caminhavam pelo jardim e Nikolai havia atirado uma bola de neve em Mikhail que explodiu contra o ombro do irmão. Teriam continuado, se o rei não os repreendesse e os mandasse entrar no carro em que partiriam. Era o primeiro da fila dos carros e apenas a família real estaria lá.

– Quando será que o Mikhail vai me convidar para passear? – Marie perguntou, enquanto abria um pacote de chicletes. Abigail relanceou o olhar sobre a amiga e deu de ombros.

– Quando ele desistir da espanhola, talvez.

– Você não parece interessada em nenhum dos dois. Não ficou feliz quando o Nikolai te chamou para sair, o que eu pensei que talvez você quisesse o Mikhail, mas então você não fala nunca dele, também... Até parece que só eu falo.

– Bom, exatamente. – Abigail sentiu-se um pouco desconfortável, afinal não queria ser fria com Marie. Ela era uma boa companhia, estava ao seu lado desde o primeiro dia na Seleção e era a única que realmente conversava com ela, embora quase nunca conversassem sobre as coisas que realmente interessava. Não sabia o nome dos pais de Marie, não sabia a cor favorita dela e não sabia qual dos príncipes ela queria. Talvez fosse sua culpa, afinal não estava dando muita abertura. – Qual sua cor favorita, Marie?

– Cor? – ela a encarou, um pouco desconfiada e depois sorriu. – Eu gosto de verde, como esmeralda. E você, Abby?

– Roxo. – observou os traços no rosto de Marie, as sobrancelhas grossas, as raízes escuras dos cabelos, mas as madeixas louras caindo até os ombros. Os lábios dela eram bem grandes, talvez fossem macios. Ela era bonita, muito bonita. Não sabia porquê Nikolai ainda não a notara, fazia muito mais o estilo dele. – Qual seu animal favorito?

– Animal? Por que quer saber meu animal favorito? – ela riu, como se a pergunta fosse banal demais. O que não deixava de ser verdade.

Abigail pensou em Nikolai, e em como ele havia perguntado as mesmas coisas a ela na noite passada. A verdade era que ela não sabia como ter uma conversa para conhecer alguém, para conhecer Marie. Então estava imitando o que Nikolai fizera. Mas com certeza não seguraria as mãos de Marie e não colocaria o rosto nos cabelos dela. Bufou. Ele realmente irritava. E ainda mais quando estava em seus pensamentos. Deu de ombros, por fim, e Marie soltou uma risada fraca, observando o jardim lá fora. Enquanto isso, as outras companheiras de carro adentravam o veículo, todas conversando em grupos separados. Abigail não se deu ao trabalho de olhar para elas, já tinha Marie para se manter próxima, não queria ter de perguntar a cor favorita de todas.

O carro entrou em movimento e os olhos de Marie brilhavam enquanto observava tudo do lado de fora, passando rapidamente. A maior parte era branca. Árvores enfileiradas seguiam por um caminho quase interminável, o mesmo que percorreram quando vieram ao castelo, três dias antes. Passou-se tão pouco tempo e ela já estava perguntando a cor favorita dos outros. Pensou bem. Não sabia a cor favorita de Will e Lucy, seus amigos que a arrastavam por todos os lados. E também não pensava muito neles, como se não sentisse saudade. Não era como Nathan, Sebastian ou Caroline, seus irmãos, em quem pensava quase todos os dias. A pequena Caroline tinha apenas nove anos e era adotada, mesmo assim a menina era tão apegada a Abigail que sentiu-se triste por tê-la deixado aos cuidados de Nathan. Será que Will e Lucy eram mesmo seus amigos?

Claro que eram, conhecia-os há anos.

E aliás, eles eram seus melhores amigos. Melhores. Como se ela tivesse outros.

Encarou o banco a sua frente, onde o motorista estava sentado, e deixou-se afundar. Foram autorizadas de usar calças pois o clima estava frio demais. Marie usava jeans azul claro e uma camiseta com estampas, entretanto Abigail não queria parecer tão bonita, queria se sentir aquecida. Colocou seu moletom vermelho desbotado e os tênis de caminhada. Observou as outras garotas, todas com os joelhos a mostra, botas e lã, muita lã. Pareciam árvores de Natal enfeitadas, cheias de brilho, verde e creme, como as cores da União Eurásia.

Após a primeira hora de viagem, algumas deixaram de conversar para se entreter em jogos de celular, outras continuaram falando, e Marie ainda se animava com o cenário do lado de fora da janela. Abigail abriu o livro que roubara da biblioteca do castelo antes de ir embora. Era um livro que contava a história feudal da Rússia, sobre a hierarquia a religião e os costumes. E eles tinham reis, suseranos e senhores feudais, camponeses, escravos e padres. Encontrou algumas referências sobre a França e a Alemanha, a Inglaterra e a Espanha. Mas tudo era diferente de como via hoje. Ela não sabia onde ficava Roma, ou o que era um convento. Leu até metade do livro, alcançando os anos da Rainha Mary, da Escócia, entretanto o carro saltou, algo que ainda não tinha feito até agora, e o livro escapou de suas mãos. Algumas garotas tiraram seus fones de ouvido e Marie estava mortificada, encarando o banco do motorista.

– O que houve? – perguntou a ela, que estivera olhando o tempo todo para fora. Pelo modo como estava branca e assustada, talvez tivessem atropelado algum esquilo ou coelho andando pela estrada, mas quando Marie virou o rosto para ela, havia algo mais ali... Algo como... Uma leve presença de adrenalina.

Abriu a porta e passou por ela, procurando no chão onde é que haviam passado para fazer o carro saltar. Olhou, mas não conseguiu encontrar nada, tanto entre o carro da frente como o carro de trás estavam parados também e o motorista logo saiu de seu veículo para encarar o que estava acontecendo. Abigail chutou um pouco da neve com os tênis e notou como ela estava avermelhada perto das rodas do carro. Ajoelhou-se e aproximou o rosto da neve, procurando alguma coisa e encontrou. O corpo inerte estava muito bem escondido entre as rodas do veículo e o sangue esguichara apenas até um certo ponto, tornando quase invisível sua presença. Enfiou os braços debaixo do carro e puxou o garoto com toda a força que conseguia, revelando seu corpo a claridade. O motorista recuou, assustado, entretanto ela não se importou com isso. Encarou o rosto do garoto, um rapaz de no máximo doze anos, com um rosto sardento e pálpebras fechadas. Aproximou o rosto de seu peito e notou que ele respirava.

– Está vivo – falou, e seu hálito tornou-se uma nuvem branca a frente do rosto. – Mas as rodas passaram por seu ombro e deslocou-o. É preciso empurrá-lo para o lugar. Eu não sei como fazer – admitiu. – Mas se alguém segurar ele, talvez consiga. Estou vendo o osso.

– Eu seguro – ouviu, enquanto Mikhail se ajoelhava a sua frente, do outro lado do garoto. Ele ergueu-o, e o menino soltou um gemido rouco, enquanto movia a cabeça. – Vá, antes que ele acorde.

Abigail segurou os dois ombros e torceu-os, sentindo os ossos se recolocando no lugar. O menino abriu os olhos, incrivelmente verdes e vivos. Ela encarou-a e então virou o rosto para Mikhail. Tentou mover-se, mas soltou outro gemido de dor e desistiu. O príncipe pegou-o no colo.

– Irei levar ele até a vila mais próxima. – falou, enquanto o menino tremia – Seus pais estão por perto? – ele não respondeu. Mikhail poderia ter insistido, mas se limitou a sorrir e a dar um olhar significativo a ela. – Entre, está frio demais. – disse e virou-se, caminhando em direção ao carro. Quando ela o acompanhou com os olhos, viu também Nikolai, encostado na porta do veículo, ele acenou e sorriu, ajudando Mikhail a colocar o garoto lá dentro. Antes que pudesse se levantar da neve, Marie a agarrou pelas axilas e a ergueu, empurrando-a para dentro do carro.

– Você vai congelar! – ela gritou e então fechou a porta com violência. – Olhe seu cabelo. – murmurou, passando as mãos nas madeixas louras de Abigail. Ela permitiu que Marie cuidasse da neve, enquanto observava o motorista voltar ao caminho. Como aquele menino surgira no meio da estrada? Não sabia. De onde ele viera? Também não sabia. Mas agora estava com os príncipes e o rei, e Mikhail prometeu levá-lo para um vilarejo próximo para cuidar do ombro. Então estava tudo bem, certo? – Quando vi você arrastando aquele menino, pensei que ele estava morto.

– Não, apenas desacordado – explicou. – Obrigada por me ajudar com os cabelos.

– Tudo bem – Marie sorriu, enquanto assoprava as mãos, tentando aquecê-las. Abigail lembrou-se de algo. Dentro da bolsa que levava consigo a tiracolo. Tirou de lá um par de luvas de lã marrom e entregou a Marie, que a encarou. – Vai mesmo me emprestar? – a pergunta estava cheia de descrença e genuína alegria. Abigail deu de ombros.

– Se não quiser, eu não me importo.

– Não, obrigada, obrigada – Marie colocou as luvas e bateu palmas. – Agora estamos agindo como amigas de verdade. – ela deu uma pausa, em silêncio mortal, e então virou o rosto para Abigail, sem um sorriso. – Você mudou um pouco.

– Eu só te dei as luvas porque pensei que estava precisando, e eu tenho sangue quente, então...

– Sério? Sangue quente? – Marie pegou uma de suas mãos e a colocou sobre a bochecha. – É quente mesmo! – exclamou, pegando sua outra mão e colocando-a sobre a outra bochecha. Abigail ergueu os cantos dos lábios. Ninguém nunca pegara suas mãos para medir sua temperatura corporal – Você é incrível, Abby. Você consertou aquele garoto e ainda é imune ao frio.

– Eu não consertei, só coloquei o osso no lugar e não sou imune ao frio. Estou de moletom, não? – ela apontou para si mesma, embora estivesse feliz com o elogio. Sentia-se aquecida, sim, tanto pelas roupas quentinhas quanto pelo aquecedor no carro, e também por Marie. Principalmente por Marie.

º º º

Encontrou seu livro caído entre as pernas de uma francesa que dormia graciosamente como uma porca. Conseguiu pegá-lo sem acordá-la, entretanto Marie soltou uma risada quando Abigail comentou sobre os sons grotescos que a francesa deixava escapar que a acordou. A menina olhou-as com uma carranca e voltou a dormir. Marie havia fechado a janela, deixando-as sem visão do lado de fora, apenas o papel preto dos vidros. Uma fraca tempestade de neve começou e o motorista diminuiu a velocidade para evitar que o carro derrapasse pela pista. Isso dobrou o tempo de viagem até a primeira parada, para o almoço, em uma cidade chamada Omsk.

Os carros abriram caminho por uma rua tortuosa e longa, que ia até o centro da cidade. Lá, estacionaram em frente a um restaurante.

– Quem iria pensar que o rei estaria vindo para um restaurante bem aqui. – Marie comentou, saindo do carro. Abigail olhou ao redor. A cidade era pequena, não se comparava a Londres. O arco no centro de um parque anunciava o patrimônio do Czar Gabryel IV. As pessoas andavam bem agasalhadas, mas não olhavam para os lados e pareciam não notar a presença de oito carros grandes e negros, com as bandeiras oficiais da família real. O rei entrou no restaurante e voltou anunciando que todos comeriam ali. – Será que ele conseguiu convencer o gerente a dar comida de graça para todos?

– Provavelmente irá tirar uma foto com a família real e pendurar perto da caixa registradora. – ela sorriu e Marie soltou uma gargalhada, enquanto seguiam em fila em direção ao local, por mais de uma vez Abigail notou que Nikolai a observava e fez uma careta para ele na terceira vez, quando já estavam pegando a comida, em duas filas separadas. Ele mostrou a língua e fechou o rosto em uma carranca, que a fez sorrir.

Todos se sentaram em mesas montadas em uma longa fileira, trinta e cinco cadeiras de madeira e quatro cadeiras com estofado macio para a família real e a Madame. Comeram rapidamente pois sabiam que quanto mais demorassem mais tarde chegariam ao Japão. A tempestade de neve havia terminado quando retornaram a estrada. Marie adormeceu em menos de uma hora e Abigail sentiu que seus olhos estavam começando a se embaralhar de tanto ler. Abandonou o livro e procurou alguma música interessante na playlist que Nathan fizera em seu celular (sem a sua permissão), mas nada a agradava. Por fim, virou para o lado, apoiou-se em Marie e também adormeceu.

Acordou com o som de risadas. As outras garotas no carro haviam inventado uma brincadeira de perguntas e respostas, onde quem se recusasse a responder a qualquer pergunta teria de pagar um castigo terrível. Desde colocar a bunda para fora da janela por cinco minutos até cortas os cabelos perto das orelhas. Marie estava jogando também, e as meninas eram maldosas com ela, aproveitando-se de sua fragilidade natural.

– O que mais chama a sua atenção em um garoto? – perguntou uma inglesa.

– Os olhos. – Marie encolheu os ombros, enquanto as outras riam.

– Sério? Você é muito inocente, Mari. – uma delas comentou. Marie deu de ombros e olhou para a amiga, vendo que estava acordada, a chamou para jogar também. Abigail recusou.

– Por favor. – Marie implorou. – Eu te dou meu pacote de chicletes.

Abigail cedeu.

– Certo, eu começo – uma menina chamada Lorraine decidiu, girando o celular no centro da mesa improvisada que elas fizeram com o livro de Abigail (sem a sua permissão). O celular acabou de girar, virado para Fernanda, uma espanhola. – Qual sua cor favorita?

– O que? Esse tipo de pergunta não vale! – reclamou a francesa que roncava como uma porca, que Abigail soube se chamar Dorothy.

– Vale a pergunta que eu fizer – Lorraine a mandou calar a boca, e Fernanda respondeu que gostava de azul. Fernanda rodou o celular e ele parou diante de Marie. A pergunta foi fácil “Sem camisa ou sem calças?”. E Marie respondeu sem camisa. Ela rodou o celular e ele parou diante de Abigail. A amiga sorriu para ela, tentando parecer malvada. Mas Abigail não sentiu medo. Marie era inocente demais para colocar medo nela.

– Você já beijou alguém? – a pergunta ecoou em sua mente e gelou-a. Se já havia beijado? Claro. Uma vez. Mordeu os lábios e tentou parecer calma. Deu de ombros, mas tremeu um pouco enquanto o fazia.

– Claro, quem não?

– Todo mundo já beijou alguém. – Fernanda concordou – Mude a pergunta. Essa daí é óbvia.

– Tudo bem – Marie pensou um pouco e seus olhos se iluminaram. – Quem foi a última pessoa que você beijou?

– Última? – ergueu uma sobrancelha, por alguma razão aquela pergunta era estranha. Era mais fácil Marie perguntar quem fora a primeira pessoa que ela beijara. Mas a última? Por que ela iria querer saber? “Porque a última pessoa foi a última pessoa com quem tive contato. E pode ser que seja um dos príncipes”, concluiu, enquanto começava a compreender que a expressão de Marie não era ansiedade, e sim curiosidade arrogante. “Ela está jogando”. Marie era muito mais inteligente do que pensara. – Bem, foi um garoto.

– Mas o nome. – ela insistiu.

– Por que o nome? – revirou os olhos, como se fosse banal.

– Porque eu fiz uma pergunta e você tem de responder. – ela de repente pareceu séria demais para a Marie que conhecia. E isso a assustou.

– Eu vou pagar o castigo. – disse. – Pode escolher o que eu vou fazer.

– Tudo bem – Marie concordou – Seu castigo é responder a minha pergunta. Honestamente.

Encarou-a. aquilo não valia, certo, não podia valer. Mas as outras garotas todas esperavam sua resposta. Suspirou, estava contra a parede e Marie continuava a olhá-la. Por fim, deu de ombros e disse.

– Nikolai.

O silêncio desceu no interior do carro, enquanto as selecionadas a encaravam. Marie bateu palminhas e sorriu, ruborizada. Abigail não sabia se era rubor animado ou rubor enraivecido. Mas pelo modo como Marie sorria, só podia ser a primeira opção. Todavia, apenas ela sorria.

– Eu sabia, eu sabia, eu sabia! – Marie exclamou. – Você está saindo escondida com o Nikolai! Ontem fui ao seu quarto para te chamar para o jantar e suas criadas falaram para não incomodá-la, que você estava ocupada. Eu sabia que você não me contou tudo sobre a biblioteca.

– O Nikolai beija bem? – perguntou Fernanda.

– Não sei, não beijei outra pessoa antes – deu de ombros.

– Sério? Você tem quinze anos ou odeia o amor?

– Nunca tive tempo para gastar com namoros. – mentiu, embora não fosse totalmente mentira.

– Vocês só se beijaram no quarto ou houve algo mais? - Dorothy, a francesa, erguia as sobrancelhas. Ela parecia não muito convencida, ou talvez horrorizada. Abigail também estaria se fosse ela a falar que havia beijado Nikolai.

– O beijo aconteceu na biblioteca, ele foi ao meu quarto pedir desculpas. – estava começando a se irritar com todas as perguntas que lhe faziam, como se esperassem encontrar mais do que realmente havia acontecido. Era por isso que gostava de evitar conversas íntimas demais.

– Desculpas? Impossível! O Nikolai não faz o tipo que pede desculpas depois de beijar uma menina. Aposto que ele tentou te agarrar. – Dorothy disse, enquanto Fernanda concordava.

“Para a maioria eu sou apenas um delinqüente”, lembrou-se das palavras de Nikolai. Mas Abigail sabia que não era apenas isso. Ele também era atencioso e solitário, ganancioso por atenção, mas gentil, ao seu modo.

Por sorte não precisou participar mais daquele jogo, pois o motorista abriu a porta do carro, revelando a paisagem de um edifício alto, e o frio. – Dormiremos aqui – ele disse. Marie escapou do carro, batendo palmas com as luvas de Abigail. A menina a chamou, enquanto corria até a recepção do prédio. Era um hotel no centro de uma cidade um pouco maior que a anterior, mas com as mesmas pessoas cuidando apenas de suas vidas, sem se importar com os visitantes. O edifício erguia-se a oito andares do chão, pintado desleixadamente de cinza, mas que agora quase parecia branco, com a fina camada de neve cobrindo-o. Janelas que outrora carregavam flores agora jaziam fechadas. Abigail conseguiu ler a placa em russo com algum esforço. “recanto Olívia Spectro”, nome peculiar para um hotel no meio da Rússia, coberto de neve e caindo em uma lenta decomposição. Metade da escada de incêndios desaparecera e algumas janelas estavam fechadas com estacas e vigas de madeira.

(Bastille – These Streets)

O céu era um borrão de laranja, roxo e azul escuro. Os últimos raios de Sol escapavam por detrás das sombras mórbidas do hotel. Uma placa anunciava a velocidade máxima da rua, um sinaleiro em luz verde permitia que os fantasmas de carros que outrora passaram por ali transitassem pelas sombras. O silêncio monótono era incômodo, muito diferente de Londres. Nikolai atravessou a rua, abandonando o grupo que entrava no hotel e os carros, os guardas e suas selecionadas. Observava algo ao longe. A curiosidade a obrigou a segui-lo. Atravessou a rua com pequenos passos e encarou as falhas no asfalto antigo. Rachaduras, pedras inteiras soltas e muita poeira. A neve cobria a maior parte das calçadas, mas não tocava o negrume do piche.

– Onde estão as pessoas? – perguntou, ao seu lado. A nuvem branca que escapou de seus lábios a seguiu e então desapareceu.

Ele a olhou por cima do ombro.

– Provavelmente escondidas em suas casas. – respondeu. Suas mãos estavam dentro dos bolsos do casaco preto e ele colocara uma touca sobre os cabelos louros. Vestia calça de moletom grossa e tênis grandes. Encarou as pegadas que ele deixava na neve.

– Escondidas?

– É crepúsculo, logo anoitece, e há estranhos na cidade. A vida aqui dorme cego. Mas ouvi dizer que Londres está sempre acordada. – por algum motivo, aquilo soou mais frio do que deveria ter soado, vindo de Nikolai.

– É. – concordou. O silêncio era incômodo, enquanto caminhavam pela calçada. Eles os tomavam, envolvendo suas cabeças e afastando-os a medida que davam cada passo. Aquilo a estava irritando profundamente. Era como se Nikolai negasse uma conversa. “Como se eu estivesse tentando conversar comigo mesma”. Bares fechavam suas portas, mercantis empilhavam as últimas caixas. E ao longe Abigail viu um grupo de pássaros voando para as copas de árvores grandes. Logo partiriam por causa do inverno. E eles também. – Seu pé é grande.

– Eu sou alto – Nikolai deu de ombros, um pouco desinteressado. Isso a fez erguer uma sobrancelha.

– Para onde estamos indo? – enfiou as mãos dentro do moletom, embora não sentisse frio.

– Lugar-nenhum. – Nikolai não diminuiu o passo, o que só a fez suspeitar mais ainda. Ele estava estranho.

– O que há com você? – tentou uma última aproximação.

– Nada! – Nikolai virou-se, irritado. O rosto formava uma careta, com os traços angulosos, as sobrancelhas arqueadas e a boca em uma linha. Seu nariz era grande, embora não feio. E talvez houvesse uma ou mais falhas em sua barba rala que começava a crescer pelo queixo, dourada. Sua sombra cobria Abigail por completo, e ele deveria ser pelo menos trinta centímetros mais alto. – Eu só não me sinto bem em viagens. Na verdade eu odeio! E odeio responder perguntas quando estou irritado.

– Não gosta de responder perguntas quando está irritado?

– Não! E não vou mais responder perguntas!

– Você está irritado comigo?

– Não, não estou irritado com você. – ele respirou fundo – Mas juro ter um ataque se me fizer mais uma pergun...

– Tem certeza?

Nikolai parou de caminhar e encarou-a. Abigail se segurou por quatro segundos, antes de começar a rir. Por mais que Nikolai tentasse, não conseguia odiá-la. E acabou sorrindo também.

º º º

Bastille – Laughter Lines

Voltaram juntos para o hotel. Marie havia reservado um quarto para dividirem, afinal teriam de formar duplas ou trios para dormir no hotel. O rei e os gêmeos ficaram com o primeiro andar, o único com televisão. O seu estava a três lances de escada acima. Os guardas levara, suas malas. A suíte tinha uma banheira, água quente, dois travesseiros sobre a cama de casal, cobertas pesadas dentro do armário e uma escrivaninha com gavetas trancadas. O espelho no banheiro estava manchado e a descarga não funcionava sempre.

Marie tomou o banheiro, decidindo que seria a primeira a se banhar. Isto deu a Abigail tempo para explorar o quarto. Encontrou uma tomada e colocou o celular para carregar, descobriu que uma das janelas estava fechada permanentemente com pregos e a outra janela não tinha vidro, de modo que teve de prender as cortinas para que o vento frio não entrasse no quarto. O carpete estava sujo com o que antes deveria ser uma mancha de molho de tomate, perto da escrivaninha, e conseguiu abrir uma das gavetas, encontrando lá teias de aranhas, uma aranha pequenina e um brinquedo para gato, de borracha, que parecia-se muito com um camundongo. Tirou apenas um pijama da mala e esperou Marie, enquanto terminava de ler seu livro. Quando a amiga apareceu, usava calça jeans clara e outra blusa estampada, os cabelos pareciam mais escuros molhados e só então notou que nunca a tinha visto sem maquiagem. Os lábios de Marie não eram tão grandes, mas ainda fora do comum para uma garota russa, que normalmente tinha lábios finos como os de Nikolai. Os olhos dela não eram tão grandes e não tão claros, mas os cílios eram longos por natureza. E as sobrancelhas negras destacavam-se menos sem o pó branco. Ela havia enrolado sua toalha na cabeça e deitou-se ao seu lado, observando o livro por algum tempo.

– Vai tomar banho? – perguntou.

– Não, tomei antes de sair, não me sinto bem tomando banho com tanto frio. E não me sujei tanto.

– Ouvi dizer que os ingleses tomam dois banhos por semana. – comentou ela, e quando viu sua expressão, soltou uma risada. – Mentira, são três banhos.

– Nós tomamos banho normalmente – resmungou. – Só não quero tomar agora, certo?

– Certo. – ela ficou em silêncio e então tirou o livro das mãos de Abigail, obrigando-a a olhar para ela. O rosto de Marie estava sério, embora ainda corado. – Eu vi você andando com o Nikolai hoje, quando saímos do carro.

– Sim. – não sabia o que mais dizer.

– Você gosta dele, não? – ela perguntou, sem nenhuma delicadeza. Marie sabia ser direta quando queria. – Você quer ele, então?

– Como?

– Todas queremos um deles. Você não pode ter os dois. Então tem de escolher um pelo qual lutar. Você quer o Nikolai. Notei isso, e está conseguindo.

– Não, não é isso. – ruborizou e sentiu-se como uma criança, pela primeira vez em anos – Eu não quero o Nikolai – tentou cobrir-se com o cabelo, balançando a cabeça, e então se encolheu. – E-eu só... Prefiro o Mikhail.

Marie a encarou por algum tempo e então abriu um sorriso doce.

– Que bom! Porque eu estava com medo, eu quero o Nikolai. Pensei que já tinha perdido ele para você, mas acho que não! – ela se ajoelhou na cama. – Mas mesmo assim, ele só olha para você. Eu percebo. Assim como o Mikhail sempre fica olhando para mim.

– O Mikhail olha para você?

– Começou, ontem. – ela encolheu os ombros – Notei durante o almoço e o jantar. Acho que irá me convidar para sair, como fez com a inglesa tradutora e a espanhola... Será que ele só usa as meninas e depois as joga fora? Um dia com cada garota.

– Não acho que o Mikhail faça isso, ele é uma boa pessoa. É responsável e educado. E o pai confia o reino a ele. Duvido que teria um caráter tão furado. – enrubesceu.

– Você gosta mesmo do Mikhail... – Marie mordeu o lábio – Vamos fazer um trato? Uma promessa de amigas?

– Promessa? – Abigail se sentou na cama. Ela nunca tinha feito uma promessa de amigas. Abraçou os joelhos e Marie sorriu, enquanto se colocava a sua frente e esticava a mão. Levantou o dedo mínimo.

– Sim, uma promessa. Eu te ajudo com o Mikhail e você me ajuda com o Nikolai. Você é próxima dele, poderia falar sobre mim. E quando eu sair com o Mikhail, falarei de você. Vamos nos ajudar, Abby. E juntas poderemos viver no castelo, como rainhas! E... Irmãs. De verdade.

Abigail encarou o dedo fino de Marie. Um acordo para conseguir a atenção do príncipe que ela queria desde o primeiro dia que o vira. E Marie era uma amiga, confiável. Não tinha insinuado nada perverso quando ela contou sobre o beijo, e Marie era tão frágil... Precisava de alguém para protegê-la das outras meninas maldosas, e Abigail queria protegê-la. Aquela promessa poderia consolidar a amizade de verdade. “E moraríamos juntas, com nossos maridos, felizes.”. Apertou o dedo de Marie com o seu dedo mínimo. Ambas sorriram.

– Então está feito. – ela esticou-se – Pode parecer que não, mas estou muito feliz. – Marie voltou a encará-la, enquanto se deitava ao seu lado. – Eu nunca tive uma amiga antes. As pessoas fugiam de mim porque eu era pegajosa demais... E tímida com os garotos. As meninas diziam que eu tentava agir fofa e feminina para que os meninos me notassem. Então elas diziam “A Marie já tem os garotos, então ela não precisa de nós” e me isolavam. Mas eu nunca tentei ser fofa para um garoto, eu só...

– Eu entendo. – segurou suas mãos. – Eu também não tive muitos amigos. Minha atenção estava voltada para cuidar da minha família, como responsável pela herança e a empresa dos meus pais...

Marie sorriu, apertando mais forte suas mãos.

– Às vezes acho que fomos enviadas aqui pelo destino de nos tornarmos amigas. Eu gosto de ficar com você, mesmo que te irrite, ou te atrapalhe. Eu não estava interessada na história de Nicolau, mas mesmo assim fui procurar sobre ele na biblioteca porque pensei que te animaria. Você estava sempre tão distante, parecia triste com algo. Evitando todos, se isolando... Não queria que você ficasse sozinha. Sentia que deveríamos ser amigas. Sabe, eu sei quando devo confiar em alguém. – Marie sorriu – E eu sinto que devo confiar em você. Então você também pode confiar em mim.

– Obrigada. – não sabia se dizia, ou se calava. Mas Marie acabou com as indecisões, dando mais um de seus sorrisos sinceros e doces e virando-se para o outro lado da cama, dando um salto e batendo palmas.

– Hora do jantar! Estou morrendo de fome!

º º º

Bastille – Falling (Laura Palmer)

Meu coração já morreu. Ele pulsa, consigo senti-lo bombear pelas veias e artérias. Mas ele morreu há muitos anos, e está cercado de teias. Deixei-o esquecido, aqui dentro, e ele deixou de ser útil. Agora ele só me mantém viva. E nada mais está ao redor, além dessa sobrevivência. Não posso abraçar meus filhos, pois eles estão mortos. Não posso me aquecer em meu marido, pois ele está morto. Não posso correr para a segurança de meus pais, pois estão mortos. Estão todos mortos. E eu sobrevivo. Pois viver sem amar, não é viver.

Os olhos de Abigail demoraram-se sobre a página, enquanto pendia a cabeça para frente. Marie ronronava docemente ao seu lado, com a cabeça escondida no travesseiro e o corpo encolhido. Ela até parecia mesmo um gatinho medroso. Suspirou, fechando o diário da Rainha Mary. Estava cansada das anotações da mulher sobre como ela perdera tudo, inclusive sua coroa. Mas ela era deprimente demais. Queixava-se demais, ao invés de seguir em frente. Fechou os olhos e desligou a luz do abajur na cabeceira da cama. As cobertas a aqueciam, mas ainda sentia-se terrivelmente fria. Seu sangue poderia ser quente, e ela poderia estar bem abrigada do inverno, mas não de seu inverno interior.

Virou-se de lado, enquanto encarava os cabelos de Marie. Cheiravam a xampu barato, que ela deveria ter usado durante o banho. Por algum motivo, queria se aproximar, mas não tinha coragem. Abraçou-se. Já estava costumada a passar as noites de insônia deste jeito, a ajudava a esquecer o resto e no outro dia acordava cheia de dores musculares. Mary era um pouco parecida com ela, certo? Uma rainha sem coroa, uma menina sem coração. “Mas eu não sou tão fria assim, certo?”, tentou se animar. “Eu ajudei aquele garoto. E sei fazer piadas”, mas a medida que pensava nisso, só se deprimia mais. Ninguém falava que ela era calorosa, ou mesmo uma boa companhia. Apenas “Me diga se estou te irritando” ou “Você é bem monossilábica”. Até mesmo Will e Lucy diziam.

Bufou, virando-se novamente, agora me direção a porta do quarto. Cruzou os braços. Aquilo tirava totalmente o seu sono de antes. Talvez voltasse a ler mais alguns capítulos do livro, só para sentir mais sono. Sentiu mãos envolvendo-a, e alguém respirando em suas costas. Marie estava quente, o calor humano transbordando.

– É difícil dormir? O colchão é tão diferente?

– Não é isso. Só... Minha cabeça está cheia de coisas. – suspirou.

– Não se preocupe. Pode falar o que quiser para mim. Porque eu sempre estarei aqui, certo? – ela a abraçou mais forte, e sentiu o ar faltando nos pulmões. Mas não a empurrou. Sorriu.

– Eu tenho coração, Marie?

– Coração? Acho que sim. Ou você é um vampiro?

Riu. Marie riu também, enquanto a soltava.

– Essa é a primeira vez que você ri. – sussurrou, e então fechou os olhos. Abigail também fechou os seus olhos e permaneceu mais treze minutos acordada, antes de apagar.

A neve em seus pés a afundavam, cada vez mais alto, até estar dentro da neve até a cintura. Mas continuava caminhando, sem pressa, em direção a um incêndio. A casa de madeira seca e velha ardia com força. As labaredas erguendo-se alto nos céus brancos da Rússia, enquanto ela mergulhava mais e mais, tentando alcançar o próximo passo a frente. A neve era úmida e causava-lhe arrepios, por mais que estivesse vestida. Seus ossos tremiam e a única coisa que ouvia era o pulsar do coração, nos ouvidos, com força e adrenalina. Mais um passo, só mais um passo. Não sabia porquê queria tanto chegar àquela casa, mas tinha de fazê-lo. Ou jamais se perdoaria. Continuou, mordendo os lábios. Conseguir, é assim que viveria a partir dali. Seu único objetivo seria conseguir.

Então os gritos. Os vultos a princípio pareciam se distorcer em meio as labaredas e as sombras, mas então Abigail viu o rosto de Nathan, Jonathan e Sebastian, gritando em plenos pulmões. Mas onde está Coraline? Onde está a pequena Coraline? Queria gritar para eles saírem da casa, antes que se queimassem, mas a voz não atingia o volume máximo, suas cordas vocais começavam a congelar.

Agora a neve chegava aos ombros, e sentia as forças se esgotando. Era tão fraca assim? Não. Não podia, afinal seu único objetivo era conseguir. Moveu ambas as pernas, e pareceu subir mais alguns centímetros, depois mais, até os seios estarem fora da neve, mais, mais... Usava toda a energia do corpo, enquanto subia. Agora estava correndo na neve, às vezes tropeçando, mas continuando. Os gritos dos irmãos pararam, mas ela não. A porta não estava lá, e as labaredas corroíam o batente. A estrutura inteira ruiria em breve. E mesmo assim faltavam dez metros. Dez metros, intermináveis. Quanto mais pensava estar perto, mais se afastava. A casa agora tornava-se uma mancha, e a fumaça invadia seus olhos. Tossiu. O calor era terrível. Então por quê a casa estava tão longe? Gritou para eles, e não obteve resposta.

Você não vai conseguir. Não pode conseguir.

Os pés atrapalhavam-se, enquanto o desespero tomava conta de seu peito. Tinha que conseguir. Não podia se deixar vencer. Era ela contra o inverno, ela contra a distância, contra as chamas, contra tudo. Mas seria forte o suficiente para vencer?

Não vai conseguir.

Grunhiu, como um lobo enfurecido, e apertou o passo, correndo muito mais do que qualquer humano poderia correr. A casa agora estava nítida novamente, e as mãos de Sebastian, formando um cone diante da boca, anunciavam que o menino gritava para ela. “Ele me viu, ele está me vendo!”. Abriu a boca e gritou em resposta. A voz foi levada pelo vento e pela neve, mas Sebastian saltou da casa. O pequeno começou a correr em direção a ela, braços abertos, as perninhas estabanadas. Seu rosto vermelho e os cabelos loiros chamuscados. Abraçou-o, enquanto encarava a casa.

– Onde estão Nathan e Jon? – perguntou a ele, enquanto soltava-o. Mas já não abraçava Sebastian, e sim uma sombra negra, formada por frio, solidão e putrefação. O cheiro era insuportável e a fez ter um ataque de náuseas, enquanto fechava os olhos fortemente, irritados. A sombra possuía mãos e envolveram sua garganta com força impressionante. Não era Sebastian, não podia ser ele. Chutou a sombra e livrou-se dela, enquanto voltava a correr em direção a casa em chamas. O incêndio agora tocava o Sol, e ele enviava ainda mais calor.

Algo segurou seu pé e puxou-a para trás. Foi de encontro ao chão, sentindo a neve na boca. A sombra saltou sobre suas costas e prendeu-a. Abigail lutou para se colocar de pé, mas era impossível, aquilo era mais forte, era impressionantemente mais forte. E por algum motivo, quanto mais força usava, mais forte a sombra se tornava. Como se estivesse ligada a ela por um fio fino e quase invisível. Grunhiu e trincou os dentes, mordendo tão violentamente os lábios e abriu feridas. O sangue tinha gosto de fome, amargo e oco. Parou de lutar, quando escutou o estalido alto e então a casa ruiu. Caindo. Caindo eternamente. E sua alma ia junto.

Despertou, a camisa empapada de suor, enquanto ofegava. Jogou-se novamente na cama, e passou as mãos pelo rosto. Estava quente, muito quente. Tentou mover-se, mas a dor chegou, todos os músculos pareciam chumbo, enquanto prendiam-na a cama. Seria outro pesadelo? Viu Marie parada na porta do banheiro, escovando os dentes. Quando a viu demorou um pouco, antes de voltar ao banheiro, enxaguar a boca e se aproximar. A mão da menina voou para sua testa.

– Eu sabia que você não podia suar tanto em um inverno. – e então caminhou em direção à porta do quarto. – Vou chamar alguém. A Madame. Você está ardendo em febre.

“Não febre, mas em chamas. Como Nathan e Jon”.

Marie deixou-a sozinha, enquanto o quarto escurecia. Encarou a lâmpada pendurada pelos dois fios que a mantinham eletrificada. As paredes eram mal pintadas de branco, com várias manchas de infiltração de água e mofo. Como não notara isso antes? Respirou fundo, enquanto erguia-se nos cotovelos. A cortina da janela quebrada havia soltado-se, então caminhou até lá, gemendo, e prendeu-a novamente. Conseguiu chegar até o banheiro e fechou a porta, encarou-se no espelho manchado, conseguindo ver suas olheiras. Estava tão cansada... Talvez a viagem não lhe fizesse tão bem, assim como em Nikolai. Mediu a temperatura, colocando a mão na garganta. Estava quente. Encheu a banheira com água fria e adentrou-a, nua. Banhou-se por quase quinze minutos antes de Marie bater a porta, chamando-a. Enrolou-se na toalha e deixou a roupa suada jogada pelo banheiro, sem forças para dobrá-la.

Abriu a porta, e a loura envolveu-a com os braços, auxiliando-a até a cama. Ainda estava molhada quando começou a tremer. Sentia muito frio. A cortina se soltou novamente. Mas não se deu ao trabalho de dizer isso a ela, enquanto Marie subia as cobertas por seu corpo. Um homem jazia no batente da porta, pediu licença e entrou. Parecia um dos guardas do rei, mas se apresentou como o médico da família real. Isso só fez Abigail se lembrar do médico de Nicolau, que morreu junto de seu Czar na chacina. E por algum motivo, imaginou se aquele mesmo homem poderia morrer ao lado do Czar atual. Será que as pessoas estavam tão dispostas a abrir mão de suas vidas para servir as outras?

– Ela está branca como um cadáver – Marie disse – E suava muito enquanto dormia. E está ardendo em febre. – ela olhou para Abigail. – Acha que é grave?

– Dependendo dos outros sintomas... – o homem se sentou ao seu lado na cama. – Você sente dores?

– No corpo.

– Inteiro?

– Sim. Mas um pouco mais nas costas e no tórax. – admitiu, enquanto soltava uma tosse engasgada, profunda e grave. Teria deixado-a preocupada, se fosse Marie a tossir. Sentia algo pressionando seus pulmões, como se estivesse se afogando. – Sinto algo pesado no peito.

– Você escarrou? Tossiu sangue ou algo assim?

– Não, eu acordei assim. – suspirou – Isso é inútil. Não tem nada de mais em mim, estou bem. É uma febre de resfriado, aposto. Ficarei bem.

Marie mordeu o lábio e olhou para o médico, que media a temperatura de Abigail. Quando ele terminou, anotou algumas coisas em um caderno e associou as informações que tinha. Voltou a olhar para ela, profundamente em seus olhos e então deu a sentença:

– Pelo que me parece, você adquiriu pneumonia. – ele falou, com calma. – É comum, principalmente no inverno, as pessoas que não são da Rússia e possuem uma tendência mais fraca na saúde a adquirirem essa doença, não se preocupe, eu me preveni para o caso de uma de vocês passar por isso. Terei de levá-la em um carro particular, para a inalação. Preciso aplicar alguns antibióticos para a prevenção. Ainda não sei qual o grau da doença, mas ela se espalhou rapidamente, então acho que é um pouco pior.

– Um carro particular?

– Onde meus equipamentos estão – o homem explicou – Não se preocupe, há muito espaço lá. E o rei não fará questão...

– Não, não posso ir no carro do rei. Sou uma selecionada, não pertenço a família real e não trabalho para eles.

– Está doente e precisa de tratamento. Um menino órfão atropelado andou com o rei, você também poderá. – ele se levantou, agora voltado para Marie – A doença não é transmissível, mas eu aconselho a não permanecer perto dela. Pode abafá-la, e ela precisa de bastante ar fresco. – e assim, virou as costas e se foi pela porta. Marie se sentou ao seu lado e segurou sua mão.

– Você é sortuda.

– Por estar com pneumonia? – sorriu, fraco.

– Não. Por ir no carro do rei. Quer dizer, até doente você consegue passar mais tempo com os príncipes. É como se existisse um imã. Ou fosse o destino.

– O destino me quer doente, então? Que maldoso. – sentou-se, gemendo. – Eu quero comer algo.

– Sua garganta dói?

– Não sei, não tentei usá-la. – segredou.

– Tente gritar, então.

– Gritar?

– Sim. Alguma coisa.

– Bem... Sebastian, saia daí!

– Sebastian?

Abigail deu de ombros, mas sentia-se mais leve por ter conseguido gritar. Pelo menos agora ele poderia ouvi-la.

º º º

Bastille – Love Don’t Live Here

Quando os guardas terminaram de descer com ela pelas escadas, e já havia comido todo o seu café da manhã (que o médico aconselhou a comer em dobro), foi carregada até o primeiro carro da fila de negros corvos com rodas prateadas. As bandeiras reais moviam-se violentamente com todo o vento e a neve estava mais alta que antes. Marie lhe emprestou um cachecol e obrigou-a a usar as luvas que havia dado a ela. Sua amiga perguntou se poderia ir junto, entretanto Madame negou. Abigail sentiu-se triste, como se estivesse traindo-a. Não queria deixar ela sozinha. Não de novo. “Ela não tem ninguém além de mim”, pensou, mas já estava dentro do carro, deitada sobre os bancos do fundo. O rei encontrava-se concentrado em dormir, pois ele odiava viagens tanto quanto Nikolai. Madame a aconchegou em seu casaco de lã mais quente, e Abigail tentou não se deixar mimar tanto. O médico aplicou algo em seu braço que a fez relaxar mais. A cabeça balançava, quando viu Mikhail entrando no carro, junto com o irmão. Ambos riam, mas paravam quando a viram.

– O que essa coisa está fazendo aqui? – Nikolai resmungou, sentando-se ao lado de sua cabeça. Deu dois tapinhas leves em sua testa, com a ponta dos dedos. – O que você está fazendo aqui, coisa? A saudade é tanta de me ver?

– É óbvio. – sussurrou, agora sem forças para falar. O remédio fazia efeito. Sentia-se tonta, mas queria permanecer acordada. Alguma mão surgiu e tocou sua testa com suavidade. Dedos, dedos longos e ossudos, calejados e cheios de cicatrizes.

– Você está ardendo – a voz de Nikolai era calma. – E essas roupas estão piorando tudo.

– É para protegê-la do frio. – disse Madame, cruzando as pernas e abrindo um livro de palavras-cruzadas. – E não irá zoar ela enquanto estiver doente. Ela está fraca.

– Não ia zoar ela. – Nikolai deu de ombros, puxando-a de leve e lentamente, sem que ninguém percebesse. De repente estava com a cabeça sobre as pernas dele. O formato do rosto dele de cima era estranho, ou então seria a tontura e o remédio que a fazia enxergar dois Nikolai? Que pesadelo.

Que atencioso – sussurrou, e ele sorriu. Nikolai o olhava de cima, como um irmão protetor, e isso a fazia se sentir realmente como uma protegida. Mikhail resmungou no banco da frente e observou-a. Ele parecia sério, embora não verdadeiramente preocupado. Tocou sua testa também para comprovar que ela estava doente.

– Vai ficar bem? – virou-se para o médico, e o homem assentiu. – Ótimo, então – o príncipe abriu um compartimento no carro e retirou de lá um livro grosso. Abigail observou a capa antes de sentir-se ligeiramente empolgada.

– É igual o meu – murmurou – Espere... O livro! – levantou-se, em um solavanco, e sentiu a tontura tomando-a. – O livro, deixei-o no quarto do hotel. Precisamos voltar.

– Livro? – Nikolai tentou fazê-la deitar novamente.

– Sim, Marie não deve tê-lo visto, eu deixei... Eu... Não lembro, mas está no hotel. Eu preciso dele. Quero saber o que aconteceu com a Rainha Mary.

Mikhail a estudou.

– Se quiser, pode ler. – ele esticou o livro que estava em suas mãos. – Eu já li três vezes, então... Não me importo. – ele puxou o capuz sobre a cabeça e deitou-se. Abigail encarou o livro em suas mãos e sentiu que dele emanava uma energia adorável. Abraçou-o, enquanto voltava a se deitar, a cabeça sobre as pernas de Nikolai. O menino puxou o livro rapidamente de seus braços e o colocou de lado.

– Mas primeiro tem de descansar. – ele ordenou.

– Mas eu quero ler. – retrucou.

– Você não consegue nem manter as pálpebras abertas – Nikolai lhe deu um empurrão forte, que a fez perder todas as forças e deitar novamente. Resmungou algo que nem ela mesma conseguiu ouvir, e virou-se de lado para não ter de olhá-lo. Mikhail a sua frente já parecia estar dormindo, e admirá-lo se tornou uma tarefa fácil. Os cabelos escapavam pelo capuz do agasalho. Braços cruzados, uma perna sobre o joelho da outra, enquanto o corpo escorregava pelo banco. Os lábios dele eram mais grossos que os de Nikolai, embora não chegassem à beleza de Marie. Sentiu a mão de Nikolai pousar em seu ombro e escorregar para o braço, e refazer o caminho, quatro vezes, enquanto acariciava. Ele era um idiota. Um idiota atencioso. Mas aquilo era bom, era sempre ela quem cuidava dos irmãos doentes, que lhes dava sopa, enquanto lia livros ou trazia presentes para animá-los. Ter alguém para fazer isso por ela era bom. Ser, por uma vez na vida, a irmã menor. Permitiu-se ser mimada, então.

Adormeceu facilmente e não teve sonhos, apenas um negrume que a envolvia. Quando sua mente voltou a funcionar, ainda estava deitada de lado, e sentia a bochecha marcada com o formato da calça de Nikolai. Levantou-se, tocando-a, massageando o local onde havia bloqueado a passagem do sangue. Sua mão esquerda também estava marcada e uma leve dor em seu quadril indicava que havia dormido de mau-jeito.

Nikolai não disse uma palavra sequer, pois todos, exatamente todos, dormiam. Madame roncava levemente, com a boca aberta. O médico estava apoiado no mesmo bando que o rei, e a Sua Graça ronronava, como um cãozinho bondoso. Mikhail emitia ruídos profundos, que indicavam que ele não roncava, mas que tinha algo na garganta incomodando-o. Nikolai bocejou.

– Você deveria dormir – sussurrou para ele. O príncipe não lhe deu atenção, enquanto pousava a cabeça para trás. Sua mão ainda estava sobre seu braço, e o gorro em sua cabeça escapava. Sua camisa amassada e o casaco aberto emitiam calor humano. – Ei, você tem que dormir – mexeu em seus ombros.

– Pare com isso – ele pediu, fraco. Não a encarava, apenas dizia para o vazio, olhos fixos no teto do carro. Soltou um suspiro alto e bocejou pela segunda vez. Abigail notou que ele havia raspado a barba.

– Você-tem-de-dormir. – disse, segurando seu rosto e obrigando-o a encará-la.

– Faça isso de novo e eu prometo não me segurar. – ele devolveu o olhar mortal. – Eu disse. Não confie em homens. Eles podem de agarrar e você não terá como detê-los, então não abaixe a guarda.

– Mas você não faria nada. – ela bufou, enquanto se deitava e ignorava-o. Mas havia algo mais. “Pare com isso”, ele havia dito. Parar de mandá-lo dormir ou parar de agir como uma garotinha? Ela sentia-se como uma garotinha, totalmente mole e frágil, como se pudesse derreter a qualquer instante. Talvez ainda fossem sintomas do remédio, ou da pneumonia. Nunca tivera antes. O fato era: a mão de Nikolai deixou seu braço, e ele bocejou mais três vezes antes de cair no sono, e assim, Abigail era a única acordada no carro.

Gostaria de poder pensar em algo que não fosse o sonho que tivera ou as palavras da Rainha Mary. Ela era uma mulher forte, admitia que o amor não estava mais em seu coração. Mas Abigail ainda amava seus irmãos, e o sonho fora uma prova disso. Ainda sentia arrepios de lembrar no que Sebastian se transformara. E em como a casa ruiu. Congelou. Sentia o suor escorrendo por entre os seios, e isso era uma sensação horrível. Suava, mesmo tremendo de frio. Ela suava, por mais que estivesse no inverno russo. De repente desejou poder tomar um banho, todavia o hotel já estava para trás, talvez quilômetros para trás. Metade da Rússia para atravessar em um carro, alcançar o aeroporto, cruzar a outra metade da Rússia e então tomar um navio para o Japão. Demoraria dias, pelo que parecia. E a neve não ajudava. Os motoristas tiveram de parar duas vezes para empurrar a neve da estrada. E suportaria tudo, doente. Observou todos. E no fim, concluiu que não queria dormir, mas que teria de fazê-lo. Pois aquele silêncio se tornara incômodo. “Desde quando deixei de amar o silêncio?”.


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Notas finais do capítulo

Ia colocar foto do Nikolai, mas fiquei com preguiça e foi a da Marie.
To morrendo de sono, então só vou dizer: já deu pra saber qual minha banda preferida, certo? Bastille! A Tomada da Batilha! Revolução Francesa! YAAAA! Boa noite. Dia. Tarde. Sei lá. Beijos cheios de sono.



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