Your Selection - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 16
Abigail Valentine Bloodworth


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Capítulo 15

Abigail

“O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira” – Machado de Assis

Melanie Martinez - Dollhouse

Encarou o mundo real, abrindo-se diante de seus olhos, enquanto Nikolai passava os dedos por seus cabelos e beijava sua bochecha com umidade. As mãos se moveram por vontade própria e empurraram-no para longe, levantando-se de um salto e passando pelo corredor, seguindo em direção a escada em espiral. Ao seu redor, a biblioteca exalava sua velhice. Ela parecia dizer “eu vi”, sentia o coração acelerado, enquanto saltava a abertura separando a escada do segundo andar, com mais facilidade do que esperava fazer. Desceu os degraus correndo, ouvindo os sons dos gritos de Nikolai, pedindo para esperar. Mas não podia, não podia, não podia ficar mais um segundo ali!

Bateu com a cintura em uma pilha de livros e derrubou-os, levantando a poeira. Não tinha tempo de tossir. A porta estava lá. Abriu-a e saiu, chegando ao corredor do castelo. O ambiente era completamente diferente, o ar era puro e a claridade a cegou. Passou correndo por uma série de janelas e encontrou as escadas. Desceu-as, saltando alguns degraus, e chegou ao corredor dos quartos. Seguiu, agora realmente correndo, o vestido enrolando-se nos joelhos e as criadas observando-a. Não queria saber o que elas pensariam, apenas fugir de tudo aquilo.

Quando fechou a porta do quarto em suas costas, deixou-se deslizar até o chão. Soltou um suspiro longo e cansado. Envolveu os joelhos, encarando fixamente a janela a frente. A Lua brilhava bonita, entretanto Abigail não conseguia vê-la. A mente estava longe demais, flutuando em seus devaneios. As lembranças. Bateu a cabeça contra a porta. E então outra vez, e outra vez, até estar suficientemente calma para se levantar. Não queria ser consumida pelos sentimentos, assim como seus pais foram. É como todos dizem: De amor se vive, de amor se morre.

O que tinha feito? O que se deixou fazer? Respirou fundo. Fechou as cortinas, não queria ver a Lua agora. Jogou-se na cama, ouvindo o som da porta sendo aberta. Formou a máscara inerte e virou a cabeça. A criada um estava trazendo uma bandeja com um prato de biscoitos. Ela caminhava sorrateiramente, e Abigail ainda não decorara seu nome. Nenhum sinal das demais moças que insistiam em ajudá-la a fazer tudo. A mulher parou diante dela, a bandeja prateada não possuía apenas um prato branco e biscoitos de chocolate, mas um bilhete. Pegou-o e leu.

– Não tenho fome. – disse a criada e ele assentiu, levando embora os biscoitos e deixando-a apenas com o bilhete. Sozinha, quando a porta se fechou, Abigail passou novamente os olhos sobre o papel. – Idiota – sussurrou consigo mesma, enquanto amassava-o e jogava em algum canto no quarto.

Um verdadeiro idiota. Respirou fundo. A caligrafia de Nikolai era bonita, na verdade, entretanto ele não sabia muito bem como ser gentil. “Por que fugiu?”. Como se ela fosse responder. Revirou-se na cama e então se lembrou que ainda vestia aquele maldito vestido. Tirou-o pela cabeça e jogou pelo quarto, entrando debaixo das cobertas, sem se importar com um pijama. Sabia que as únicas que entrariam em seu quarto seriam as criadas, para vesti-la pela manhã. Fechou os olhos, realmente cansada. Ainda sentia a poeira dentro de si, resquício de que estivera na biblioteca. Francamente, aquele não era um lugar apropriado para um encontro. Mas tudo bem. Teve o encontro com Nikolai, o príncipe provavelmente chamaria alguma outra garota para sair hoje. Ele tinha trinta e cinco para escolher, Abigail não seria a azarada de cair em suas graças logo na primeira semana. Assim, adormeceu, na esperança de que Mikhail pudesse, de algum modo, reparar em sua existência.

º º º

Bocejou, sentindo os olhos pesando. Parecia não ter dormido a noite inteira. Não se lembrava do sonho que tiveram, mas com certeza não fora agradável. Viu Nathan e também Sebastian. Ambos seus irmãos de sangue. Não sabia o que havia acontecido, mas queria chorar. Esfregou os olhos violentamente, até afastar a sensação de náuseas. A luz do Sol teimava em tentar invadir o quarto, enquanto as cobertas se envolviam em suas pernas. Observou por um instante todo o ambiente, antes de sentir a ligeira inquietação de que algo estava errado. Saltou da cama e deixou as cobertas caírem no chão. Correu até o celular e observou a tela brilhando. Dez horas da manhã.

– Droga. – murmurou baixo, enquanto corria para o armário e vestia-se. Colocou o primeiro vestido que viu, feito de lã, com uma gola alta demais que irritava seu pescoço. Ele descia pela cintura, justo às pernas. Colocou meias grossas e botas, pois sabia que hoje teriam uma aula do lado de fora do castelo. Estava tão atrasada que mal sentiu o estômago roncando, vazio. Quando abriu as janelas, observou os pássaros ao longe, voando em direção aos seus ninhos, provavelmente levando comida aos seus filhotes. “Como qualquer pai deve fazer, pensar primeiro em seu filhote”.

A porta abriu-se e as criadas pararam em estátua, observando-a. Abigail sentiu vontade de soltar as feras, mas escondeu-se novamente em sua porta. Aquela que ela construiu quando ainda era uma criança. A que carregava até hoje, e que sempre a manteve protegida do exterior ofensivo das fraquezas humanas.

– Perderam o horário? – perguntou, com indiferença.

– Perdão, senhora. – a criada um disse, e a criada dois entrou no quarto correndo, segurando uma bandeja prateada, parecida com a da noite anterior, entretanto esta possuía um pedaço de bolo, café e sorvete. Abigail observou, desejando poder devorar tudo, mas apenas pensou. – O príncipe Nikolai disse para deixarmos que dormisse o quanto quisesse. Ele nos contou que a senhora estava um pouco cansada.

Claro, Nikolai, como sempre muito atencioso. Comeu o bolo, bebeu o café e deixou o sorvete para comer no caminho, em direção ao Salão Principal. Desceu as escadas, recebendo os olhares calmos e gentis dos criados, os guardas a deixaram sair facilmente e encontrou suas companheiras de Seleção sentadas em mesas espalhadas, todas brancas, com cadeiras igualmente brancas. A Madame que estava engajada de ensinar-lhes como se comportar no castelo, narrava e movimentava a mão, segurando um talher delicado, banhado a prata. Ela mostrava como deveriam cortar a carne, como comer sem levantar ruídos ou sem abrir a boca. Quando a viu, pigarreou, com uma carranca um tanto grande demais. Os olhares das demais garotas voltaram-se para ela, entretanto Abigail pouco se importou com isso. Encontrou Marie sentada em uma das mesas no centro do jardim, com uma cadeira disponível ao seu lado. A garota acenou, visivelmente chamando-a. Agradeceu mentalmente por Marie ser tão teimosa e se sentou. Passou a maior parte da aula se ocupando com os talheres, entretanto às vezes Marie a cutucava com o cotovelo.

– Como foi? – ela sussurrava, o sorriso brincalhão no rosto. – O príncipe Nikolai hoje ficou olhando o tempo todo para a cadeira ao meu lado, onde você sentava. – ela comprimiu uma risadinha.

– Senhorita Marie, não se conversa na mesa de jantar. – repreendeu a Madame e voltou a explicar como os dedos deveriam se movimentar, sem nunca mover o pulso para cima ou para baixo. Marie insistia, perguntando se havia acontecido “algo” e Abigail limitava-se a responder o mesmo: nada de mais.

Quanto mais repetisse isso, mais verdade se tornava, e assim esquecia tudo o que acontecera. Talvez não visse o rosto de Nikolai hoje, a aula terminou no horário do almoço, entretanto Abigail não estava com vontade de comer, já havia devorado seu bolo e seu sorvete, estava satisfeita.

– Mikhail convidou hoje a inglesa tradutora para passear no bosque.

– A menina que sabe russo? – Abigail só falou para que Marie não se sentisse ignorada. A menina concordou. A inglesa se mostrava boa em ser o exemplo ideal de princesa. Sorrisos fáceis, sempre delicada, falava russo fluente e lia corretamente. Além de ter uma afinidade anormal com Mikhail.

– Exatamente. – Marie suspirou – Você roubou o Nikolai, e agora ela rouba o Mikhail. Assim é injusto.

Sorriu de leve, apenas com os cantos dos lábios, enquanto passava os olhos sobre as pinturas de Nicolau II. Aquele homem ainda a intrigava, mas não sabia exatamente como descobrir mais sobre ele. Ou melhor, sabia. Algo em sua mente se acendeu. Os livros que Nikolai estava manuseando, eram cheios de árvores genealógicas e histórias. Talvez em algum lugar estivesse contando sobre Nicolau. A curiosidade a fez girar nos tornozelos, em direção a Marie, que estava falando alguma coisa que ela não havia escutado. Às vezes se perdia em seus próprios pensamentos que se esquecia do mundo ao redor.

– Vamos para a biblioteca. – disse, convencida a fazê-lo. A menina com cabelos de madeixas douradas e sobrancelhas grossas escuras a encarou por algum tempo. Havia algo de diferente em seu olhar, quase como intriga, entretanto Marie deu de ombros.

– Tudo bem, vamos à biblioteca.

Abigail lembrava-se do caminho, subir as escadas, virar ao primeiro corredor. A primeira porta, estreita e velha. Quando abriu, sentiu o cheiro de mofo e a escuridão. Onde Nikolai havia acendido as luzes, mesmo? Tateou a parede até encontrar o interruptor. Marie estava boquiaberta, encarando as paredes cobertas de livros. Abigail pensou se não havia ficado com a mesma expressão que ela, mas provavelmente não, afinal ela raramente se surpreendia realmente com algo.

– Você acha que encontraremos algo sobre Nicolau II? – perguntou a menina, vasculhando os títulos nas prateleiras.

– Não sei. Mas temos a tarde inteira para procurar, certo? – ela respondeu, passando a mão pelas lacunas de volumes grossos, seus títulos todos em russo. Por mais que tentasse ler, era difícil. Alguns livros eram escritos em inglês, entretanto estes não tinham nada além de informações desnecessárias sobre evolução de espécies e sobre os pensamentos de um imperador antigo francês. Marie encontrou algumas provas sobre a família real, mas eram todos imperadores e reis que vieram antes de Nicolau II. O trabalho de procurar era árduo, principalmente no meio de tanta poeira. Abigail sentiu vontade de procurar lá em cima, entretanto um fraco fleche da noite passada acompanhou seus olhos e desistiu de imediato.

– Acho que encontrei. – Marie anunciou, caminhando até o centro da sala, onde a lâmpada quase morta jazia, trazendo a luz à biblioteca. Ela tinha uma mancha de poeira na bochecha, mas Abigail não se incomodou em dizer. Sabia que não deveria estar muito mais limpa. O livro nos braços de Marie era realmente grosso, com “A Família Romanov” escrito em letras grossas. – Aqui diz que tem desde o primeiro Czar ao último. – ela comentou, abrindo o livro nas primeiras páginas.

– Passe para o final. – Abigail virou as páginas, até chegar ao nome Nicolau II Romanov. O último Romanov. Marie começou a ler em voz alta, entretanto não era o suficiente. – Me dê – pediu, e a garota obedeceu. Passou os olhos sobre as linhas, as palavras em inglês saltando em sua mente. Agradecia mentalmente por ter nascido na Inglaterra, afinal o inglês estava presente em todos os outros reinos.

Nicolau II foi o último imperador da Rússia, rei da Polônia e grão-príncipe da Finlândia. Nasceu no Palácio de Catarina, em Tsarskoye Selo, próximo de São Petersburgo.

– Já ouvi falar sobre este lugar. Era muito famoso antes da Guerra.

– Deve estar em ruínas agora.

Continuou a ler sobre a vida de Nicolau, aonde crescera, sua educação e religião. Tudo o que poderia saber sobre ele, mas não o motivo de sua morte. Tentou saltar alguns parágrafos, chegando à ascensão dele ao poder da Rússia. Mas nada dava detalhes sobre o que provocara a morte de Nicolau, nada que dizia porquê os bolcheviques queriam-no morto, ele e toda a sua família. Suspirou.

– Precisamos achar algum livro sobre a Primeira Guerra, ou então de 1918. – falou, observando os títulos. Encontrou com os olhos, escondido debaixo de uma cômoda, um livro. Deveria ter sido um dos que derrubara enquanto fugia de Nikolai. Ajoelhou-se, agarrando-o. ele deslizou pelo carpete e manchou seus dedos de poeira negra. Abriu-o. A data era de 1917.

“Como se já não bastasse as baixas que obtemos contra o Japão, eis que surge agora camponeses sujos de ferrugem, brandindo arpões e tochas, tossindo seus pulmões, espalhando piolhos pela muralha exterior.”

Não conseguiu identificar a datação dos relatos, mas descobriu que o livro era um diário, não apenas um livro, mas as próprias palavras de alguém que vivera nos anos de Nicolau II. Isso a deixou mais ávida por ler.

O desmantelamento de Petersburgo deu a Nicolau II novamente o controle, mais uma vitória gloriosa. Que venham os piolhentos reclamar sobre o tratado de Outubro, e então lhes daremos nossa honesta resposta: não há momento para honra ou palavra, maldito é o homem que vale-se de seu orgulho. Pois caiu Napoleão, cairá também uma Revolução. Que o mercado de pulgas continue a feder-se.”.

Não compreendia o que aquelas palavras diziam, entretanto concluiu que Nicolau estava tendo grandes vitórias em campo de batalha, talvez travando uma guerra. Notavelmente, o Czar havia transgredido algum dos termos de seu tratado de Outubro, ou talvez todos, mas isso não surpreendia quem estava narrando os acontecimentos em ordem cronológica.

“Os corpos jazem pelas latrinas de nossas ruas. Os cães se alimentam de seus rostos sem identidade, desfigurados por sua própria ignorância. É isto que a traição traz. Pois agora é que não se atrevem a desafiar-nos novamente. Nicolau II provou o motivo de ainda ser o Czar, nenhum sarnento o tirará de sua magnitude. Os pecadores serão julgados e condenados, e os de bom coração ganharão seu lugar no paraíso. Pois espero encontrar meu justo e competente Czar junto a mim no paraíso, para juntos rirmos de seus escárnios na Terra”.

Horrorizou-se com a frieza das palavras. Lembrou-se de algo que havia lido em uma das pinturas de Nicolau. “Domingo Sangrento”. Seria o tal evento? Pois os relatos seguintes eram realmente sangrentos, descrevendo em detalhes a situação de pessoas mortas em uma revolta. Chamavam-nas de “traidores” e “piolhentos”. Então os relatos diminuíram para curtos tratados, o começo da Primeira Guerra e o registro das batalhas que Nicolau travou, antes de se recolher novamente para a Rússia, por motivos de uma nova desordem.

“Pois Nicolau não é mais o mesmo homem são. As perdas contra os alemães chocam-lhe sempre que pensa sobre a guerra. Enquanto isso, os homens e mulheres marcham nas ruas, gritam e protestam. As greves tornam tudo ainda pior e a fome domina ao país. Como um amigo íntimo, tento ajudá-lo, mas condena-me por estar me tornando um desses revoltosos. Então eis que me retiro da corte. Se não sou útil ao meu governante, então não existo. Pela janela vejo, os pobres homens e as malditas mulheres, massacrados pela guarda. Mas quanto tempo mais esses militares agüentaram matar sua própria família?”

A leitura a envolveu de tal jeito que não conseguia mais deixar o mundo de Nicolau.

“Verdade seja dita: o ser humano é fraco. E mais fraco é aquele que tenta não admitir sua fraqueza. Nicolau perdeu-se. Seus homens lutam agora pela multidão, e eu mesmo estou tentado a pensar assim. De Czar passou a tirano. Agora ouve-se na rua somente o que todos querem ouvir: o Czar será morto. O Czar está sentenciado. Não me impressionaria se agora Nicolau estivesse a fugir”.

E os próximos relatos eram sobre luto e ao mesmo tempo confusão, palavras que não se encaixavam na mente de Abigail, mas que lhe deram uma luz: Nicolau foi assassinado por seu povo. Ele era um homem mal. “Mas o que cinco crianças fizeram para morrer?”. Nasceram. Nasceram como Romanov, morreram como filhos de um Czar odiado. Qualquer ameaça de um novo Czar deveria ser tirado da Rússia, pelo que entendia. E a confusão nas ruas era grande. A última nota do autor do diário era uma despedida, justificando porquê se mataria. Isso a fez recordar mamãe, e fechou o livro antes do último parágrafo. Marie perambulava pelos corredores.

– Terminou de ler? – perguntou, observando-a.

– Sim. – respondeu.

– E então...?

– Ele era uma pessoa má – deu de ombros, colocando o livro sobre a cômoda.

º º º

Voltou ao quarto antes do jantar, enquanto Marie comentava que adoraria voltar para a biblioteca e buscar alguns romances que ela havia gostado. As criadas aguardavam-na, todas sentadas sobre sua cama, costurando um vestido de tecido brilhante e leve, gola e mangas japonesas, descendo reto pelo corpo. Um típico vestido japonês, até onde sabia.

Elas ergueram os seus olhos quando adentrou o quarto e achou aquilo suspeito, afinal elas normalmente não faziam tudo em uníssono. A criada um levantou-se, tirou algo do bolso e voltou a costurar. Abigail encarou o pedaço de papel que havia recebido. Revirou os olhos, ele já estava sendo irritante. Abriu o bilhete, conseguindo ver a caligrafia caprichada por trás do papel.

Há um piquenique na biblioteca esperando uma garota.

Revirou os olhos, amassando o bilhete e jogando-o na cesta do lixo, próxima a sua penteadeira. Sentou-se, diante do espelho, encarando o próprio reflexo. Diria que era uma fotografia, se não respirasse. Desde quando os músculos faciais se tornaram tão mortos? Arqueou as sobrancelhas e depois tentou torcer os lábios. Suspirou e então tentou rir. Tudo muito robótico. Desistiu, enquanto adentrava o banheiro. Ela não sabia mais como interagir na sociedade sem sentir-se como um robô. Despiu-se e banhou-se, talvez tempo demais. Quando as criadas perguntaram se precisava de ajuda, mandou-as embora. Realmente não queria companhia. Mergulhou, até estar apenas com o rosto para fora das águas quentes.

Observou-se no espelho por algum tempo, enquanto o corpo pingava, enrolado a toalha. Dentro de uma das gavetas, encontrou uma tesoura afiada prateada. Encostou-a no rosto, sentindo o frio do metal. Na altura do maxilar. Abriu a boca cortante e fechou-a ao redor das madeixas. Cortou apenas uma, os fios caindo na pia. Loiros. Observou a falha no cabelo. Os fios molhados grudavam em sua bochecha, quando voltou do banheiro e colocou um dos vestidos que trouxera da Inglaterra, aberto nas costas, com uma fita laranja na frente, trançada até o final da cintura. A saia era simples e ia até os joelhos. Era a coisa mais aberta que tinha, e provavelmente não combinava com o frio da Rússia, mas quem queria saber sobre isso? Usava-o para ir a festas com seus amigos e também foi a formatura de Nathan com ele.

Quando os cabelos secaram naturalmente, as criadas logo viram a falha.

– Quer que cortemos tudo? – a criada dois perguntou, mas recusou. Queria realmente parece “falhada”. Talvez assim ficasse um pouco menos robótica. Observou-se no espelho do quarto. – Você irá encontrar o príncipe Nikolai?

– Não. – respondeu, talvez um pouco fria demais. – Não, não vou.

Nenhuma disse nada a mais, e a deixaram sozinha quando mandou. Deitada na cama, sentiu-se uma boba por ainda estar no castelo. Veio para descobrir coisas, conhecer sobre a cultura, o castelo, conhecer. E agora um príncipe delinqüente estava em seu pé. O que teria de dizer a Nikolai para ele entender que ela não era uma das moças que “lutavam por seu amor”? E ainda havia Mikhail... Ele estava saindo com a inglesa tradutora, e a menina era mesmo bonita. E daí? Só sabia o que vira em Mikhail, e se ele fosse uma pessoa tão irritante quanto Nikolai? Ela não acreditava em amor à primeira vista, mesmo que seus olhos sempre encontrassem os dele.

Ouviu alguém bater a porta. Provavelmente as criadas anunciando que o jantar estava sendo servido. Levantou-se, enquanto ia abri-la. Ele ergueu a cesta, sorridente.

– Quer me obrigar a jogar comida fora? Posso entrar?

– Você praticamente já entrou no quarto – comentou, enquanto Nikolai arrumava o pano vermelho sobre o carpete do quarto e colocava a cesta no centro. – Eu pensei que era na biblioteca.

– Se a garota não vem ao piquenique, o piquenique vem até a garota.

– Que atencioso esse piquenique. Tem certeza que é ele que veio?

– Eu vim junto, admito. – Nikolai deu de ombros, tirando da cesta uma garrafa de vinho alemão.

– Isso de novo não...

– Ah, sim! – ele exclamou, enquanto colocava para fora potes de diferentes tamanhos. Quando abriu o primeiro, ela reconheceu os cogumelos comestíveis que ele e o irmão tanto adoravam. – Colhidos no bosque. Você sabia que todos os verões nós temos uma caçada de cogumelos?

– Caçada de cogumelos? – sentou-se na toalha, embora não fosse isso que quisesse fazer.

– Sim. – ele sorriu, enchendo uma das taças com vinho. – Saímos recolhendo cogumelos. Se você é russo, provavelmente já caçou cogumelos. – e então riu – Eu sou campeão nisso. Mikhail sempre chorava quando eu recolhia mais cogumelos que ele. Então eu dividia nossas cestas.

– Que irmãozinho atencioso.

– Pode não parecer, mas você já disse que sou atencioso umas três vezes só hoje. – Nikolai piscou, enquanto enchia a taça dela. Tinha certeza que não tocaria no vinho aquela noite, mas era bom tê-lo para esvaziar a mente. Por mais que Nikolai fosse irritante, ele a mantinha entretida. Como Marie. – Você gosta de gatos?

– Sim. Por quê?

– Você desenhou um gato na biblioteca – ele deu de ombros – pensei que gostasse. E do que mais você gosta?

– Coisas que mantém entretida.

– Ótimo, isso é minha especialidade – ele piscou, repartindo os cogumelos e algo que até então Abigail não saberia identificar.

– Não tente me beijar novamente.

– Claro, você iria me acertar com um soco, não? – riu. – Não vou fazer nada, certo? Eu só quero conversar, como conversamos na biblioteca, enquanto você desenhava no teto. Gosto de ouvi-la falando.

– Isso é um pouco estranho, já que você parece mais falar a ouvir.

– Eu tenho vários segredos – Nikolai, por fim, pegou um cogumelo e mergulhou-o no molho alaranjado que havia colocado entre eles. – Meu irmão comenta sobre algumas garotas que ele acha boas. Digo, para casarem. Ele não conhece a maioria, mas sabe reconhecer pessoas boas de pessoas más. Pelo menos ele nunca errou antes. – Nikolai contou. – Você se sente atraída por ele, não é? Eu percebi.

Rubor aqueceu suas bochechas, e infelizmente era uma coisa que não conseguia evitar.

– Ele é bonito.

– Somos gêmeos, se sou bonito, ele também é, certo? – e então sorriu. – Você cortou o cabelo.

– Ah, percebeu? – tocou a madeixa menor.

– Você toca algum instrumento? – ele perguntou, quase desinteressado, enquanto se deitava de lado, um cotovelo apoiando o corpo e o outro braço pegando os cogumelos e mergulhando-os no molho.

– Piano. Uma paixão de criança – deu de ombros, mas a verdade era que amava piano. Sentia-se quase como uma pessoa diferente quando tocava. Começara a tocar piano quando os pais ainda estavam vivos e ela fazia parte de uma família perfeita.

– Há um piano aqui no castelo. No Salão da Rainha.

– Já ouvi falar deste salão. – concordou. O rei havia uma vez dito sobre isso com um dos criados, mas ela nunca soube onde ficava o lugar.

– É proibido, afinal era onde minha mãe ficava antes de morrer. Por isso chamam de Salão da Rainha Mariângela. – explicou ele. – Meu pai manda limparem todas as sextas-feiras. Ele amava muito ela. E não quer que nenhuma outra mulher entre lá. Minha mãe era uma pianista profissional.

– Deveria ser uma boa mulher.

– Não sei, eu não a conheci. – Nikolai brincou com sua taça de vinho. – Mas eu poderia levá-la lá.

– No Salão proibido?

– Não é empolgante? – ele sorriu, e então fechou o sorriso – Estou tentando te fazer se sentir especial.

– Você é péssimo nisso.

– Obrigado – suspirou, deitando-se, com a barriga para cima e as mãos debaixo da cabeça. Encarando fixamente o teto do quarto. – Por que todo mundo sempre quer o Mikhail? Até meu pai quer ele como herdeiro. Claro, eu não me importo, eu nem queria ter que me casar ainda, muito menos um reino para cuidar, mas... – ele bufou. – Isso é chato.

– Você diz sobre seu pai ou sobre as garotas?

– Metade delas quer sair com o Mikhail e a outra metade acha que eu sou só um delinqüente.

– Mas você é um delinqüente.

Nikolai se virou para ela.

– Se eu fosse um delinqüente, não estaria fazendo um piquenique no seu quarto. Você ainda não conheceu um delinqüente. Quando visitarmos meu primo amanhã, você entenderá o que quero dizer. – Nikolai sorriu, enquanto voltava a se deitar.

Havia algo melancólico nele. Quase uma tristeza. Suspirou, enquanto se aproximava, Nikolai era mesmo teimoso, mas também tinha um bom caráter, até onde vira. Deitou-se ao seu lado, tomando cuidado para não derrubar a taça de vinho.

– Você gosta de gatos?

– Gosto de qualquer tipo de animal. Lobos, raposas, cães de caça... – ele deu uma pausa. – E gatos. Mas prefiro lobos. Eles são inteligentes e fortes. Como eu.

– Ah, claro – revirou os olhos, enquanto encarava o teto branco. – E você toca algum instrumento?

– Violino e harpa.

– O quê? – levantou-se, encarando-o. – Violino? Harpa?

– Sim. E você se impressionaria se eu dissesse que Mikhail toca bateria e guitarra? – ele sorriu – As coisas não são como você imaginava, hein, rainha da frieza – ele tocou a ponta de seu nariz, e deu-lhe um tapa de leve.

– Não toque em uma garota se ela não der permissão.

– Desculpe, rainha da frieza.

O silêncio caiu lentamente, enquanto Nikolai encarava o teto, e ela encarava o teto. E ambos não pensavam e nada. Ele deslizou os dedos por seu pulso, até conseguir segurar sua mão. Os dedos tinham calos, entretanto eram quentes, e acariciavam seu dedão, deslizando para cima e para baixo, quase tímido. Revirou os olhos.

– O que eu disse?

Ele não respondeu, e não soltou sua mão. Nikolai era gentil, não podia negar, mas um pouco teimoso demais. Ele tinha alguns mistérios, coisas que ela não poderia dizer que ele faria à primeira vista. Quem pensaria que ele tocava violino e harpa? Ou que dividia seus cogumelos com Mikhail? Que gostava de fazer piqueniques ou que ele gostava de passar minutos inteiros em silêncio, encarando um teto branco e sem graça de um dos quartos de seu enorme castelo. Virou o rosto para observá-lo, e notou que ele é quem a observava.

– O que foi? – perguntou, voltando a encarar o teto.

– Você é bonita.

– Não precisa flertar comigo o tempo todo se me quiser por perto. Basta dizer que quer ser meu amigo – revirou os olhos, lembrando-se de Marie. Nikolai era como ela. Havia escolhido ser seu amigo, sem mesmo perguntar se ela queria. E talvez fosse isso que ainda a mantinha ali. De mãos dadas com aquele garoto.

– Mas eu gosto de flertar. – ele revidou, virando-se e afundando o rosto em seus cabelos. O cheiro de vinho impregnava o ar ao seu redor, e Abigail odiava isso. Mas deixou. Afinal ele não a estava beijando, nem mesmo tocando de verdade. Então poderia ser apenas uma reação ao contato com uma amizade nova. Talvez Nikolai se sentisse solitário, enquanto todas a atenções se voltavam para Mikhail, o filho preferido.

– Você é a ovelha negra da família – disse, compreendendo um pouco o mundo dele. No caso de sua família, ninguém era o ovelha negra, talvez Nathan se aproximasse mais disso, mas o irmão era por natureza infantil.

– E você é a rainha da frieza. – ele revidou, suspirando. O hálito de vinho passou por suas narinas e Abigail virou um pouco o rosto para fugir do cheiro. Não gostava de senti-lo, afinal a lembrava embriagues, o mesmo motivo pelo qual seu pai morreram naquele acidente. “Aposto beber todas que podia no bar, três anos depois que ela morreu. Por que ele fazia isso todos os dias em casa, mas nunca se satisfazia”. – Eu gosto de você, Abigail.

– Todo mundo gosta de mim, percebeu? É um talento. – sorriu, irônica, enquanto apertava de leve a mão dele. Nikolai também se sentia sozinho, responsável por seu irmão, e mesmo assim uma alma insignificante. Talvez ele só insistisse em ir lá para passar o tempo, longe de todo o resto. “Talvez me veja como um refúgio seguro”, pensou, assim como Nathan a via. E assim como todos os irmãos a viam. Ela sempre fora um refúgio para todos, mas ninguém nunca perguntou se precisava de algo para protegê-la. Abigail não era forte sozinha, por isso ergueu os muros e construiu a porta. A maldita porta entre ela e o mundo, e na qual todos insistiam em bater.

– Você parece sempre estar a um passo de se soltar, e então se recolhe. – ele ergueu a cabeça. – Na biblioteca senti a mesma coisa. Como se a qualquer instante você fosse rir ou chorar, e então simplesmente fechava-se e fingia que nada era capaz de te atingir.

– Aprendi algumas coisas sobre os sentimentos. Coisas que destruíram as vidas de outras pessoas, mas que não vou deixar que destrua a minha também.

– Que coisa?

– Amar é destruir. – encarou-o, perto demais. – É inútil. É sofrer, é se machucar. E eu detesto me machucar.

– Não existe alegria se você não ama. – ele respondeu – Você se sente feliz quando toca piano, porque ama tocar piano. É uma paixão. Por isso você gosta. Você ama gatos, por isso se sente feliz quando segura um ou quando brinca com eles. Você ama doces, por isso sempre forma essas duas covinhas quando está comendo um.

– E-eu não adoro doces. – ruborizou. Estava tentando evitar o açúcar desde que chegara ao castelo.

– Eu percebo coisas que a maioria das pessoas não percebe. O modo como olha meu irmão, o modo como olha um bolo de chocolate. Conseguiria dizer o que você pensa apenas encarando-a.

– Então diga o que estou pensando. – provocou, olhando fixamente para os olhos de Nikolai. A primeira coisa que lhe veio a mente realmente seria difícil dele adivinhar, era um pensamento quase reflexo, por causa da proximidade e do cheiro de vinho.

– Está pensando que, se eu for te beijar, vai me dar um soco.

– Certo, você ganhou – sorriu.

Ele de repente saltou e a envolveu, derrubando a taça de vinho no chão e pressionando-a contra o carpete. Ele era realmente pesado! Sufocava-a. Mas ao mesmo tempo lembrava aos abraços de Nathan, quando ele estava prestes a se derrubar em lágrimas e precisava de apoio psicológico.

– Viu, eu consegui te fazer rir de novo.

– Foi só um sorriso.

– Um sorriso no rosto da rainha da frieza. Eu sou incrível. – gabou-se, soltando-a. – Então, Abigail Valentine, somos oficialmente amigos?

– Se você parar de me abusar fisicamente...

– Não irei, isso eu prometo. – ele piscou, observando o vinho no carpete. – Deveríamos chamar as criadas.

– Sim, deveríamos. – sorriu, enquanto se levantava e começava a guardar os pratos na cesta de piquenique.


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Notas finais do capítulo

Então! Chegamos aos 150 reviws! (Na verdade já passou...), e eu como tradição, sempre faço uma "promoção" quando a fanfic atinge 100, 150 e 200 reviws. Bom, como eu não fiz a primeira promoção (Eu nem tinha visto que já tínhamos 100!), então farei a segunda um pouco melhor, para compensar.
Digamos que eu já tenho alguns nomes que irão morrer (sim, morrer), durante a fanfic (afinal estamos tratando de guerra), e é claro que isso daqui não é um romance onde as meninas vão ficar protegidas dentro do castelo. Eu quero sangue, quero desespero, quero gente esfolada correndo por córregos em busca de proteção...!
Enfim. A promoção é a seguinte: As CINCO primeiras leitoras (e leitor) que conseguirem acertar a pergunta poderão escolher um personagem para se salvar da chacina. Então atenção:
Como a Rainha Mariângela morreu?
Boa sorte ;)