Perdida em Crepúsculo escrita por Andy Sousa


Capítulo 1
Doce Vício.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! :}



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Trailer


"Pensei que deixaria você ir facilmente,
Mas não deixei isto acontecer,
Você se escondeu como um carrapato no verão.
Então você invade meu sono e confunde meus sonhos,
Minhas noites tornaram-se incomodas e sem sono.

Presa em você até o fim dos tempos,
Estou muito cansada para lutar contra sua rima.
Presa em você até o fim dos tempos,
Você me tem paralisada."

Stuck On You - Paramore

~*~

Como muitas das coisas que acontecem em minha vida, a leitura é geralmente algo que atraio inconscientemente; sem perceber eu sempre estou procurando algo novo para ler, mas, mais do que isso para reforçar minhas forças, porque quando você se entrega a um livro que te faz bem tudo ao redor parece simplesmente não importar. Isto, de certa forma te fortalece, como se sua própria vida fosse aquela que você segue com tanta avidez e a realidade apenas um sonho distante...

Foi em um de meus dias vagando pela internet que conheci Crepúsculo. Primeiro um ou dois pensamentos perdidos, depois comentários sobre os personagens e um mês depois lá estava eu na sala de cinema assistindo a tão esperada estreia do primeiro filme da saga. Depois disso foi só uma questão de tempo para que eu comprasse os livros e me tornasse mais uma fã, ou até mais que isso: para que eu também me encantasse por ele, o magnífico e inalcançável Edward Cullen.

— Liese, você já está pronta? Seu pai e eu estamos quase saindo...

— Ai, droga! - Sussurrei; ficara tão absorta escrevendo em meu diário que me esqueci completamente da escola. - Irei num minuto, mãe.

Pois é, esta sou eu, Aneliese Rodrigues. Uma adolescente como todas as outras, com uma vida geralmente sem muitos acontecimentos, mas com obrigações das quais não posso fugir e a escola é uma delas.

Arrumei-me o mais rapidamente que pude, mas ao final acabei atrasada como na maioria dos dias.

— Isto tem de parar Liese, já perdi a conta de quantas vezes você se atrasou para suas aulas! Se eu for chamada na escola por conta de sua irresponsabilidade, eu...

— Não vai ser chamada mãe, não se preocupe - a interrompi de me passar sermão enquanto ela e meu pai me levavam ao colégio; dei sorte que ele lhe perguntou alguma coisa sobre as contas da casa e ela logo encontrou outra pessoa para repreender.

Meus pais são tão comuns como quaisquer outros. Ambos trabalham em uma firma de advocacia, um negócio de família que também inclui meus tios, primos, avós... Foi fundado há gerações e é algo do qual eu não tenho a mínima vontade de fazer parte. Meu sonho é ser cantora, mas meus pais insistem em me dizer que eu não tenho chances de ter um futuro brilhante neste ramo - o que eles se referem, na verdade, é ao dinheiro. Assim como muitos brasileiros eles trabalham incansavelmente em busca do sucesso financeiro. Minha vida não é das mais luxuosas, mas sei que pareço mal agradecida ao não dar tanta importância ao que tenho. A verdade é que o dinheiro me satisfaz, é claro, mas não dessa maneira obsessiva. Não deposito nele minha felicidade porque duvido que possa realizar-me por completo.

Cheguei à escola no exato momento em que a inspetora trancava o portão.

— Outra vez atrasada? - Eu nunca fui com a cara dessa mulher e tenho a impressão de se tratar de um sentimento recíproco. - Sinto muito, mas desta vez a senhorita terá de ficar aqui embaixo e assinar uma advertência - disse com ar de autoridade que eu não suportava.

Velha antipática! Justo hoje que eu havia recebido aquele aviso 'amigável' de minha mãe...

Caminhei para o banquinho que ficava na parte mais afastada e me sentei enquanto aguardava meu castigo, eu já podia até imaginar o que minha mãe diria: 'isto é culpa desses malditos livros que seu pai lhe comprou, você parece não ter mais vida além deles, está deixando tudo de lado, blá, blá, blá...' É claro que ela se referiria a meu livro favorito e sua respectiva saga, mas obviamente eu não concordava com sua opinião exagerada.

Eu não estava deixando nada de lado, pensei comigo mesma, eu apenas tenho um passatempo diferente agora, dedico cada minuto livre à leitura e, mesmo que já tenha lido Crepúsculo milhares de vezes ainda é leitura, não é?

— Sim, é - afirmei enquanto abria a mochila e puxava o exemplar. Já que teria de ficar aqui durante uma hora inteira nada melhor do que passá-la ao lado de Bella e Edward.

"- Bella - seus dedos acompanharam de leve o formato de meus lábios - eu vou ficar com você... Isso não basta?

Eu sorri sob a ponta de seus dedos.

— Basta por enquanto.

Ele franziu o cenho diante da minha tenacidade. Ninguém ia se render esta noite. Ele expirou e o som era praticamente um grunhido.

Toquei seu rosto.

— Olhe - eu disse - eu o amo mais do que qualquer coisa no mundo. Isso não basta?

— Sim, basta - respondeu ele, sorrindo. - Basta para sempre.

E ele se inclinou para encostar os lábios frios mais uma vez em meu pescoço."

Fechei o livro e fiquei olhando para frente sem nada ver. Já estávamos no intervalo, eu terminara de ler aquela história pela milésima vez e mesmo assim não conseguia enjoar dela. Era um mundo completamente diferente para mim, eu me sentia íntima de cada uma daquelas pessoas, quase podia ouvir Edward sussurrando aquelas palavras com sua voz baixa e musical. Quando pensava nele era inevitável conter meus suspiros, Edward era a criatura mais maravilhosa que eu já pudera conceber em minha imaginação fértil.

— Alô, Terra chamando Liese.

Olhei para o lado um pouco sobressaltada, uma menina de cabelo castanho-claro me olhava com a cara sorridente; ela era bem diferente de mim, mas isto nunca nos impediu de sermos amigas.

Rafaela avistou o livro em meu colo e fez cara de tédio.

— De novo isto? - Perguntou enquanto se sentava ao meu lado. - Sério, Liese, eu não entendo sua fixação por este pedaço de papel aparentemente sem graça.

— Claro que não entende, porque nunca o leu, nem nunca lê nada, prefere qualquer outro programa a se sentar e relaxar lendo um bom livro. - Totalmente diferentes, como eu já havia dito.

Rafaela me passou o lanche que havia comprado pra mim (nós sempre revezávamos e estava na vez dela de pagar) e respirou fundo, claramente aborrecida.

— Sim, isto é verdade, mas você não vai começar mais um daqueles seus sermões de 'ler faz bem', não é? - Indagou enquanto comia seu pastel. Eu não me importei em lhe responder, aquele era um assunto que em geral causava certa tensão entre nós. Rafaela jamais entendera minhas razões e eu também não me ocupava muito em compreender as dela. - Olhe, vamos mudar de assunto, está bem? - Propôs, claramente querendo evitar o conflito tanto quanto eu.

— Está bem, e vamos falar sobre...?

Ela mastigou rapidamente e sorriu pra mim novamente, mas desta vez com aquele seu conhecido ar de namoradeira. Eu conhecia bem minha amiga e sabia de sua vida amorosa melhor do que ninguém, geralmente não me incomodava, exceto quando ela tentava me incluir em suas aventuras.

— O Henrique vai dar uma festa na casa dele hoje e nós duas vamos!

— Ai não Rafa, eu não vou, já me cansei de ser o terceiro elemento de suas relações, minha disponibilidade de servir de 'vela' está acabando.

Rafaela riu, mas sacudiu a cabeça em seguida, discordando.

— Deixe de ser boba, você sabe que sempre lhe chamo porque gosto de sua companhia e se meus ficantes não gostarem, bem, isto é problema deles. Você é minha melhor amiga, ué!

Nós duas rimos desta vez.

— De qualquer forma - continuou - hoje você não irá segurar a vela de ninguém, te garanto. Adivinha quem mais foi convidado para a festa?

Tentei fingir interesse para não magoá-la e a olhei com atenção, esperando.

— O Alex - Rafaela disse o nome com um largo sorriso.

Tudo bem, agora eu não estava mais fingindo, aquilo realmente chamou minha atenção. Alex era meu ex-namorado, havíamos terminado em uma época em que ele não se mostrava nada romântico - não sabia a diferença fundamental entre a namorada e uma partida de videogame. Eu ficara em segundo plano em sua vida, mas ultimamente o via com frequência e às vezes até recebia mensagens ou telefonemas dele, não podia negar que estivesse um pouco confusa e me perguntava se ele haveria mudado e se talvez agora entendesse o que devia ser prioridade para ele.

Sendo assim, talvez esta noite fosse boa para descobrir o que enfim ele queria de mim.

— Hmmm, quem sabe eu passo por lá para dar uma olhada.

Minha tentativa de soar indiferente não funcionou, Rafaela começou a rir sem ter problemas para desvendar meus pensamentos; é claro que sendo minha amiga ela já sabia de tudo.

— Eu sei muito bem o que você vai querer olhar...

Ri alto, embora tivesse ficado um pouco sem graça pela exatidão com que ela me lia, por sorte o sinal anunciando o final do intervalo soou e pude me recompor do assunto embaraçoso.

Cheguei em casa antes de meus pais, como de costume. Pela hora imaginei que eles iam almoçar fora. Eu não estava com fome, pensei por um momento e decidi dar um cochilo, passara quase a noite anterior inteira em claro lendo os últimos capítulos do livro.

Deitei em minha cama e fiquei quieta esperando o sono vir. Aos poucos minha mente começou a vagar e as coisas que ouvira mais cedo começavam a me incomodar um pouco. Eu não era nenhuma 'crepúsculomaníaca', ou era? As pessoas é que implicavam comigo, qual era o problema em se gostar tanto de algo? É como um namorado ou um animal de estimação, só que, em meu caso, a coisa de que eu não desgrudava era mais... Sem vida. Não, eu não conseguia assimilar isto, para mim tudo era real, eu me via na pele de Bella quando ela avistava Edward pela primeira vez, eu me emocionava com cada ato simplório de amor que surgia entre eles, eu me irritava com Rosalie - a loura perfeita - quando ela insistia em pegar no pé da protagonista e me via sonhando em ter Alice como amiga.

Mas tudo isso não significava que eu não amasse meus amigos, minha família, ou que desse menos atenção a eles... Ou será que significava?

Bem, eu não sabia a resposta, - concluí quando já estava quase adormecendo - mas sabia que nada poderia acontecer de extraordinário só porque eu vivia mais em Forks do que aqui em São Paulo.

Acordei com minha mãe me chacoalhando, impaciente.

— Aneliese, acorde! Está dormindo desde que chegou, não é? Com certeza nem almoçou, porque a cozinha está do mesmo jeito que eu deixei mais cedo. Vamos, levante-se e venha jantar, estamos lhe esperando.

Ela saiu do quarto e deixou a porta aberta para que eu a seguisse. Levantei enquanto me espreguiçava e dei uma espiada no relógio no criado-mudo, eram quase sete horas, desta vez eu dormira mesmo tempo demais, não me admirava que ela estivesse irritada. Apressei-me para ir à cozinha, dando graças a Deus por, ao menos, ser sexta-feira, o que significava que eu não ficaria atrasada com as tarefas escolares, poderia colocar tudo em dia no final de semana.

Meus pais já estavam acomodados em seus habituais lugares à mesa, entretanto estavam em silêncio, o que era estranho. Ocupei a cadeira vazia também sem nada dizer, mas não me sentindo tão confortável quanto gostaria.

Meu pai agradeceu por nosso alimento e em seguida fez sinal para que comêssemos. Como acabara de acordar eu quase não tinha apetite, mas imaginei que não melhoraria em nada o clima se recusasse a me alimentar, então apenas me esforcei para esvaziar meu prato. Os momentos em família como este serviam para nos unir, em geral principalmente no jantar aproveitávamos para conversar e compartilhar nossas experiências do dia, por isto eu estava achando suspeita a falta de palavras de hoje. Minha suspeita, porém, não durou muito.

— Liese - começou minha mãe com ar grave - recebi uma ligação da escola hoje. A diretora pessoalmente falou comigo e me disse que você foi advertida por chegar tarde. Uma advertência por escrito! Algo que ficará em sua ficha escolar para sempre.

Droga, DROGA, como eu me esquecera daquilo?

— Mãe, não é tão grave assim...

— Não é tão grave assim? Aneliese, empresas de nome conceituado solicitam seu histórico assim que mostra interesse em ingressar nelas, avaliam todo seu desempenho, porque acha que deixariam passar uma falta como essa? Se quiser ser advogada, você...

— Mas eu não quero! Eu não quero ser advogada, mãe!

— Mas é claro que não, você quer cantar! Me diga Liese, quem do alto escalão de pessoas que conhecemos fez fortuna com a música? Quantas famílias de nome respeitável chegaram ao topo cantando em esquinas ou bares de rua?

— Só porque você tem essa visão distorcida da vida de um artista não quer dizer que seja verdade, e mesmo que fosse, ao menos eu não passaria o restante de meus dias enfurnada em um escritório, resolvendo problemas de pessoas que mal conheço e aguentando desaforos de quem pensa ser melhor que eu!

— Aneliese Rodrigues!

— Parem as duas!

Meu pai que até agora apenas continuara sua refeição se manifestou. Minha mãe e eu mal havíamos tocado nossa comida e eu sabia que ele detestava desperdício. Era um homem bom, dizia sempre que tínhamos de ser gratos pelo que tínhamos, mas era casado com Lindy o que o impossibilitava de esquecer seu papel de alpinista social.

— É a hora do jantar e nenhuma de vocês parece ter se dado conta disto. É desrespeitoso, além do mais com a discussão jamais se chega a nada.

Minha mãe era sempre a pessoa a dar a última palavra em casa, era decidida e ninguém gostava de bater de frente com ela, porém mesmo com dificuldade até ela sabia reconhecer quando passava dos limites como agora.

— Você está certo querido, nos desculpe.

— Aneliese.

— Sim pai?

— Sabe que não deve se atrasar para suas aulas, sua mãe e eu trabalhamos muito 'enfurnados em um escritório, resolvendo problemas de pessoas que mal conhecemos e aturando desaforos' porque queremos lhe dar o melhor e queremos que você se torne uma pessoa de bem. O valor que investimos em seus estudos deve ser valorizado por você ou todo nosso esforço estará sendo em vão.

— Sei disso, me desculpe, isso não vai se repetir - prometi, de cabeça baixa.

— Sei que irá se esforçar filha, mas entenda que este seu comportamento já vem se repetindo há vários dias, sua mãe e eu conversamos, nossas contas não podem se exceder e se algo assim acontecer novamente você pode ter de repor aulas o que significará um aumento considerável na mensalidade do colégio. Por isto, a partir de hoje você está de castigo. Sem televisão, sem computador. Irá se dedicar mais aos estudos e só estará livre quando notarmos verdadeiro interesse de sua parte em tornar a ser uma aluna exemplar.

Respirei fundo, contrafeita, mas achei melhor não discutir, a lógica deles era incontestável, sabia que aquilo era para meu próprio bem, entendia isso.

— Faz anos que não a castigamos, você mal nos dava razão para tal e estávamos muito satisfeitos com seu comportamento, contudo, mesmo que a mudança não seja drástica, seu desempenho caiu. E sabemos que você consegue ser muito melhor que isso Aneliese. - Completou.

Franzi o cenho enquanto refletia. Eu havia justamente pensado sobre isso mais cedo e agora via que minha preocupação tinha fundamento, eu realmente me distanciara da realidade, até mesmo de meus estudos e nunca fora necessário que meus pais me cobrassem, eu gostava de ser uma ótima aluna, estava sempre entre as melhores da classe. Minha fixação repentina por Crepúsculo me mudara, mas concluí que era natural; eu não era nem de longe a única adolescente a ficar deslumbrada por aquelas ostentosas produções hollywoodianas, eu estava perfeitamente dentro dos padrões e agora só precisava me recompor. Seria fácil, uma vez que eu diagnosticara o problema: voltaria a dar cem por cento de mim ao aprendizado e ainda me sobraria tempo livre para encaixar minhas leituras preferidas. Era só questão de estipular uma rotina, logo eu estaria por merecimento livre do castigo.

Minha mãe retomara sua refeição e eu logo a imitei, minha comida ficara fria, mas por conta da longa pausa eu acabara ficando com fome e terminei o jantar rapidamente, me sentindo satisfeita. Meus pais agora conversavam sobre assuntos de trabalho e eu pouco me interessei, pedi licença e comecei a convergir de volta para meu quarto disposta a tomar banho e terminar os deveres escolares o quanto antes, eu queria de verdade mostrar que iria melhorar.

— Liese - chamou minha mãe antes que eu alcançasse o corredor, virei-me e a olhei - por favor, me traga a coleção de livros que seu pai lhe deu ano passado. Eu continuei olhando para ela, agora me sentindo momentaneamente confusa. Minha mãe pareceu ler a confusão em meus olhos - Liese, quero a coleção de livros que seu pai lhe deu, vá buscar para mim, traga todos.

Eu não estava entendendo o que ela queria com aquilo, mas obedeci. Havia tempos que minha mãe se queixava de meus livros, mas quando estava de bom humor brincava dizendo que um dia iria lê-los e descobrir o que havia de tão interessante neles. Depois da conversa que acontecera há pouco imaginei que ela também estivesse disposta a fazer concessões e fiquei feliz de imaginar que ela pudesse estar querendo conhecer aquela parte da minha vida. Talvez agora ela entendesse e não me julgasse tanto.

Encontrei os volumes com facilidade, Crepúsculo, meu favorito era o único que estava separado, ainda em minha mochila. Era uma coleção pesada e tive de segurá-los com as duas mãos, havia um orgulho implícito sempre que os segurava, eu gostava tanto deles!

Retornei e depositei-os na mesa perto do lugar que Lindy estava, ela agora estava de pé ajudando meu pai com a louça e se virou ansiosa, procurando até que seu olhar recaiu sobre a pequena pilha de capas escuras à sua frente.

— Estão todos aqui? - Eu apenas assenti em resposta. - São quatro no total?

— Se não contar com 'A breve segunda vida de Bree Tanner' que eu pedi, mas vocês se recusaram a me dar, sim são quatro. - Ela fez uma rápida cara de impaciência e eu me vi debilmente pensando que se Stephenie Meyer decidisse mesmo lançar Midnight Sun eu teria de arranjar um jeito de eu mesma trabalhar para comprá-lo.

— Ótimo, levarei-os amanhã mesmo, Julio - falou para meu pai enquanto pegava os exemplares da mesa e os levava para seu quarto. Eu olhei e pela primeira vez a suspeita começou a surgir em minha mente.

Eu estava deixando passar algo.

Aproximei-me de meu pai que terminava de guardar a louça e tentei ignorar a sensação de que ele evitava olhar pra mim.

— Pai, aonde mamãe vai levar meus livros? O que ela quis dizer com aquilo?

— Quis dizer que finalmente vou poder me livrar deles sem ter que confrontar a inquisição espanhola depois. Graças aos céus seu pai enfim notou o mal que aquilo estava lhe causando e concordou em doá-los para a obra de caridade da firma. Isto ainda foi uma concessão de minha parte, por mim iriam diretamente para o lixo! - Ela explicou com indiferença assim que voltou ao nosso encontro.

— Imaginei que você fosse ficar triste ao vê-los sendo descartados com tanto descaso, por isso sugeri a caridade, você sabe que lá tudo é reaproveitado e outras pessoas terão maior acesso à leitura. Você sempre falou que a cultura se expande através da leitura, sempre apoiou a causa, não é querida? - Interpelou meu pai.

Eu estava em estado de choque, demorei alguns segundos tentando encontrar minha voz.

— Vocês vão doar meus livros? - Era uma pergunta idiota, minha mãe já deixara clara sua intenção, mas eu simplesmente não conseguia acreditar. E eu que pensei que ela estivesse disposta a mudar. Me senti uma imbecil por ter sequer cogitado a ideia, era de Lindy Rodrigues que eu estava falando, a pessoa mais teimosa do universo! Eu estava muito nervosa com ela.

— Sim, doação Liese. No fundo também acho que seja o melhor, seu pai não pagou barato por eles, seria desperdício simplesmente eliminá-los.

— Não pode fazer isso - falei em um sussurro.

Ela me olhou com as sobrancelhas erguidas e a boca numa linha fina. Como ela ainda podia querer se zangar comigo? Era eu quem estava sendo injustiçada!

— Você já me entregou os livros, eu já os coloquei em minha bolsa. Eu vou fazer isso. Além do mais já avisei seu tio Humberto, sabe que é ele quem toma conta da obra e ficou muito entusiasmado com nossa ajuda, de forma alguma eu faltaria com minha palavra. Não pode ser tão egoísta Aneliese, estas pessoas precisam...

— Não, não precisam! EU PRECISO! Eu preciso deles. A senhora não pode tirá-los de mim assim. - Eu agora me segurava para não romper em lágrimas, quando finalmente assimilei o que estava acontecendo não pude conter meu desespero.

— Aneliese, filha, acalme-se. São apenas livros, objetos. Está vendo sua reação? Isto está lhe fazendo mal. - Meu pai colocou as mãos em meus ombros na tentativa de aplacar minha raiva, mas no fim não foi preciso, suas palavras novamente surtiram o efeito desejado, eu o fitei por entre os olhos marejados e não tive mais o que dizer, ou como discutir. Ele estava novamente certo.

Eu me exaltara, quando me dei conta da dimensão da minha reação fiquei aturdida, eu não era assim tão emotiva e impaciente, eu jamais dera tanta importância a algo como dava agora para aquelas simples folhas de papel. O que estava acontecendo comigo?

O toque baixo e distante de meu celular me tirou de meus devaneios, pensei em não atendê-lo, mas percebi que precisava de uma desculpa para sair dali, precisava ficar um pouco sozinha. Pude sentir o olhar de meus pais em minhas costas quando me virei e saí, andei rapidamente e consegui alcançar o aparelho ao final do segundo toque, atendi sem me ocupar em checar o número.

— Alô - minha voz saiu um pouco falhada, dei um pigarro disfarçadamente a fim de melhorá-la.

— Liese, é a Rafaela. Já são mais de sete horas, você não vem pra festa?

Caramba, eu andava mesmo distraída, me esquecera completamente daquilo.

— Rafa, não posso, me desculpe. Meus pais acabaram de me colocar de castigo.

— Nossa, castigo?! Mas porquê?

— Longa história - suspirei.

— Ah, mas que pena, justo hoje! Poxa, queria que você viesse.— Ela fez uma pausa e quando continuou sua voz estava baixa, tive de me concentrar para ouvir - o Alex já chegou e não para de me perguntar se você vem, acho que ele tem algo para lhe dizer.

Minha boca se abriu em surpresa: Alex queria falar comigo, estava me procurando... Tinha de admitir que no início da ligação não estava tão interessada, mas as palavras de Rafaela me despertaram uma vontade enorme de ir àquela bendita festa!

Podia ouvir o ruído contínuo da música tocando ao fundo, o que só me deixava mais ansiosa, sem ter muitas escolhas pensei em lhe pedir que o mandasse me ligar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa ela anunciou que precisava desligar. Fiquei parada, o celular na mão e uma torrente de pensamentos em minha cabeça. Meu dia se passara de uma forma perfeitamente normal, mas a noite estava entrando para a história!

— Liese.

Comecei a convergir de volta para a cozinha disposta a ver o que minha mãe queria comigo desta vez e ao notar que continuava com o aparelho à mão achei melhor guardá-lo em meu bolso e mantê-lo em segurança longe de seu olhar confiscador.

— Sim?

— Era a Rafaela ao telefone, não era? O que ela queria?

— Nada de mais - dei de ombros - só me perguntar se eu ia a uma festa, mas já desmarquei.

Ela me olhou, analisando. Estava ocupada com seu tablet, com certeza resolvendo pendências do trabalho, mas algo que eu disse a fez se esquecer disto por um instante. Eu não entendia o que poderia ter feito de errado desta vez, mas tentei manter a expressão serena - comecei a desejar não ter trazido meu celular comigo, se minha mãe quisesse me tomar mais isto hoje nós iríamos lutar!

Meu pai que estivera fora até agora reapareceu lançando a nós um olhar desconfiado, tentando captar outro possível início de briga.

— Julio, Liese foi convidada para uma festa, você a leva?

Não pude dizer qual de nossos rostos estava mais surpreso com a declaração, mas imaginei que eu ganhasse de meu pai.

— Uma festa? Hoje? Tem certeza que é sensato deixá-la sair à essa hora Lindy?

Meu olhar passou em disparada de um rosto para outro, mas minha mãe já voltara a se concentrar na tela à sua frente.

— Sim, está tudo bem, ela já sabe se cuidar.

Eu não tinha uma única palavra cabível ao momento, minha mãe jamais aprovaria algo assim, ainda mais dentro de um castigo meu. Mas que diabos estava acontecendo esta noite?

— Você se distanciou de tudo, até mesmo de seus amigos, antigamente discutiria até o fim para ganhar o direito de sair, sinto falta até mesmo de sua teimosia - ela falou de repente e soltou um riso desanimado. Quando voltou a me encarar sua voz demonstrava carinho - imaginava que você fosse reagir de forma muito pior, aqueles livros estavam fazendo alguma coisa com você. Fico feliz e aliviada que tenha compreendido que é bom se afastar deles e acho que merece uma recompensa por isto. Mas apenas hoje, você continua de castigo a partir de amanhã - advertiu ao final.

Eu me sentia estranha, apenas assenti calada. A coisa que tanto recriminávamos havia por um bom tempo sido parte crucial de minha vida. Eu ainda não sabia como me sentia em relação a tudo, mas não estava disposta a discutir, a atitude de minha mãe fora rara, eu sabia disso. Em outra ocasião eu talvez não me importasse tanto, mas hoje eu fazia questão de comparecer àquela festa.

— Não irá voltar muito tarde Liese - emendou meu pai. A ideia de ver sua filha na rua à noite era algo que ele nunca aceitava muito bem, mas uma briga com minha mãe por divergência de opinião era algo que ele aceitava menos ainda.


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Notas finais do capítulo

Aí está! :}
Espero que gostem e que deixem reviews. Volto semana que vem, beijos!