a beleza da falta de palavras escrita por Salow


Capítulo 1
Leia meus olhos e eu ouço teu corpo


Notas iniciais do capítulo

Gente, eu adorei escrever essa história! Meu planejamento foi bem diferente, mas tive que lidar com prazos, escola, sono, então o resultado final é esse. Fiz algumas "homenagens", espero que todas fiquem claras ahuahua Não tive tempo de conseguir um beta! Então podem esperar erros grotescos porque essa é minha forma natural AHUAHHA Enjoy!~



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1

— Acho que depois quando levarmos esse carregamento para o chefe, vou poder me mudar para o 20 — Ronald disse, cutucando o homem carrancudo que sentava perto de si. — Ouvi dizer que eles sabem cuidar das necessidades de um homem lá.

Ronald não era bem um homem, mas a força da expressão para se referir aos famosos cuidados sexuais do Sistema 20 o fazia escolher as palavras de modo não muito verossímil. Ronald era um lagarto, vinha do Sistema 15, onde quase todos os planetas possuíam animais humanoides como forma de vida. Os repteis eram os mais comuns. Ronald usava um traje preto que às vezes se confundia com suas escamas escuras, hora manchadas de um verde musgo. Gabava-se de estar perto de sair dali, de deixar aquela nave e partir para uma vida de luxo. Os outros seres ao redor apenas escutavam calados, ainda estavam longe de deixar aquela vida. Exceto um.

Kari era um humano do sexo masculino e gostaria de poder arrancar a língua áspera do maldito Ronald. Aquela também era a última pilhagem que faria. Ele não tinha problemas em chamar o ato pelo nome certo. Aquilo que faziam era crime, roubo. Todos que ali estavam sabiam, mas diziam para eles mesmos ou para algum ser que se atraíssem em qualquer bar que “entregavam carregamentos”. Kari não se incomodava de ser chamado de pirata, mas agradecia às estrelas por não precisar mais continuar com aquilo. Três anos foi um bom tempo.

A nave em que estavam não era muito espaçosa. Por ser menor que o normal, conseguia viajar mais rápido que as de carga, os alvos. Os piratas sentavam-se um ao lado do outro, eram doze no total, e quando sentiam um tranco brusco, sabiam que era hora de agir. Levantavam-se e enquanto uma entrada era perfurada na transportadora, recolhiam suas armas e munições. Um portal abria-se aos pés dos piratas e, um por um, eles desciam. Kari e Ronald eram sempre os primeiros, pois eram rápidos no gatilho e esquivavam-se como ninguém.

Foi o que aconteceu, na mesma rotina. Um, dois, três tiros certeiros. Kari e Ronald avançaram após fazer um sinal para os colegas. A nave que invadiram era diferente das que conheciam, era branca, lisa e com bem mais corredores do que era necessário. O sangue dos guardas — quantos foram até agora? — manchava as paredes claras, pintando a visão do homem e do lagarto de vermelho.

O alarme da nave havia sido acionado, mas Kari só percebeu quando parou de atirar. Ele ouvia passos vindos de algum lugar, mas não tinha certeza de onde. Quão grande era aquela nave? Apertou um botão em seu capacete e o visor sumiu.

— Eu vou por aqui. — Kari apontou para sua direita, onde uma passagem se estreitava. — Você segue o corredor principal. Diz ao Corri para mandar o T e a Lewis na minha direção. Se não acharmos a carga ou se aparecem mais soldados, batemos em retirada.

Ronald subiu o próprio visor.

— Retirada meu caralho. Confira se estão vindos mais soldados daí e volte assim que puder, vamos seguir até encontrar o painel de controle da nave e seguir com ela. Essas bichinhas não podem com a gente. — Fez um gesto com a mão na direção dos soldados mortos. — E se você foder com a minha missão, eu faço questão de te fazer de bolsa e enfiar cada moeda que eu ganhar no seu cu.

E foi embora.

Kari simplesmente levantou o dedo do meio.

Podia estar puto com aquela lagartixa pervertida, mas de qualquer forma, não poderia ficar parado. Seguiu pelo corredor secundário, o som de passos ao seu lado. Andava devagar, atento. Ativou o seu comunicador e podia ouvir Ronald arfando, parecia estar tendo um pouco de problemas.

Parou de frente a três portas. Todas possuíam um identificador magnético. Cutucou-as um pouco com a arma, pareciam realmente seguras. Deu um passo para trás quando as três se abriram ao mesmo tempo. Na da direita, soldados corriam; na do meio, mais soldados corriam; e na da esquerda, um homem o encarava, estático. Não precisou de mais de um segundo para se decidir. Empurrou o humano com o cotovelo e atravessou a porta, apertando todos os botões em sua lateral até que ela fechou.

Kari parou de frente para o estranho, apontando sua arma para o meio da sua cabeça.

— Quem é você? — Sua voz era dura, ríspida.

— E-e-eu... — o estranho gaguejava, alternando os olhares para o rosto do pirata e para a arma. — Eu sou o filho da presidente, por favor, não me mate.

O dito filho da presidente apertou os olhos e ergueu os braços a frente de si, como se esperasse algo em sua direção. Kari abaixou a arma.

— Que? — Foi o que conseguiu botar pra fora.

— Que o que? — O estranho abriu os olhos e Kari notou que eles eram levemente puxados. Coçou a cabeça. Os cabelos roxos eram curtos. — Isso não é um atentado?

— Não, a gente só estava roubando.

— Ah.

— Bem, você é um pouco estúpido. — Kari levantou a arma novamente. — Agora isso é um sequestro.

— Essa não era a despedida de solteiro que eu tinha em mente. — Foi a última coisa que disseram antes de tudo começar a tremer.

2

O rádio comunicador no ouvido de Kari chiava sem sinal. Sua cabeça doía e sua perna direita formigava. Estava no chão, deitado, próximo a uma privada. De pé, um vulto andava de um lado para o outro.

— Ah, você acordou. — disse o estranho quando ouviu Kari se sentar.

— Quanto tempo eu fiquei apagado?

— Alguns minutos. — Ele parecia estranhamente calmo como se aquilo acontecesse todos os dias. —Estamos presos aqui. Acho que fizeram um pouso de emergência.

Kari olhou por todo lado a procura de sua arma. O banheiro parecia mais uma zona de guerra. Tateou os bolsos e só encontrou uma adaga. Olhou para o filho da presidente, Kari era mais alto que ele, provavelmente bem mais largo — o cara usava umas roupas largas ridículas — e obviamente, mais forte. Só podia esperar que ele cooperasse, já se estressara o bastante para uma última missão.

Levantou-se, ainda meio tonto.

— Olha, eu não vou te machucar muito se você não resistir.

— Machucar muito? Mas como... — O estranho não conseguiu completar a frase. Foi jogado de cara contra a parede, seus braços forçados contra suas costas. Seus pulsos estavam colados e firmemente seguros pela mão do pirata. Seu rosto prensado contra a parede não o permitia falar muito bem. — Berfeito.

— Sem falar muito, ok? Só me mostre a saída. — Quanto mais rápido tirasse aquela mina de ouro de perto daqueles mercenários, melhor.

Saíram do banheiro, os corredores estavam vazios, silenciosos — exceto por alguns cadáveres. O alarme havia parado e Kari tomava cuidado para fazer o menor barulho possível. Não era de muita serventia, já que o outro não ajudava muito. Enfim, encontraram a saída.

Fora da nave, neve caía. O chão de gelo seguia até onde a vista conseguia ir. Kari tentava contatar alguém freneticamente, mas seu comunicador não tinha sinal algum. Ou alguém os ajudava ou aquele cenário os mataria de vez — onde estavam os outros, afinal?

— Seu filho de uma puta! Onde você estava? — Ronald pulou para fora da nave. — Eu que pousei essa merda ou a polícia ia comer a gente vivo. Ninguém lá dentro sabia onde você estava. — O olhar do lagarto caiu sobre o cativo. — Por que você ‘ta com o filho da presidente do 19 contigo?

— Ele não é filho da presidente. — Foi a primeira coisa que Kari conseguiu pensar. Não parecia tão estúpido na sua cabeça.

— Eu já vi o velhote e a família dele, não sou um isoladinho escroto que nem você. — Ronald se aproximava. — Você ia levar ele sozinho, ‘né? Ia conseguir o resgate sozinho e deixar a gente na merda.

O lagarto cutucou o peito de Kari com força.

— Você não vai querer fazer isso.

— Ah, vou.

Ronald tentou socá-lo, mas Kari desviou. O filho da presidente se afastou o mais rápido que pode, já que — claro — o pirata não continuaria o segurando enquanto lutava contra um réptil gigante.

Ambos se moviam depressa, mas o lagarto parecia estar criando uma vantagem — maldita batida na cabeça. O homem de cabelos roxos os assistia um tanto bobo, parado. Socavam-se, chutavam-se e faziam tanto barulho que os piratas que ainda estavam dentro da nave logo os encontrariam.

— Anh... pirata negro?! — Ele se referia a Kari, que de repente se silenciara, junto de Ronald. — Ah, você ta aí.

— É Kari. Vamos embora. — O pirata aproximou-se do outro, mancando de leve. Guardou a adaga ensangüentada de volta no bolso. — E eu não vou te carregar por aqui. Se você fugir, vai morrer sozinho ou encontrar mais iguais a esse cara. Se ficar comigo, tem alguma chance de sobreviver e voltar pro seu pai. — Sua voz era impaciente. — Qual o seu nome mesmo?

— Axon. Axon Stannard — proferiu, cheio de pompa. — Daqui a pouco isso vai virar uma nevasca, então eu provavelmente vou morrer congelado. Se você não der um jeito, acho que pode dizer adeus a sua recompensa. — Exigiu, o que deixou Kari com vontade de socá-lo também. — E que planeta é esse? Esse clima não é nada conveniente.

O preço da sua liberdade só subia.

3

As roupas de Ronald deram para o gasto. Protegiam do frio e se adaptavam a novas estruturas físicas muito facilmente. Só aquele rasgo nas costelas sujo de vermelho que o incomodara, mas era isso ou desistir.

Kari não fazia a menor idéia do caminho a se seguir, mas mantinha seu visor fechado para que o outro não visse sua expressão insegura. A luz diminuía aos poucos. Axon simplesmente achou que ele estava com frio, afinal, a neve caia cada vez mais forte e suas orelhas queimavam um pouco. Quando suas pernas começaram a cansar, falou:

— Então, qual o plano? Estamos indo encontrar mais amigos piratas para te ajudar? — A neve estava ficando mais alta e ele fazia força para empurrá-la com os pés. — Acho que nem posso falar amigos já que cada criatura que você encontrar vai querer passar por cima de ti pra ganhar o meu resgate. Sempre imaginei piratas como livres, mas agora não me parece uma boa profissão...

Kari não escutou o que o filho da presidente continuou a falar, estava atento ao leve ronco que ouvia. Devia estar a alguns metros dele. Agarrou Axon pelo braço e correu.

O barulho vinha de um pequeno robô amarelo. Ele parou defronte aos homens e uma câmera no topo de sua lataria foi acionada junto da lanterna.

— Quem são vocês? — A voz vinha do robô.

— Nós nos perdemos, nossa nave está com problemas, pode nos ajudar? — Axon falou antes que o outro estragasse aquilo. Ele poderia estar ajudando um criminoso, mas um mísero resgate não faria diferença para sua mãe.

— Vocês deviam estar indo para o 20, certo? — O robô começou a andar e os dois o seguiram. — Uma nevasca está vindo, não posso conferir o que há com a nave, mas posso abrigar vocês, minha base fica bem aqui. Ainda bem que o Ferreroni estava fazendo a ronda.

— Ferreroni? — perguntou Kari.

— É, meu robozinho. Ele faz algumas voltas de reconhecimento para mim, acho que foi o motor dele que divulgou sua localização, ‘né? — Pararam. — Olha, acho que chegamos.

A base era um cubo de concreto gigante, com poucas janelas e várias antenas. A única entrada visível era uma porta de metal que deslizou para o lado e uma humana acenou para que eles entrassem. Ferreroni foi o último.

— Não encontrei muita coisa, a empresa só deixa aqui o necessário para uma pessoa. — A mulher entregou dois cobertores, um para cada. Encarou Axon. — Nossa, você está...

— Não, não, eu me arranhei na aterrissagem, mas cuidamos disso lá. — Ele se enrolou com a manta, cobrindo o rasgo. — Obrigado por nos receber aqui, eu sou o Axon, esse é o Kari. Tem algo que eu possa usar para chamar alguém?

— Pode me chamar de Eva. — Ela sorriu antes de desviar o olhar para a sala em que estavam, cheia de aparelhos eletrônicos. — Infelizmente, a nevasca acaba interferindo nos sinais que recebo, mas a empresa vai chegar com suprimentos em dois dias, a nave pode levar vocês para o planeta mais próximo.

— Seria ótimo, obrigado! — Axon sorriu. — Você...

— Esse planeta não é habitado? — Kari falou, cortando o outro.

Eva encarou o pirata, levemente desconcertada. Foi a primeira frase que ouviu da boca do homem e não parecia muito amigável, além dos braços cruzados que ele ostentava enquanto esgueirava rapidamente o local com os olhos.

— Não, ele não tem lá muitos atrativos, estou só fazendo algumas pesquisas no solo. O planeta ter atmosfera facilita muito, mas esse clima não dá muita trégua. — Ela riu nervosa, falando mais consigo do que com os outros. Mexia a boca, mas não se ouvia nenhum som.

Axon pôs a mão no ombro da mulher, com um pouco de suporte. Kari revirou os olhos. Ferreroni fez um beep. Aquela era só a primeira noite.

4

Kari acordou com dores por todo o corpo. Após tomar um banho no cubículo que Eva chamou de banheiro, apareceu nos aposentos que ele deveria passar a noite. Axon já se encontrava adormecido em cima do colchão, mas ele não se importou de improvisar um travesseiro com o cobertor e se deitar no chão. Preferia estar perto de seu cativo, afinal, se ele tentasse qualquer coisa à noite, ele saberia.

Pela manhã, Eva os chamou para comer um pedaço seco de carne com pão. Axon parecia estranhamente à vontade, o que deixou o pirata intrigado, já que o filho de alguém em um cargo tão alto deveria estar acostumado à mordomia e luxo. Observou-o tomando um gole do leite.

— O que? — Olhou de volta, passando a mão por cima dos lábios.

— Nada.

— Já consegui chamar uma nave para nos tirar daqui, ela deve chegar amanhã. — Não parecia imaginar ou se preocupar com o que aconteceria quando ela chegasse. O pirata provavelmente teria de conseguir uma arma ou seria apenas mais um passageiro.

Kari se levantou e passou a se alongar. Seus músculos relaxavam um pouco, mas ainda reclamavam da noitada. Eva precisava tirar algumas fotos e os convidara para ir junto. Não aguentaria passar o dia inteiro naquele laboratório, cheio de beeps, eletrônicos e nada de interessante.

Eva seguia como se conhecesse cada floco de neve como a palma da mão. Para o pirata, eles pareciam andar em círculos. Seus pés afundavam no branco cada vez mais.

Axon aumentou o passo, deixando o outro para trás. Falou alguma coisa para a mulher e ela riu. Kari não conseguia escutar o que conversavam, mas via que ela apontava para alguns lugares e gesticulava bastante, devia estar explicando algo. De algum modo, ele esperava que fosse mais interessante, mas se sentia entediado.

Subiram pelo gelo íngreme até um ponto mais alto. Eva se esqueceu dos homens e clicava com sua máquina em todos os ângulos que podia. A paisagem alva se estendia até se perder no horizonte, uma mesmice congelada e bela.

— É bem legal aqui em cima, ‘né?

Kari apenas assentiu, sem encarar o outro. O que aconteceu a seguir foi bem mais rápido do que o pensamento do pirata. Axon estava rindo, deu alguns passos em direção ao cume e abriu os braços, sentia o vento correr ao redor de si e era como se voasse. Então a neve debaixo de seus pés simplesmente sumiu. Kari só o registrou caindo, na sua frente, e se jogou junto, agarrando-o e rolando até a base.

— Você ‘ta bem? — o pirata perguntou. Relaxou os músculos que nem notou estarem tensos quando o outro soltou a respiração num suspiro. O peito dele subia e descia contra o seu.

— Desculpe. — Axon disse quando notou seus braços em volta do pescoço do outro. As mãos que estavam em sua cintura se afastaram quando ele se afastou do pirata. Levantaram-se e bateram a neve das roupas. — Ah, e obrigado! Eu provavelmente teria quebrado alguma coisa se você não tivesse feito isso.

Kari assentiu, encarando-o.

Eva apareceu escorregando no gelo, perguntou mais de uma vez se estavam bem e inteiros. Kari queria voltar para o laboratório e, por sorte, a mulher comentou que já havia conseguido ótimas fotos e para evitar outros problemas, eles deveriam retornar.

Foram os três lado a lado.

5

— Você ‘ta acordado? — Kari ouviu Axon dizer, mas não se virou. Parte porque o chão não era o lugar mais propício para ficar rolando, parte porque não queria conversar. Não saberia o que dizer. — Eu só queria agradecer por hoje mais cedo.

— Você sabe, não posso te entregar machucado. — o pirata disse, soltando um risinho em seguida. Sentiu-se um pouco bobo.

Axon deitou-se no colchão, fitando o teto, mas atento às costas do outro viradas para si. Esperava algo diferente vindo do pirata. Talvez pela situação parecer tão semelhante para ambos os lados que ele nem considerasse aquilo um sequestro. Quem sabe poderiam ser amigos. Um amigo faria aquilo por outro, não?

— Por que você faz isso? Digo, viver essa vida. Roubar... coisas. — ele gesticulava sem parecer encontrar as palavras certas.

Kari virou-se, olhando para ele.

— Não acho que você entenderia. — Tentou manter-se sério dessa vez. Não queria menosprezar o outro, mas era uma situação incomum e extremamente distante da realidade de alguém da alta sociedade.

— Eu não me importo de tentar. — Deitou-se de lado, repousando a cabeça em cima da própria mão. Os olhos de Axon estreitavam-se ainda mais quando sorria, mesmo que de leve.

Kari não segurou o olhar do outro. Virou-se para o teto e engoliu em seco.

— Eu... Eu acho que ninguém vive assim porque quer. Foram poucos os seres que encontrei nessa profissão que tinham alternativa. Lembro de uma humana que foi expulsa de casa porque queria fazer uma cirurgia de mudança de raça. Ela lutava muito bem — Ele socava o ar enquanto falava para ilustrar. —, usava facas como ninguém...

Axon pigarreou e o outro o encarou, sobrancelhas erguidas.

— Você ‘ta fugindo do assunto.

— Ok, ‘ta. — Kari pensou em silêncio por alguns segundos. — Não posso dizer exatamente que eu não tinha opção, mas essa era a mais rápida. Meus pais viviam no 17 desde que nasceram e quando eu tinha uns 15 anos, minha mãe perdeu o emprego. A gente talvez precisasse ir para a cidade baixa e ela simplesmente surtou com isso. — Ele tentava falar como se não importasse, mas para Axon, soava como se ele quisesse se proteger.

— Ela te obrigou a trabalhar nisso? — exclamou realmente surpreso. — Sua própria mãe?

— Não, não — Kari riu nervoso. — Ela continuou vivendo do mesmo modo, então foram se endividando, endividando... Meu pai acabou tendo que pedir empréstimos. Acabou que nem sempre eram pessoas de confiança, sabe?

— Sim. — Axon assentiu. O pirata não soube quando começou a falar tanto e quando decidiu que sua história poderia ser compartilhada com alguém que ele sequestrara.

— Acontece que quando começaram a cobrar e meus pais não tinham dinheiro, minha mãe não aguentou, destruiu a casa toda e sumiu. Nunca mais a encontrei. — Kari deu de ombros. — Consegui um acordo com os caras e eles me conseguiram esse emprego. Consigo mandar algo para o meu pai e pagar o que ele deve por essas missões. O carregamento das naves transportadoras que vão para o 20 é bem valioso.

Axon teve vontade de brincar e dizer que poderia usar aquela informação para ajudar a polícia, mas o pirata falara mais nos últimos minutos que nos últimos dois dias.

— Você acha que o meu resgate vai conseguir pagar o que falta? — Axon voltou a essa questão, esperando a reação do outro.

— Acho. Na verdade, vai sobrar bastante e vou conseguir tirar o meu pai da espelunca onde ele está. — O peito do pirata se encheu de esperança ao falar isso. Ele fechou os olhos e mexeu a cabeça, esticando o pescoço. Se não olhasse para Axon, poderia fingir que não queria pedir desculpas.

Kari já estava sonolento.

— Você pode vir para cá, se quiser.

— O que?

— Para cá.

— “Cá” onde?

— Aqui. — E apontou para o colchão.

Axon podia sentir os olhos do outro em cima de si e controlou a vontade de rir. Soltou um ‘ai’ quando sentiu o cotovelo de Kari bater de leve em seu estômago. Os dois ficaram de lado, de frente um para o outro.

— É... bem apertado. — o pirata disse, tentando manter seus braços retos e junto ao próprio corpo.

— É sim. — Axon concordou, se esticando espaçoso. Seu joelho encostou a coxa do outro e ele pode jura que o sentiu tremer. — Boa noite.

Fechou os olhos. Foram dez segundos incrivelmente longos antes de um dos melhores beijos da vida de Kari.

8

Batidas na porta.

— Eu atendo. — Kari disse para o pai, que tomava sua sopa.

Passou pela sala de estar, seguiu até a soleira. Rodou a chave duas vezes.

No chão, havia uma maleta preta. Em cima dela, um globo de neve.

7

Kari andava devagar, cuidadoso para não fazer muito barulho. A luz da rua entrava em feixes pela cortina entreaberta. O vidro não permitia que muito do barulho das ruas invadisse a casa. Isso era bom, afinal, o único morador precisava de um pouco de paz.

— Pai? — Ele queria gritar. Queria que seu pai estivesse o esperando, pronto para ouvi-lo desabafar sobre toda a bagunça que sua vida se tornara.

O pirata mal poderia segurar em si o próprio título, depois do que acontecera. Queria mudar, queria subir na vida sem precisar roubar os outros. Ou coisa pior. Lembrou-se de Ronald. Onde estava seu pai?

Foi até a cozinha. Encontrou-o dormindo sentado, esparramado sobre a mesa. Ajoelhou-se próximo a ele. Acariciou-lhe os cabelos brancos. A madeira estava fria quando seu rosto encostou-se nela.

6

Kari achou que havia muito espaço de sobra naquela nave. Axon esperava que sua mãe mandasse algo melhor que aquela sucata.

Quando ela aterrissou próxima ao laboratório, o pirata sentiu suas mãos suarem. Não tinha certeza do porquê. Eva deu um aceno rápido e disse que não precisa agradecer, que isso!, mas o filho da presidente insistiu. Um dos guardas trouxe uma caixa de papelão branca e a mulher pareceu realmente animada quando abriu. Devia ser algum apetrecho eletrônico.

— Como vamos fazer isso? — Axon o parou antes que saíssem do laboratório.

— Não vamos. — Kari foi direto. — Você me dá uma carona para o planeta mais próximo e eu me viro. Espero que suas desculpas os impeçam de me prender.

— Ah. — A frustração era visível em seu rosto.

A viagem foi curta e silenciosa. Os guardas — um deles segurava uma chave de fenda estupidamente grande — não encaravam nenhum dos dois, sentados lado a lado. Em algum momento, a mão de Axon foi coberta pela de Kari, que a apertou bem forte.

Foi a última coisa que não conseguiu dizer.

9

— Eu estava te esperando. — O sorriso no rosto de Kari, naquele dia, foi todo estrela.


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Notas finais do capítulo

Se você resistiu até aqui, obrigado! Ficaria muito feliz se comentasse, nem que seja pra apontar o que não gostou hahaha A última frase foi inspirada num poema do Neruda que minha amiga Verena (Ironborn aqui no Miau) me mostrou numa fic dela ♥ E é isso! haha
P.S: Só a nível de curiosidade, o Kari é o uke e o Axon é o seme no sentido sexual da coisa. Não acredito nos papeis que o yaoi impõe pra cada membro da relação. Queria ter mostrado isso melhor, mas a gente faz o que pode, né HUHAUAUHAHA